sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A primeira viagem

* Por Adonias Filho


A partir do primeiro momento em que meu pai disse ter que ir ao arruado e minha mãe pediu: leve o menino, Adonias, que ele precisa ver o mundo", esqueci os brinquedos e perdi o sono. Comecei a me julgar um rei e fui, durante dois dias, a própria inquietação naquele menino de dez anos de idade. No sábado, dia da viagem e antes que alguém acordasse no casarão da Baluarte, já estava de pé, a aguardar que a claridade se fizesse.
   - Boa viagem, filho - a mãe disse na despedida e, a brincar, - Tome conta de seu pai.

Agora montado, ao lado do seu pai e do seu tio José de Góes, já descendo a ladeira para ganharmos a estrada real, eu era o mais feliz dos viventes. A mula ruana, tão pequena quanto minha amiga, avançava com tamanha disposição que achei se alegrasse por levar-me na primeira viagem. Achei mesmo que as árvores, por não serem gente, se maldiziam por estarem presas ao chão pelas raízes.

Dúvida não tinha que elas, as árvores me invejavam.

Manhã enxuta de muita claridade, como sol nascendo a mostrar o céu azul  e sem nuvens. Margeavam o ribeirão, o São José,  que do santo parecia ter herdado a tranquilidade e a paz. Casas e barcaças de secagem de cacau, por onde passávamos, cachorros que latiam, vacas e ovelhas, cavalos e burros nos gramados que morriam nas cancelas. Estrada estreita, de pó que já foi lama, com borboletas de todas as cores a voltarem como bailarinas.
- Não é preciso correr - o pai disse - que Itajuípe não fica longe.

Meus olhos se escancararam com surpresa e espanto, quando viram Barra de São José, as casinhas como num presépio, a igreja pintadinha de branco a contrastar com o verde tão verde dos coqueiros, das jaqueiras e dos cacaueiros. A surpresa cresceu e o espanto aumentou, quando, no rio surgiu a balsa que ia e vinha conduzida por braços que a puxavam entre as cordas de aço, gigantesca embarcação que nos levou a todos de uma só vez sem que precisássemos desmontar.
- Aqui é Sequeiro de Espinho - foi a vez do tio José de Góes dizer - e aqui houve muita guerra antes que chegasse a estrada de ferro.

Passamos rapidamente e, se ouvia os apitos a penetrarem nas matas, não vi o trem de que o povo tanto falava. O ribeirão, e porque o rio Almada o pegou em suas águas, já ficou atrás. A estrada, agora aberta na direção de Itajuípe, muito se alargava. E quanto mais nos aproximávamos do arruado, as margens mais se humanizavam com gente e vozes. As lavadeiras e suas canções como que, aquecidas pelo calor do vento.

E de repente, na curva da estrada, Itajuípe apareceu.
O arruado novo, cinquenta casas que me pareciam azuladas na distância, então sobreveio a ideia de que ele possuía, mais do que qualquer outro a alma do lugar. Apurei a vista para ver melhor. E vi o casario, como a temer o rio, subir a encosta em busca da igreja ainda em esqueleto. Protegia-o o centro dos arvoredos, que afastando o sol e o mormaço tudo sombreava. O arruado, assim de longe, era de fato muito belo. E foi com o braço distendido que o pai disse:
- Grave para não esquecer, filho, que aí está Itajuípe.


* Jornalista, crítico, ensaísta e romancista, membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário