quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O homem que não dirige


* Por Gustavo do Carmo



Henrique é apaixonado por carros. Mas não dirige. Conhece todos os modelos, de todas as épocas, que circulam pelas ruas do Brasil e do mundo. Mas não pode guiar nenhum deles. Foi reprovado duas vezes na prova de direção. Depois da segunda, desistiu de vez. Convenceu-se de que seria um perigo a mais para o trânsito se tirasse carteira. Considerava-se muito inseguro e, ao mesmo tempo, muito ansioso.

Os pais, amigos, parentes e até o avô, muito querido, tentaram convencê-lo a tentar pela terceira vez. Sem sucesso. Henrique achava muito cansativo treinar, em pleno verão carioca, em um carro quente e apertado. A simulação para o exame, então, era um tormento. Tinha que ficar quase seis horas num lugar deserto, esperando que todos ensaiassem a prova de baliza e de trânsito. Duas vezes.

Outro dia, encontrou o secretário da auto-escola que lhe disse que mudaram o local da prova. Mais perto de casa. Com o trajeto mais fácil. E melhor sinalizado. Henrique não quis. O dono da auto-escola lhe ofereceu isenção do aluguel do carro. Henrique também não aceitou. O pai queria matriculá-lo em outra auto-escola de outra cidade. Nada feito. Primeiro, porque a auto-escola era muito longe. Segundo, pelos mesmos motivos: não tinha nenhuma vontade de passar pela mesma tortura e ainda não se sentia seguro para enfrentar o trânsito. Deixou o prontuário vencer.

Passaram-se cinco anos. Para tentar tirar a carteira agora, ele teria que enfrentar tudo de novo: quinze aulas teóricas, estudos, prova, teste psicotécnico, quinze aulas práticas e etc. Agora mesmo que ele não quer tirar.

Os amigos estranhavam quando ele dizia que gostava de carro, mas não sabia dirigir. Perdeu várias oportunidades de emprego porque não sabia dirigir. Principalmente na área dele: jornalismo automotivo. Deixou de conquistar várias garotas porque não sabia dirigir.

Saber ele sabe. Mas sem carteira não pode. Quando fez dezoito, o código de trânsito ainda não havia mudado e ele podia comprar carteira. Mas tinha que fazer algumas aulas práticas. Henrique ainda não se sentia preparado. Veio o novo código e a obtenção da carteira passou a ser mais rigorosa.

Ia para as aulas da faculdade e pós-graduação de ônibus mesmo. Às vezes pegava um táxi. Viajar, só de ônibus ou de carona com o pai. Ir para o shopping, só de ônibus ou de carro com a irmã. Não tinha vergonha de não dirigir. Passou a achar que a sociedade deveria aceitá-lo sem carteira da mesma forma que aceita algumas preferências sexuais.

Um dia, teve sorte ao encontrar um empregador que entendeu a sua opção e o contratou como repórter automotivo em uma revista. Começou escrevendo textos, mas logo passou a avaliar os carros. Como? Ele sentava no banco do carona e sentia dali mesmo o comportamento do carro. Sabia dizer se a suspensão era dura ou macia. Se o motor engasgava ou era ágil. Reparava na fisionomia do fotógrafo encarregado de dirigir o carro. Se ele demonstrasse muito esforço a direção era pesada. Se estava tranqüilo, a direção era leve. Às vezes, ele mesmo girava o volante e fazia a sua própria constatação. Henrique sempre mudava as marchas. Para compensar o trabalho do fotógrafo que deveria ser seu, o avaliador de carros que não dirige aprendeu a fotografar. Na hora da edição, cada um assinava de acordo com a sua função. Henrique, os textos e o fotógrafo, as imagens.

Seus textos eram corretos e interessantes. Fez sucesso por avaliar tão bem os carros sem saber dirigir que foi até pauta de reportagens jornalísticas e programas de entrevista pelo seu talento peculiar.

No trabalho, conheceu Mercedes. Não o carro, mas uma bela morena de pele clara, com quem se casou. Mercedes tinha algo em comum com Henrique. Também não sabia dirigir. Mas ela era apenas a contadora da revista. Não tinha a obrigação de dirigir. Quando namorados, andavam de táxi.

Mas Mercedes perdeu a paciência com Henrique, que se recusava a tirar carteira de motorista. Ela não queria mais depender de táxis e nem de amigos para sair com ele. Quase deu um ultimato para ele tirar a carteira de motorista ou assinar o divórcio. Henrique foi salvo pela gravidez da mulher.

Como Henrique não queria a esposa andando grávida de ônibus lotado ou tendo dificuldade para encontrar um táxi, comprou um carro usado. Contratou um motorista. Meireles era um rapaz prestativo que trabalhava como auxiliar de taxista.

Meireles levava Henrique e Mercedes para a revista. Ficava à disposição do casal. Também ajudava Henrique a avaliar os carros do trabalho. O fotógrafo já não era necessário para sentir a suspensão do carro para Henrique comentar. Meireles fazia tudo.
— Vamos para onde, senhor? Para a revista.
— Vamos para onde, senhora? Para o shopping.
— Vamos para onde, senhor? Para biblioteca e depois para a revista. 
— Vamos para onde, senhores? Para Cabo Frio.
— Este carro é muito confortável, senhor.

Ás vezes, Meireles conduzia Mercedes sozinha. Muitas vezes para os exames pré-natal que Henrique não podia acompanhar.
— Vamos para onde, senhora? Para a consulta pré-natal.
— Vamos para onde, senhores? Para a maternidade! Rápido, que o bebê já está nascendo!
       
Quando ela tirou licença-maternidade, Meireles ficou mais tempo a disposição de Mercedes, levando-a para a casa de sua mãe e para a casa do irmão mais velho em São Paulo.

Um dia, na volta para o Rio, o carro de Henrique enguiçou à noite e eles precisaram dormir em um motel. O jornalista estava no exterior para cobrir o lançamento de um carro.

Na volta, Henrique foi recebido por Mercedes, que lhe avisou que ia abrir um negócio com o irmão em São Paulo. Levaria tudo: o filho, a mãe e Meireles. O rapaz se prontificou a pedir transferência para a capital paulista. Mercedes não deixou. Disse que estava apaixonada por Meireles.

Henrique pediu demissão da revista de automóveis e se matriculou na mesma auto-escola pela qual tinha tentado tirar a carteira. Assistiu às quinze aulas, fez a prova teórica. Passou com 100% de acerto. Passou no exame psicotécnico. Só precisou das quinze aulas para marcar a prova prática, na qual foi aprovado com elogios do examinador. 

Foi aplaudido pelo pai, pela mãe e pelo avô querido, que agora pode morrer satisfeito ao ver o neto tirar a tão sonhada carteira de motorista. O diretor da revista também o readmitiu.

No primeiro passeio com a habilitação na mão, Henrique pegou o carro que tinha comprado para Meireles conduzir a sua ex-esposa. Acelerou, acelerou, acelerou. Chocou-se com uma figueira centenária, que resistiu ao impacto.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
 Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe -http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores



             



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