sábado, 21 de janeiro de 2017

Momento mole de uma tarde de abril


* Por Flora Figueiredo


Cadeira do lado de fora,
alpargatas.
Óculos embaçados de limpeza mal feita,
que, afinal,
feriado nacional não foi feito para esforço.
Nuvem com forma de baleia,
sol mortiço.
Essa tarde sem compromisso
ainda vai acabar em lua cheia.

Tem mosquito atormentando!
Não sabe que, de vez em quando,
a gente tem direito de estar só?
E por que será que a neta
tem que andar sempre
com a roda frouxa na bicicleta?
Tomara que não solte,
senão vai ter choradeira.
Semana que vem se conserta.
Talvez na segunda ou terça-feira.


Cheiro de café fresco,
vindo da cozinha.
Tem coisa melhor que manteiga derretida
em pão quentinho?
Às vezes Deus acerta tanto
que a gente nem sabe como agradecer.
Por isso é que não se mata passarinho.
E tem goiaba com queijo,
melado com farinha,
pinga com limão.
O resto, a vida ajeita.
Não fosse a obrigação,
a Criação teria saído bem perfeita.

Anu branco dá azar.
Passa, danado.
Vai assombrar o telhado do vizinho,
que hoje é feriado e não quero amolação.
Pai nosso só amanhã.
Nem banho, nem barba feita,
nem ouvido pra conversa de mulher.
Um futebolzinho na televisão,
um noticiário qualquer,
até o sono chegar, dando coceira na nuca,
coisa mais maluca, sem pé nem cabeça.
Antes que o corpo amoleça,
um cigarro e mais um trago,
que desse mundo nada se leva
e essa vida não vale um vintém.
Viva Joaquim José de Silva Xavier!
Até o ano que vem.


* Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida.

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