sábado, 28 de janeiro de 2017

Meus amigos esclarecidos


* Por André Falavigna



Eu tenho um amigo esclarecido e o nome dele não é Platero. Não é que ele é ignorante, não. É que ele é esclarecido mesmo.

Meu amigo esclarecido tem certo estilo. Não é um esclarecido vulgar, um sujeito comum. Ele tem método. Por exemplo: meu amigo acredita piamente que, durante uma discussão qualquer, o argumento que diz que “todo mundo sabe disso” é irrefutável. Em qualquer questão da vida, a medida que meu amigo esclarecido tem de razoabilidade passa sempre pela suposição de que, se todo mundo sabe de alguma coisa, não é o caso de se perder tempo discutindo essa coisa.

Ele também acredita que diversas questões são questões de gosto e que, portanto, não devem ser discutidas. Mais do que isso: todas as questões, mesmo as questões que não são questões de gosto, são sempre questões de ponto de vista e, portanto, qualquer coisa que se diga a respeito delas é sempre respeitável, porque todo mundo sabe que pontos de vista e gosto não se discutem.

Surpreendentemente, isso não o impede de discutir muito, o tempo todo, sobre quase qualquer assunto. Uma das características mais características de meu amigo é que ele tem opinião para tudo, desde a melhor dieta da moda de todos os tempos, passando pelas qualidades transcendentais de Rogério Ceni e chegando ao melhor tipo de lubrificação artificial anal disponível no mercado.

Um dos pontos em que seu ecletismo mais chama a atenção é quando ele opina sobre religião. O homem é muito bem informado, mesmo sem ter freqüentado qualquer religião, em qualquer sentido. Mesmo assim, foi por intermédio dele que eu soube que a religião é uma bobagem, mas que deve ser respeitada porque, caso contrário, corre-se o risco de se ofender muitos gostos e pontos de vista. Mas que é uma bobagem, isso lá é. Outra coisa que aprendi com meu amigo é que existe uma distinção muito clara entre fé e razão, e que devemos ter fé na idéia de que a coisa mais racional a fazer é aceitar logo isso.

Ele também é um defensor do progresso. Qualquer coisa que se relaciona com o progresso encanta meu amigo, sobretudo se a coisa for moderna. Assim como todas as pessoas esclarecidas, ele também tem consciência de que o que é moderno é eficiente e que, sendo eficiente, é bom no sentido mais amplo.

É preciso esclarecer que o apego à modernidade e à eficiência é só uma parte daquilo que compõe o esclarecimento de pessoas esclarecidas como essa de que estamos falando. Há outros componentes necessários. Um deles é a disposição de fiar-se num vocabulário que possa ser fonte única e absoluta de referências pessoais, profissionais, institucionais, sociais, científicas e até mesmo amorosas. Se esse meu amigo encontra um camarada capaz de descrever o que quer que seja em termos de igualdade e desigualdade, justiça e injustiça, solidariedade e egoísmo, social e capital, liberalismo e moralismo, Palestina e Israel, ele logo percebe que está lidando com alguém de respeito. Se essa pessoa conseguir opor dicotomicamente esses verbetes na mesma ordem axiológica que se costuma opor o bem ao mal e, além disso, é capaz de logo perceber que qualquer tentativa de inversão não passa de puro maniqueísmo, aí então esse meu amigo encontrou um irmão.

Articulações assim só são possíveis porque somente pessoas esclarecidas compreendem que é preciso lutar contra o pensamento único. Tanto é que, agora que a Guerra Fria acabou e os EUA se tornaram donos do mundo, todos sabem que não há mais divisão nenhuma no pensamento e que os EUA serão liquidados o mais brevemente possível pela diversidade do pensamento em geral. Eu fico louco tentando coerir isso tudo, mas é porque vivo nas trevas e não compreendo que a aplicação da lógica, nesses casos, não é nada mais nada menos que opressão machista do capital.

Um dia desses saí com meu amigo e com uma porção de amigos dele, e ficamos todos bêbados (esse pessoal, quando bebe, fica muitíssimo mais esclarecido). Aprendi uma série de coisas e comecei a me tornar esclarecido. Notei que preciso, de alguma maneira, montar o seguinte quebra-cabeças: o capitalismo é mau, mas não há outro jeito de viver porque não há mais comunismo no mundo. Entretanto, o socialismo é uma opção para humanizar o capitalismo. Um dos entraves a essa humanização é a religião. Felizmente, uns padres católicos já estão dando um jeito nisso, dialeticamente. A pedofilia precisa ser banida, e por isso, assim que os padres católicos dirimirem a questão da religião e o socialismo triunfar, eles devem ser todos presos. A ciência poderá esclarecer o que há de errado com esse pessoal e tudo ficará bem. O problema é que, enquanto os EUA existirem, Israel não permitirá que o mundo seja feliz, mesmo que em troca disso fuzilemos os padres que haveremos de prender, pedófilos ou não. Entenda esta última no duplo sentido mesmo. Dessa forma, devemos torcer para que a China vença as Olimpíadas que haverá na China e, assim, humilhe os EUA. Isso pode ser quase tão útil quanto uma bomba atômica nas mãos do Irã e outra nas da Coréia do Norte, o que garantiria mais equilíbrio nas relações internacionais. Não há inocentes nessa história, porque todos pagam impostos e elegeram o Bush e, assim, obrigaram Osama a fazer o que fez. Todos precisamos de um emprego decente e, se uma boa faculdade não o garantir, um concurso público o fará. Não há dúvida de que vinhos caros e charutos cubanos seriam muito mais gostosos se fossem consumidos de consciência limpa. Não há como conseguir isso sem solapar a Opus Dei. É preciso confiar na iniciativa individual, desde que não seja muito privada. Nossos ancestrais eram todos retardados que não sabiam nada de genoma ou cocaína. Se você colocar uma colher de café no bocal de uma garrafa de Coca-Cola aberta cuja tampa você perdeu, ela conservará o gás do refrigerante.

O mesmo procedimento, infelizmente, não pode ser utilizado para controlar os seus próprios gases. Se você enfiar uma dessas colherzinhas no próprio cu, os peidos continuam saindo do mesmo jeito e a colherzinha fica caindo toda hora.

Você não acredita na quantidade de coisas que pode aprender quando bebe com gente esclarecida.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.








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