quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Para uma reforma do sistema prisional


* Por Frei Betto


Qualquer projeto de reforma penitenciária terá de ouvir todas as partes interessadas, a menos que fique no papel e seus recursos abocanhados pela corrupção. São partes interessadas: presos e suas famílias; agentes penitenciários; funcionários qualificados (psicólogos, médicos, mestres de oficinas etc); advogados e juízes; além de instituições como a Pastoral Carcerária, que lidam há décadas com o universo prisional.

Quando me transferiram para o Carandiru havia ali 5 mil detentos. A capacidade era de apenas 1.800. Naquela masmorra, as drogas corriam soltas, muitos portavam facas e estiletes, e havia leilões de gays (muitos à força, sob pena de levarem facadas) nos corredores dos pavilhões.

Grande parte da mão de obra era dos próprios presos: eletricistas, encanadores, pedreiros etc. O que mais me intrigou foi, na chegada, ao ser transferido da Penitenciária do Estado, passar por uma revista... feita pelos próprios presos! Era a “elite” da cadeia, que falava em pé de igualdade com a direção do presídio.

Fui falar com o diretor, coronel Guedes. Como admitia tantos abusos e ilegalidades ali dentro? Reagiu sem tergiversar: “Isso aqui é um barril de pólvora. Pode explodir a qualquer momento. Meu papel é retardar a explosão. Por isso faço vista grossa. Aqui só não permito duas coisas: mulher e helicóptero”.

A explosão aconteceu em 1992, e resultou no massacre de 111 presos pela PM de São Paulo. Até hoje os responsáveis não sofreram condenação definitiva.

Na Penitenciária de Presidente Venceslau, as drogas entravam via funcionários. Os comparsas dos presos, soltos aqui fora, conheciam o endereço de todos eles. E ameaçavam suas famílias caso não obedecessem as ordens das gangues internas.

Haveria muito mais a contar. Esses exemplos são suficientes para enfatizar que não haverá solução para a questão carcerária enquanto os agentes penitenciários não forem aprovados em cursos de qualificação, nos quais ética e pedagogia mereçam prioridade. O objetivo é recuperar para o convívio social homens e mulheres que ali se encontram, e não transformá-los em monstros através de torturas, castigos injustos e cumplicidade em ações ilegais. Um carcereiro mal remunerado precisa ter muita ética para se recusar a receber o dobro de seu salário mensal em troca de um celular contrabandeado para dentro das grades.

Não é preciso reinventar a roda para reformar nossas prisões. Há suficientes exemplos mundo afora de como se reduz o índice de reincidência.

Soluções existem. E não incluem a multiplicação de cadeias. O que falta é vontade política para dissociar os agentes públicos da criminalidade, e acreditar que, se ninguém nasce bandido, há sempre a possibilidade de ressocializar quem infringe a lei.

* Escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de 60 livros, editados no Brasil e no Exterior, entre os quais "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul".


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