Os campos de
Érico Veríssimo VII – O Alambrador
* Por Urda Alice
Klueger
(Para
Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira)
E os dias e os anos e os séculos
passaram, mas os campos de Érico Veríssimo continuam lá, verdes e dourados de sol
assim no auge do verão, e não importam os dias, os anos e os séculos, lá
continuam a fazer-se cercas. São de arame, hoje, coisa mais fácil – o arame vem
em longos rolos de metal quase brilhante, pronto para ser esticado – já não é
necessário andar-se à roda das sangas, cortando-se as pequenas árvores certas,
do tamanho necessário para cercar-se um campo, muitos campos, depois carregar
no lombo aqueles paus de galhos desbastados por quase invisíveis caminhos
afora, para salvar do gado solto a preciosa plantação de trigo com que tanto
sonhou Maneco Terra.
O trigo não deu, nos campos de Érico
Veríssimo; aquelas terras ali não gostavam das sementinhas que vinham lá do
outro lado do mundo e que davam origem ao pão branco, tão diferente do dourado
pão de milho que os antigos moradores que haviam aberto aqueles caminhos quase
invisíveis por onde Maneco Terra passava
já faziam há alguns milhares de anos naquelas terras. O trigo não deu e Maneco Terra acabou
morrendo, um dia, e sendo enterrado naquela terra que não gostava do seu sonho
de trigais ondulando ao vento, e seu corpo adubou aqueles campos que depois
seriam de Érico Veríssimo. Maneco Terra não ficaria esquecido, no entanto: sua
carne na terra e seu sêmen nas gentes fizeram com que ele se perpetuasse, e
passaram-se os dias, os anos e os séculos, e naqueles campos ainda nasce gente
como ele, tão parecida com ele que só Érico Veríssimo, mesmo, para ter
conhecido as gentes de muito mais tarde e ter entendido como tinha sido o seu
ancestral, aquele homem que já parecia que tinha ficado perdido no tempo.
Então, lá nos campos que já foram de
Maneco Terra, há príncipes que vivem hoje como que dentro de um sonho de um
escritor, e no auge do verão trabalham arduamente fazendo cercas que já não são
para o trigo, coisa esquecida. Hoje as cercas são para o gado, para a soja, e
há um príncipe de camisa de cambraia aberta ao peito que poderia ser conhecido
como fazedor de cercas, mas que como agora existem aqueles rolos de arame quase
brilhantes que já vêm prontinhos da fábrica, é chamado de Alambrador.
Então, sob o sol inclemente de janeiro,
o Alambrador moureja arduamente puxando, esticando e pregando aquele arame
cheio de farpas, queimando-se ao sol, ferindo as mãos, molhando de suor a ampla
camisa de cambraia aberta ao peito – quando o sol fica ardente em demasia ele
arranca tufos de capim verde e enche com ele a copa ardente do seu chapéu. Como
há séculos, anos e meses atrás, os campos de Érico Veríssimo continuam a ser
trabalhados, e aquele Alambrador Terra/Cambará suspira de satisfação quando vê
que há um alívio vindo a caminho dentro de uma jarra fria, onde há leite, ovos
e açúcar, gemada diluída e esfriada, feita pela mulher que o ama para lhe
recompor o ânimo e as forças que o sol está roubando.
Ele pára, empurra para trás o chapéu
quente, seca com a manga de cambraia a testa molhada de suor enquanto se apossa
da vasilha gelada e fragrante, e gole a gole, bebe aquela bebida reanimadora
que lhe desce por dentro do peito exatamente como o bálsamo de que estava precisando
para se reanimar. O coração lhe sinaliza o prazer daquele refrigério entrando
num compasso mais acelerado, e então, chapéu para trás, deixando escorregar
para o chão a vasilha vazia, ele enlaça aquela mulher que lhe tem tanto amor e
a puxa para junto do peito suado, e para ela tudo é fina fragrância naquele seu
suado cheiro de trabalho, e como uma coisa de doido, os lábios dos dois se
encontram, e um desvario que é completamente inexplicável dança dentro deles, e
dentre eles, e ao redor deles como
girândolas de nuvens coloridas, e ambos têm a certeza de que momentos
assim são completamente inesquecíveis, até para muito depois que a morte os
separar.
Não mudaram muito as coisas nos campos
de Érico Veríssimo. Apenas Maneco Terra se chama, hoje, o Alambrador.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado
em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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