domingo, 18 de setembro de 2016

A volubilidade feminina


* Por Alberto Faria


A Raul Soares


Certa ocasião meteu-se-nos em cabeça uma ideia extravagante (as ideias cruzam no ar, como farelos iluminados, fingindo piscas de ouro): descobrir quem primeiro acoimara de volúvel a mulher.

Devia ter sido algum poeta, mais ou menos molestado, pensamos, porque os alunos de Apolo avultam o número dos infelizes no trato amoroso, desde recuadas eras.

E, presto, resolvemos consultar os idos, invocando-lhes os espíritos ao arrepio da corrente dos tempos. Vieram à baila... nem sabemos quantos uns, nacionais; outros, portugueses, ou espanhóis: estes, de França; aqueles, de Itália... enfim, uma Babel de sombras falantes!

Não esperaram rogos J. Xavier de Matos e Bocage. arcades ambos.

Disse Albano Eritreu, ainda tendo entre dentes a Jônia:

"Mas se lhe era costume o ser traidora,
Fez muito bem, obrou como quem era;
Que não fora mulher, se assim não fora".

E Elmano Sadino, com vista a Anarda:

"Triste quem ama, cego quem se fia
De feminina voz na vã promessa".

Cláudio Manuel da Costa, também sob máscara arcádica, a de Glauceste Satúrnio, cançoneteou logo, à la moda metastasiana:

"Folle chi crede
Trovar fermeza
Nella crudezza
D’una beltá.
Or da se scaccia,
Or a se chiama,
Altro non brama
Ch’el variar".

Mas, receiando que Nise o não entendesse, tornou em pátrio idioma:

"Quem se fia de amor, quem se assegura
Na fantástica fé de uma beleza,
Mostra bem que não sabe o que é firmeza,
Que protesta de amante a formosura.

Anexa a qualidade de perjura
Ao brilhante esplendor da gentileza,
Mudável é por lei da natureza
A que por lei de amor é menos dura".

E, a poucos passos, rouquejou o áspero Antônio de Sousa Macedo:

"............. efeito foi da natureza
Mais mudável em peito feminil".

Lope de Vega, quebrando por um momento a linha das gravidades, dirigiu-se a uma bichana, heroína da Gatomaquia, como se o fizesse a uma senhora:

"¿En qué mujer habrá firmeza alguna?
¿ Quien tendrá confianza?
Si quien dijo mujer, dijo mudança?"

Tomou-lhe a mão o luso seiscentista Jerônimo Corte Real, contente com a novidade dos versos brancos em sua terra, assinalando o despeito de um namorado sem ventura:

"................ a mudança
Em peitos feminis é sempre certa".

Depois, todo cheio ainda da radiosa visão de Eleonora, exclamou Tasso:

"Femmina é cosa garrula e fallace.
Vuole e disvuole: è folle uomo che sen fida".

Francisco I, que enrugara a fronte ao ouvi-lo, limitou-se a dizer a frase, céptica e brutal, que teria escrito numa vidraça do castelo de Chambord:

"Toute femme varie".

frase que Victor Hugo poetizou à distância de séculos, emendando-a a sabor do doudo de Ferrara:

"Souvent femme varie,
Bien fol est qui s’y fie
Une femme souvent
N’est qu’une plume au vent".

nos metros que, para as notas de Verdi, foram assim italizanizados por Piave:

"La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d’accento
E di pensier..."

Findo este recitativo, musical e remoto, Camões, o Adamastor da paixão, incentivou de soslaio a Catarina, a anagramática Nactercia dos olhos verdes:

"Nunca ponha ninguém a esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudável tem firmeza".

E Angelo Poliziano expandiu-se numa estância inteira:

"Quanto è meschin colui che cangia voglia
Per donna, o mai per lei s’allegra o dole!
E qual per lei di libertà si spoglia,
O crede a’ suoi sembianteo a sue parole!
Che sempre è più leggier ch’al vento foglia,
E mille volte il dì vuole e disvuole:
Segue chi fugge, a chi la vuol s’asconde;
E vanne e vien, come alla riva l’onde".

