Ex-tilingue
* Por
Marcelo Sguassábia
O estilingue sumiu do
mapa. Bem como o bodoque, a chiloida, a baladeira, a funda, a atiradeira e
demais sinônimos. Justifica-se o desaparecimento. Que chance teria o coitado
numa queda de braço com o Xbox, o PS4, os jogos de realidade virtual e sua
turma? É claro que não falo das atiradeiras de competição, que parecem uns
bólidos, ultramodernas e produzidas com materiais sintéticos. É aquele
rustiquinho, da roça mesmo, ou quando muito dos quintais das casas de vila,
quase tão extintos quanto o próprio estilingue.
Por definição, o
estilingue é uma traquitana contraditória. Para um militar em guerra, uma
brincadeira de criança. Para um militante da paz, uma arma mortal travestida de
brinquedo. Para mim e para você, talvez pairem controvérsias. Mas certamente concordaremos
ao admitir que não existe uso politicamente correto ou ambientalmente
justificável para um estilingue. Tanto na intenção com que é usado quanto no
material necessário para fazer um.
Começando da estrutura
básica: a forquilha. É preciso serrar um galho de goiabeira, jabuticabeira ou
outra eira do pomar para se ter uma bem bacana em mãos, com um "V"
simétrico e reforçado. Daí você precisa de pedregulhos, também chamados seixos,
como munição. E seixos ou pedregulhos demoram centenas, milhares, quem sabe
milhões de anos para ganharem da natureza aqueles contornos arredondados.
Porque se a pedrinha não for redonda, já era. O tiro não será certeiro. Depois
tem aquele courinho que prende o pedregulho para o disparo. Só se for couro
legítimo, subproduto de gado abatido. Caso contrário, durabilidade zero. O
menos antiecológico dos insumos seria o conjunto das duas tiras de borracha,
que esticadas darão o impulso para a pedrinha zarpar. Ainda assim elas vêm da
seringueira, cujo látex poderia muito bem ser destinado a fins mais
edificantes.
Pronto o estilingue,
ele vai servir para quê? De duas uma: arrebentar vidraças ou matar passarinhos.
A primeira opção caracteriza vandalismo; a segunda, crueldade animalesca e
estúpida interferência na cadeia alimentar. No entanto, sua imagem permanece
como algo bucólico, associado à inocência infantil e aos inesquecíveis momentos
vividos na fazenda da vovô. Algo que lembra cartilha de alfabetização,
calendário de quitanda ou capa de alguma edição antiga de "Caçadas de Pedrinho",
do Monteiro Lobato.
Por isso, se alguém,
contradizendo minha tese, disser que viu por aí um menino com um estilingue nas
mãos ou no bolso, não caia nessa. Com certeza é uma arapuca. Também em
extinção, por sinal.
* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Os meninos saiam cada um com uma atiradeira e voltavam com um monte de passarinhos mortos, amarrados pelos pés. Tétrico,crueldade, mas ninguém pensava nisso.
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