quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Século de cambalacho é gíria de malandro

* Por Mouzar Benedito


Que o mundo foi e será uma porcaria eu já sei…”

Assim começa a letra do tango “Cambalache”, do argentino Discépolo, composto em 1935, falando do século XX. Acordei um dia desses me lembrando dele e me perguntei: mas ele se refere “só” ao século XX?

Andam falando por aí que o ano de 2016 não acabou, o 2017 é um bis do ano passado, mas eu vou mais longe: o século vinte e um não parece deixar pra trás o “cambalache” do século vinte.

Dezesseis anos já se foram e a ideia de que o mundo anda pra frente está meio sem respaldo.

Eu me lembro de quando era criança, nos anos 1950, e na barbearia do meu pai, numa cidadezinha de dois mil e poucos habitantes, quase sem comunicação com o mundo, um monte de roceiros e homens simples, que tinham estudado no máximo até o quarto ano primário, falava sobre como seria o ano 2.000 e os que viriam depois.

Na imaginação deles, não haveria mais miséria, desemprego, injustiças, nada disso. Todo mundo teria casa decente pra morar, emprego digno, boas escolas, médicos e bons hospitais para tratar da saúde… E não haveria violência, porque não teria motivo para isso.

Pena que nossos bons caipiras não tenham sido também bons profetas. Em vez dessas previsões terem se realizado, o que vemos é o mundo, não só o Brasil, estar mais pra letra do tango argentino, que não prevê o fim das desgraças, ao contrário, diz que sempre houve – e haverá – ladrões, maquiavéis, estropiados, contentes e amargurados.

Não consigo tirar da cabeça uns trechos desse tango, como os que se seguem, numa tradução livre e sem dividir o texto em versos:

Hoje resulta igual ser honesto ou traidor. Ignorante, sábio, ladrão, generoso ou vigarista. Tudo é igual! Nada é melhor!

Se um vive na impostura e outro rouba em sua ambição, dá no mesmo que seja padre, dorminhoco, dedo-duro, cara-de-pau ou vagabundo.

Século vinte cambalacho, problemático e febril… O que não chora não mama, e o que não rouba é imbecil.

É o mesmo o que trabalha noite e dia feito um boi, que o que vive dos outros, que o que mata e o que cura, ou que está fora da lei.

Pois é… É muito pessimismo. Mas, será que dá pra ser otimista?

Vemos a Europa indo morro abaixo, continente de uma cultura muito forte, dos direitos humanos e dos sonhos de turistas virando continente do medo?

E os Estados Unidos abandonando conquistas e radicalizando seus defeitos? Descendentes de imigrantes (e até imigrantes já instalados) aprovando a construção de um muro para impedir a chegada de novos imigrantes!

E o fanatismo religioso crescente no mundo todo, justificando massacres e guerras (embora por trás de guerras haja também, e muitas vezes principalmente, interesses econômicos)?

E muita gente tendo que fugir de seus países, arriscando a vida (e morrendo) em travessias marítimas precárias? No ano passado, cerca de cinco mil pessoas morreram em naufrágios no Mediterrâneo!

E os que fogem, quando chegam a algum lugar sendo vistos não como seres humanos, mas como perigos, vítimas de preconceitos e ódios?

E o ódio político?

Voltemos ao Brasil. Como se nossos problemas fossem poucos (não é de hoje, claro) há novos “santos homens” no poder, exigindo do povo sofrimentos que eles mesmos nunca tiveram! Previdência indo pro brejo, violência crescente, miséria crescente, direitos minguantes…

Claro, a vontade de mudar tudo isso continua, e também uma consciência de que a História é cíclica, mas é muito sintomático que eu, que deveria ocupar este espaço pra falar com humor de coisas da cultura brasileira, só me lembre agora de um dos mais dramáticos tangos argentinos.

Mas o que é cambalache?

A palavra cambalache, cambalacho em português, pode ter o sentido de negócio mutreteiro, trapaça, plano para enganar alguém ou, simplesmente, brechó – quer dizer, comércio barato de coisas usadas.

A letra desse tango, como de muitos outros, tem muito do lunfardo, a gíria dos malandros de Buenos Aires (Rosário e Montevidéu também). Uma das versões da origem do lunfardo é que os presos a inventaram para que os carcereiros não os entendessem. Mas existem outras versões.

Acredita-se que seus criadores foram italianos e descendentes, pobres. E passou a ser uma gíria popular, não só de malandros. Mas com a fama de ser da malandragem. E do tango também, especialmente de letristas como Discépolo, um dos maiores do gênero.

Por mera curiosidade, levantei um pouco dessa gíria, que coincide com muito da gíria da malandragem brasileira (e policial também), e parte tornou-se usada por todo mundo.

Nem sempre “importamos” a gíria de lá. Às vezes, o lunfardo é que importou a daqui, como no caso de catinga (mau-cheiro). E às vezes adaptamos: lá, defunto é mortadela, e na gíria policial e malandra daqui é presunto. A nossa “vaquinha”, levantamento de dinheiro de um grupo, pra fazer alguma coisa, no lunfardo é “vaca”.

E tem uma outra coisa do lunfardo que coincide com algo bem interiorano do Brasil: lá eles chamam de “vesre” (pronuncia-se vés-rê), revés com as sílabas trocadas, de trás pra frente. Em algumas cidades brasileiras, existia o revestrés, com o mesmo sentido. Nos anos 1980 existia, por exemplo, em São Luiz do Paraitinga. Muitos meninos falavam o revestrés, e até cantavam músicas conhecidas com as sílabas truncadas. Não sei se ainda haja quem pratique o revestrés.

Eis algumas palavras do “vesre” lunfardo: Broli (libro – livro), gotan (tango), davi (vida), goman (mango, grana), ispa (país), naca (cana, cadeia), sover (verso), trompa (patrón, patrão), nami (mina)

Agora vejam uma pequena lista de palavras da nossa gíria que coincide com o lunfardo (quantas importamos, quantas exportamos?):

Achacar, afanar, engrupir, patota, alcaguetar, fajuto, bacana, aliviar (no sentido de roubar, furtar), cafiolo (proxeneta, cafetão), bandear (mudar de posição), cabreiro (desconfiado), bife (tapa), cafua (cadeia, e também esconderijo), bronca, fuleiro, cagaço, calote, gatuno, cancha (traquejo), caradura, cantar (na gíria policial, entregar o jogo, entregar outras pessoas), cana (cadeia), cobres (dinheiro), embalado (vindo a toda), escrachado, espichado (morto), farra, forrado (cheio da grana), programa (relação amorosa), mango, gazua, gorila (militar golpista), lelé (senil), matungo (cavalo ruim), naco (pedaço), pelar (limpar – no jogo, por exemplo), pinta (postura – boa pinta, por exemplo), punguista, tira (policial), tramoia, gigolô, retranca, otário, pachorra, parada (aposta), pechinchar, onda (estar na onda: estar na moda)…

Terminei com “onda” – estar na onda – né? É de propósito: essas palavras entraram para a nossa língua oficial, nossos dicionários, continuam “na onda”, como o século XXI continua na onda do século XX. Tem muito a ver.


* Jornalista. 

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