Carta cansada
* Por
Raymundo Netto
Veio-lhe a carta.
Poderia ser qualquer uma, mas não, esta era cansada. Exaurida de lágrimas,
qualquer resto delas, de fadiga ou de tédio, palavras em desalinho, opressas a
batidas quase surdas de um coração ferido.
Ele, nem mesmo para si
guardava a dúvida: de nada sabia do amor. Numa arrazoada assertiva o teria como
um horizonte distante e inalcançável, como mentira, eternamente paralelo à
vida, pelo menos a dele.
Não por isso negasse
dias ter pela remetente sacrificado a palavra inda quente entre os dentes, nem
sabia o por quê. Seria de mais grado a ambos deixar-se vomitar o “eu te amo”.
Mas qual. Fitava-lhe os olhos de âmbar e o sorriso de menina. Guardava na polpa dos dedos aquele desejo,
quase em súplices joelhos, em forma de impressões e ardor da pele dourada.
Buscava no lóbulo da orelha sob os cabelos furiosos o corpo que se expandia num
abraço de acolhê-lo todo e inteiro – carne, alma e algo mais indescrito – em
noites intermináveis de sempre ter um capítulo de fim. Agarrava-se aos cabelos
como a tomá-la para si, para dentro de si, beijando-lhes os olhos para não cair
de suas lembranças.
No escuro, sua voz
ainda corria a curva dos ouvidos: “Eu tentei... ‘Morri no ano passado, mas
nesse ano eu não morro’. Talvez eu tenha entendido ter chegado a hora de não
querer mais entender. Seja feliz e adeus”.
“Adeus”, repetia,
desbastando em retalhos as memórias que lhe vinham uma a uma, atravessando o
peito e saltando do trampolim sobre as águas de malogrados esquecimentos.
Noutros dias, ao
beijar outra mulher, sua boca estranhou o incômodo da boca distante. Seus
dedos, como se perdidos no chão, procuravam encontrar no corpo alheio as mesmas
e aquelas impressões e ardores que repousavam à pele dourada. Entretanto, nada
encontraram, volvendo-se a noite em escura e desértica. A sua ausência
materializou-se e desabou em chuva, a revelar no espelho que o seu pior castigo
nem era ser ele mesmo, mas viver sem o perigo daquele abraço.
Do vizinho, uma
radiola arranhava em long-play antigo: “entre os defeitos que tenho um é gostar
de você”.
“Conte-me uma
história...”, indicava no silêncio delicado, enquanto na fúria dos azuis do
luar ela despedia-se num abraço calcado quase em morte, em solidariedade de
vazios e de saudades, num frouxo rompante: “Eu te amei, eu te amo, não te
amarei nunca mais!”
* Raymundo
Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, e
um sonhador declarado que ainda se encanta com as pessoas.
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