Vagaroso, deu parecer também o solitário de Valchiusa:

"Femmina è cosa mobil per natura:
Ond’io so ben ch’un amoroso stato
In cor di donna picciol tempo dura".

Dante falou, de seguida a Petrarca:

"Per lei assai di Meve si comprende
Quanto in femmina fuoco d’amour dura,
Si l’occhio o’l tatto spesso nol raccende".

Como censurando o discípulo amado, que, talvez por gratidão a Beatriz, alterara um pouco o documento antigo, acudiu supercilioso o cisne de Mântua:

"Varium et mutabil semper
Femina".

Virgílio não se afastara muito de Terêncio:

"........... novi ingenium mulierum.
Nolunt, ubi velis; ubi nolis, cupiunt ultro".

Nós ríamos já a pano solto do congresso de plagiários célebres.

Mas, deveríamos ouvir também os gregos, até Homero...

Nisto, apareceu um ancião, fortemente acurvado, com largas barbas alvas sobre o peito nu, a gaguejar que fora ele quem antes de qualquer pusera coima de volúvel à mulher.

No intruso, que viera desmanchar a festa, sem fazer versos, mas dizendo verdade, reconhecemos o pai Adão.

Parecia ainda engasgado com a maçã da mãe Eva...

De quando data a volubilidade feminil!



NOTA ÚNICA


Neste artiguete de há dois lustros, objetivando risonhamente um lugar-comum da poesia, limitaramo-nos à simples cópia dos exemplos respectivos, em geral pela ordem inversa de sua produção, conforme advertência prévia.

Assim, não contribuímos para um equívoco, o de Medeiros e Albuquerque em Souvent femme varie..., bela e instrutiva conferência de 1909, ora reunida a outras do autor no volume O silêncio é de ouro, Rio de Janeiro, 1916:

"Tasso tinha dito:
Femmina, cosa mobile per natura.
Veio Petrarca e repetiu a mesma sentença, com as mesmas palavras:
Femmina è cosa mobile per natura".

Atribuir a Petrarca o uso de um decassíbalo de Tasso, quando este nasceu 170 anos depois da morte daquele, constitui anacronismo, que só se explica por lapso de pena. O contrário estaria na mente do conferencista ilustre: Petrarca tinha dito, etc. Veio Tasso e repetiu, etc. Aliás, o verso empregado por ambos, Petrarca, In vita de Madonna Laura, soneto CXXXI, Tasso, Aminta, a. I. c. II, pertence originariamente a Virgílio, sendo uma tradução da Eneida, 1. IV, versos 569-70, em prosa direta e comprida: mulier (res est) semper varia et mutabilis. Parafrasearam Virgílio, através de Petrarca, Camões, Lusíadas, c. IX, est. 46, ou, mais caracterizadamente, soneto XIV e glosas ao mesmo; através de Camões, Cláudio, soneto LXXIII, Macedo, Ulyssipo, c. X. est. 58, Corte-Real, Naufrágio de Sepulveda, c. II, versos 230-1. Na Jerusalém libertada, c. XIX, est. 84, de que nos serviramos, Tasso preferiu imitar Terêncio, Eunuco, a. IV, c. VIII, através de Poliziano, Stanze, L. I, 14, cujo adminículo "Che sempre è più leggier ch’al vento foglia", aproveitaria também ao secundário Piave, no "mobil qual pluma al vento", que se acredita apenas derivado do "Volubil sempre come foglia al vento, de Boccaccio, Filostrato, p. VIII.

Esta edificante nota crítico-bibliográfica deve pôr de sobreaviso os habituados ao auxílio, às vezes confuso e não raro falho, de Fumagalli...

(Aérides, 1918).


* Jornalista, professor, crítico, folclorista e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário