sábado, 24 de setembro de 2016

Recortes da realidade (II)


* Por Marcos Alves


Em busca de um bom assunto que me leve a emendar os pensamentos vou caçando manchetes, chamadas, espaços em destaque nas páginas dos jornais. Confesso que prefiro histórias edificantes a tragédias, depois de um dia cheio de releases, resumos, pautas, e mais um monte de informação em forma de papel, e-mail, telefone, gravações e tudo o mais que pode carregar uma mensagem escrita ou falada, eis que o jornal termina.

Despeço-me da turma e vou para casa. Agora posso ler descansadamente, sem pressa. Posso escolher o que ler, posso tanta coisa e ainda assim não deixo de dar uma olhadinha nos jornais. Como em uma pescaria, lanço a linha o mais longe que posso jogar. Quando menino acreditava ser no meio da água escura da mais forte correnteza que o rio guardava terríveis perigos e preciosos segredos. Acho que ainda penso assim.

Quero um bálsamo para cabeça e o coração. Como naquele anúncio de fim de ano manjado, em que se lê "DESCOBERTA A VACINA PARA A AIDS", estou à caça de boas histórias, quero algo como "AS MANCHETES QUE GOSTARÍAMOS DE PUBLICAR NO ANO QUE VEM". Mas tá brabo.

BALA PERDIDA MATA JOVEM DE 20 ANOS

"Morreu na noite de segunda-feira Carla da Silva Costa, de 20 anos, atingida por um tiro na cabeça, na parte da manhã, no bairro Cachoeirinha, região Nordeste de Belo Horizonte. Carla estava grávida de 21 semanas, mas o bebê não conseguiu sobreviver."

Foi no meio de um tiroteio entre policiais e traficantes. Deu mídia nacional. Um desses casos em que um inocente morre, e depois a comunidade protesta contra a violência em que vive exposta. Mas terminado o barulho, pouco se faz além de lavrar o B.O. A vida segue e tudo volta ao normal.

Uma pesquisa do IBGE divulgada esta semana conclui que no Brasil cada vez mais mulheres morrem de forma violenta. Não só por violência doméstica. É a violência que atinge quem fica a maior parte do dia fora de casa. A vítima é a mulher que sustenta filho, fica no trânsito, pega ônibus em horários e locais perigosos, chega tarde e sai cedo de casa. É a vítima preferencial da violência sem nome e sem rosto dos grandes centros urbanos.

Do lado de cá, dou graças a Deus todos os dias, benzo-me e peço proteção para os que amo. Dou esmolas, às vezes. É pouco. Escrevo, falo dos problemas dessas pessoas. Melhor assim. Mas está longe de resolver o problema. É melhor usar o dinheiro dos impostos, mas isso quem deveria fazer não faz.

Carla é mais uma vítima entre milhares. Mais uma a pagar a conta. É o chamado "custo Brasil" dos pobres. No andar de baixo se paga com a própria carne – olha que o termo não é novo. A violência é a conta que pagamos – com juros e correção, por causa de tanta impunidade, corrupção e  descaso com o povo desse país. Mesmo contrariado, continuo à cata de boas histórias nos jornais.

"BEBÊ NASCE DENTRO DE VIATURA DA PM EM COPACABANA"

Não é propriamente uma notícia nova, mas se encaixa no perfil das boas notícias.

A moça teve um mal-estar e ligou para o 190. Sem conseguir sair de casa, Marcela Santos de Oliveira, 18 anos, deu à luz dentro da viatura da Polícia Militar, em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

O nascimento de uma criança é sinal de renovação. A vida insiste, a natureza se impõe e prevalece sobre a lógica ou o que for que insista no contrário. Como esses arbustos teimosos que crescem tortos nas fendas de concreto. Embora tudo leve a crer que o Brasil não vai melhorar tão cedo, esse novo brasileirinho é um sinal de esperança. E assim a gente toca a vida, renovando o ânimo que mantém viva a vontade de mudar as coisas. 

SOBREVIVENTE DE VIGÁRIO GERAL É PRESO POR TRÁFICO

Vítor Santos foi preso na Favela Salsa e Merengue, no Complexo da Maré, com 97 trouxinhas de maconha e 63 sacolés de cocaína. Na 21ª DP (Bonsucesso), onde prestou depoimento, contou ter deixado a casa da tia, na Baixa do Sapateiro, em março de 2004, para vender drogas. "Eu estava sem dinheiro e precisava sustentar minha mulher e minha filha. Ali cheguei a ganhar R$ 100 por dia" – diz. 

Pudera a história de Vítor Santos fosse redentora e exemplar. Seria como escapar da morte duas vezes. Aos 9 anos de idade a casa dele foi invadida por homens armados e encapuzados. Naquela madrugada fria de 30 de agosto de 1993, 21 pessoas foram assassinadas na favela de Vigário Geral. Oito delas faziam parte da família do menino, que foi poupado. A vida é mesmo dura para essa gente.

E faz pensar no inexorável, no que é líquido e certo, no inescapável. Aquilo que tem que ser será. Uma frase antiga, assustadora, equivocada em diversas oportunidades, mas cristalina e verdadeira em outras, como na triste sina de Vítor.


HOMEM ACHA MALA COM DINHEIRO EM TREM E DEVOLVE

Isso ainda existe. E aconteceu no interior paulista. Antonio Fernando Rodrigues, 53 anos, seguia para o trabalho e encontrou a mala no trem que liga São Paulo a Jundiaí. Dentro havia dinheiro, documentos e objetos de valor. No total, R$ 200 mil. O homem levou para casa e decidiu devolver ao dono, um consultor financeiro da capital. O consultor deu R$ 110,00 a Rodrigues.

O que o levou a agir assim? Antonio Rodrigues explicou a decisão de forma simples: não pegou nada porque a maleta não era dele. Antônio, quem te conhece que te compre, mas tudo indica que você é um homem honesto. O que já é muito nesses dias em que se desconfia de tudo. Não sou crédulo nem cético, mas vez em quando é bom fazer uma figuinha escondido, jogar um pouco de sal grosso por sobre as costas, rezar num cantinho.

Nesses tempos trabalhosos também é bom exercitar a paciência, a fim de não perdê-la de vez. E tentar não complicar nem explicar demais. Melhor deixar essa tarefa para os jornais. Acredita quem quer.


* Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.



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