terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A alma da Literatura


A “alma” da Literatura, o imã que atrai nossa atenção de leitores para determinado texto e que faz com que ele, além de nos induzir à reflexão sobre seu conteúdo, nos delicie com sua forma, é algo bastante sutil, que o escritor italiano, Umberto Eco, chamou de “fato estético”. Ele referia-se, ao cunhar essa expressão, especificamente à poesia. No entanto, o princípio pode (e a meu ver, deve) ser estendido igualmente à prosa. Quando um texto é literário e quando não é? Entendo que o seja quando reúne, simultaneamente, objetividade, conteúdo e beleza. Além da correção, sem dúvida. Qualquer desses fatores que falte faz do texto tudo, menos de Literatura. Um bilhete, bem redigido, por exemplo, tende a ser objetivo, pode até soar belo, mas falta-lhe conteúdo para o leitor que não seja a pessoa a que seja endereçado. Não é, portanto, “literário”. Não contém o “fato estético”.

E o que vem a ser esse fator? Bem, na verdade não há uma definição exata e rigorosa dele, embora, paradoxalmente, seja perfeitamente identificável em um texto.  Umberto Eco assim se referiu a ele: “O fato estético é algo tão evidente, imediato e indefinido quanto o amor, o gosto da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a presença de uma mulher, uma montanha ou uma baía. Se ela é sentida de imediato, por que diluí-la em outras palavras, que certamente serão mais frágeis do que nossos sentimentos?” Sim, paciente leitor, por que?

Para um texto adquirir essa característica de excelência, para conter o tal do fato estético e ter, simultaneamente, objetividade, conteúdo e beleza, a condição primordial, primária, elementar (“sine qua non” como diriam os romanos), é a de que ele seja rigorosamente correto em todos os aspectos, quer na grafia, quer na semântica e quer em tudo o que diga respeito às “leis do idioma” (sua gramática). Uma escrita relapsa, eivada de erros, pelo meu critério pessoal, jamais poderá ser considerada “literária”. Não tenho dúvidas em afirmar que não é.

Umberto Eco, por sua vez, chama a atenção para o fato de que a poesia, ao contrário da prosa, ser passiva de diferentes interpretações, sem que haja a mínima necessidade de modificação no texto, a cada vez que for lida. Escreve: “Eu definiria o efeito poético como a capacidade que um texto oferece de continuar a gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo”. O bom poema, portanto, comporta infindáveis interpretações. O leitor torna-se, automaticamente, uma espécie de co-autor do texto poético. E o poeta francês Paul Claudel vai mais longe. Afirma que a interpretação do conteúdo de determinada poesia tem a ver não apenas com a forma como ela é escrita. “O poema não é feito dessas letras que eu espeto como pregos, mas do branco que fica no papel”. Ou seja, é todo um conjunto.

Então é esta a grande diferença entre a poesia e a prosa? Para Jorge Luís Borges, não! O escritor argentino, meu eterno guru literário, sugeriu que o que diferencia, principalmente, os dois gêneros é a “expectativa” que o leitor tem antes de iniciar a leitura de uma e de outra. E o que ele espera encontrar? Na poesia é a “intensidade” que, no entanto, não tolerará na prosa. Nesta última, sua expectativa reside basicamente na objetividade (além, claro, de esperar também encontrar conteúdo e beleza). Borges escreveu ainda, no livro “História da Eternidade”, referindo-se aos poetas: “Creio que os escritores somos amanuenses de algo secreto, que se pode chamar, segundo a tradição homérica, de ‘musa’; segundo a tradição hebréia, ‘ruach’, o ‘espírito’; ou segundo a fria mitologia moderna, ‘inconsciente’ ou ‘subconsciente’; ou segundo a bela expressão do grande poeta irlandês  William Buttler Yeats, a ‘grande memória’.

Para encerrar estas descompromissadas reflexões de hoje, peço licença para transcrever estes belos versos de Mário Quintana, intitulados “Como pássaros”, que caracterizam a caráter a mencionada “co-autoria” de quem lê um poema e como ela se dá:

“Os poemas são pássaros
que chegam não se sabe
de onde e pousam no
livro que lês.

Quando fechas o livro,
eles alçam vôo como de
um alçapão.

Eles não têm pouso nem
porto,
alimentam-se um instante
em cada par de mãos e
partem.

E olhas, então, essas tuas
mãos vazias, no
maravilhado espanto de
saberes que o alimento
deles já estava em ti”.

E não tem razão o inspirado poeta gaúcho?! Claro que sim!!!

Boa leitura!

O Editor.

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2 comentários:

  1. Belo poema. Fico pensando na "falação" de teóricos explicando que fulano faz poesia assim e assado. Versos não são explicáveis. Um livro não tem poemas escritos de certa forma, todos eles. É muita "sacção". Talvez possam ter algo em comum numa certa época, mas o mesmo autor pode voar por outros caminhos na próxima leva.

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