Solidão
acompanhada de um bom livro
* Por Cecília
França
Gilberto buscou aquele antigo livro na
estante, seu preferido, mas que não lia há meses. Onde estava? Precisava ler as
frases que só García Marquez sabia escrever. Hum, estava emprestado para Sandra,
sua colega de trabalho. Lembrou-se que estranhou no dia em que ela lhe pediu o
livro. Primeiro, porque ela parecia saber que ele possuía a obra, depois porque
nem conversavam no escritório. Sandra batia à máquina sem parar, escondida
pelos cabelos ruivos, não olhava ninguém. A impressão era de que nem respirava.
Gilberto mal a via.
Amanhã
vou pedir de volta,
pensou. Nem foi preciso, mas a vontade de ler o livro já havia passado.
Colocou-o de volta na estante, no lugar reservado a ele. Sentiu alívio por vê-lo
novamente ali. Lembrou-se do olhar que Sandra havia lançado ao devolvê-lo.
Disse: muito bom, obrigada! E estava
com o cabelo mudado. Devia estar namorando. Talvez o rapaz fosse apreciador de
livros e ela quisesse impressioná-lo.
García Marquez não permaneceu por muito
tempo na estante. Flávia, outra colega, pediu-o dois dias depois. Era linda e
Gilberto imaginou como seria bom debater a obra deitado em seu colo, com os
seus cabelos roçando-lhe a face. Sabia do interesse dela por literatura (já que
especular a vida da moça era um de seus hábitos) por isso estranhava que ela
ainda não houvesse lido o livro. Talvez
queira relê-lo, pensou, mas nada perguntou. Bastava que ela deixasse um
pouco de seu cheiro nas páginas.
Tirou novamente García Marquez da estante,
não sem aperto no coração. Lá vai você,
meu amigo, pra onde jamais irei, disse, em voz alta. Entregou o livro sem
marca páginas, como havia voltado do empréstimo à Sandra. Pensou quanto tempo
Flávia demoraria para ler e surpreendeu-se quando, uma semana depois, ela o
devolveu.
Já?
Sim,
quando eu gosto, leio rápido. Parecia insinuar-se.
Se
quiser, tenho outros dele.
Não,
obrigada, eu tenho quase todos, acho que só me faltava ler esse.
Foi ao banheiro a fim de que ela não
presenciasse a cena em que ele abriria o livro para sentir um possível aroma de
seu perfume impregnado nas folhas. Mas, para sua surpresa, algo melhor o
esperava. Um bilhete, pequeno, rasgado nas beiradas, sem o menor cuidado, como
que às pressas. Eu o amo! Não
acreditou. Sentiu as pernas bambearem. Saiu sem poder ver nada, apenas ela,
sentada em sua mesa, ao telefone, como se não tivesse acabado de mudar a vida
de alguém.
Preciso
falar com você.
Só
um minuto.
Esperou por apenas um segundo para que
ela desligasse e a rapidez com que o fez apenas reforçou o que o bilhete dizia.
Quero
falar sobre isso,
mostrou o bilhete, esboçando um sorriso.
Ah,
isso, achei que não tinha visto.
Vi
e chamei-a aqui para dizer que a recíproca é verdadeira.
Como?
É
isso mesmo.
Não
precisa dizer isso a mim.
Não?
Você sabia?
Também
não, mas...
Já
sei, você quer pular a parte das meias palavras.
Sandra ouvia tudo porque estava pegando
café bem naquela hora. Não era coincidência, seguiu Gilberto assim que viu que
ele saía com Flávia, e o livro na mão. Gilberto encurralava a moça e quase não
deixava espaço para que ela respirasse. Mas, ao invés de parecer feliz, ela
respirava nervosamente e tentava falar algo que era incompreensível aos seus
ouvidos inebriados pela descoberta. Sandra, que acompanhava a cena pela fresta
da porta, segurava uma lágrima que estava pendendo de seus olhos. Furtado
chegou por trás dela, as mãos em sua cintura, para saber o que atraía tanto sua
atenção.
Flávia!
A jovem conseguiu enfim respirar, já
que Gilberto afastou-se com o susto causado pelo grito do chefe.
O
quê está acontecendo aqui?
Nada, respondeu ela,
ajeitando o cabelo bagunçado por Gilberto.
Sandra estufou o peito, como se fosse
desmascarar alguém.
Eles
estavam se beijando e trocando juras de amor.
Furtado ficou vermelho e ia para cima
de Gilberto, sob protestos das duas moças.
Pára
Furtado, houve apenas um engano. Gilberto, não fui eu quem escreveu esse
bilhete. Nem sei do quê se trata.
Fui
eu, seu idiota!
gritou Sandra.
Que
bilhete é esse?
quis saber Furtado.
Gilberto encheu-se de vergonha e
esticou o pequeno papel ao chefe, que olhou, mas não desamarrou a cara.
Sandra,
que história é essa de amor?
Emudeceram todos, olhando para a ruiva
enrubescida. Menos Flávia, seu alvo era Furtado. Quebrando o silêncio, disse:
Eu
é que pergunto, porque a preocupação com
a Sandra?
Voltaram-se todos para Flávia,
estupefatos.
Gilberto foi o primeiro a sair, ao
perceber que não era vértice daquele triângulo. Voltou para sua mesa enquanto
os três discutiam um rumo para aquela situação. Uma coisa era real, e apenas
uma: Sandra poderia até amá-lo, mas cedeu a Furtado, bem como sua musa. Não
queria mais nenhuma das duas, queria a solidão. E García Marquez, que sempre
tinha uma palavra de consolo e não fingia ser só seu. Apresentava-se com todos
os seus defeitos.
* Jornalista
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