quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Rios que não saem da memória


* Por Paulo Clóvis Schmitz


Do rio que é um filete ao que não permite ver a outra margem, é ali, em grande medida, que muitas vidas se reproduzem e ganham forma, sem que percebamos o milagre em andamento.

Em todos nós, acredito, há um rio a fustigar a memória, porque rios há em todos os lugares, dos caudalosos aos fios d’água que o desmatamento legou ao campo e às cidades, assoreando margens e profundezas. A ideia de falar sobre rios me veio depois que um ator foi transformado em celebridade ao morrer num caudal traiçoeiro como soem ser muitos caudais, dos portentosos àqueles que perderam pujança em vista da ação humana nos vales e sertões desse mundão de Deus.

Lembro do riozinho que passava atrás da casa e do paiol de madeira da infância, que de tão modesto nem peixes abrigava. Ali perto havia um rio maior, desses que inundam lavouras e quintais quando sobrevém o temporal. Mais tarde, corria um riacho entre a casa dos pais e a escola, e ali já nadavam jundiás e lambaris que tiravam o sossego de pescadores mirins com abundância de tempo livre. Esse córrego ia dar num rio maior, com remansos que afrontavam a nossa habilidade de mergulhadores. Por sua vez, tal rio desembocava num congênere de respeito, tão largo e pedregoso que de vez em quando, na distração que nos é companheira, tolhiam uma vida desavisada.

Rios estão em autores como José Eutasio Rivera, de “A voragem”, um monumental relato sobre o âmago da vastidão amazônica, a partir da fralda colombiana da floresta. Há o rio de Fernando Pessoa, o rio de Heráclito, os rios de Borges e Llosa, os riozinhos de Moravia, nos livros, e de Kurosawa, no cinema. Por aqui, há os rios de Lausimar Laus e de Guido Wilmar Sassi, os rios que aparecem em Viana Moog, Quintana e João Cabral de Mello Neto, e aqueles que nem Drummond ou Bandeira puderam ignorar.

Mau nadador, admito que já poderia ter sucumbido aos rios que desafiei, por ignorância ou imperícia, quando não tinha noção dos perigos que eles escondem. Uma vez, não consegui vencer a correnteza e precisei de ajuda de amigos para voltar à margem. E aprendi, vendo os maus passos alheios, que a água é um elemento a reverenciar, respeitar, tratar com vênia e mesura.

Do rio que é um filete ao que não permite ver a outra margem, é ali, em grande medida, que muitas vidas se reproduzem e ganham forma, sem que percebamos o milagre em andamento. Se uma celebridade morre no rio, viva o rio, que não deve explicações a ninguém.

* Paulo Clóvis Schmitz é jornalista, Florianópolis / SC



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