segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Morte pelo ridículo



"O ridículo mata e mata sem sangue". Esta sábia constatação foi feita por um dos mais profundos analistas da vida carioca do início do século XX, o escritor Afonso Henrique de Lima Barreto. Sua vida foi das mais trágicas, mais sofridas, mais dramáticas, tendo ele sido, inclusive, internado em um manicômio para curar-se de alcoolismo. Observador arguto e dotado de grande capacidade de reproduzir em texto comportamentos e modos de falar do povo, particularmente dos pobres, dos boêmios, dos alcoólatras e dos pequenos burgueses, foi vítima de preconceito por ser negro. Só muito tempo depois de morto (em 1922) ‚ que os críticos e a intelectualidade brasileira reconheceram o seu valor, embora não tenham ainda feito justiça ao seu talento e à sua importância para a cultura nacional.

Além de quatro romances, dois dos quais clássicos da nossa literatura ("Recordações do Escrivão Isaías Caminha", "Triste Fim de Policarpo Quaresma", "Numa e a Ninfa" e "Vida e Morte de M. J. Gonzaga"), deixou artigos e crônicas, reunidos nas coletâneas "Os Bruzundungas, Feiras e Mafuás, Vida Urbana e Marginália". Lima Barreto, portanto, ao chegar à conclusão de que o ridículo mata lenta, mas seguramente, qualquer reputação, sabia do que estava falando. O alcoolismo levou-o a sentir na pele essa situação. Muitos pseudo-intelectuais, no entanto, não sabem disso. Muitos pavões enfatuados e vazios também não. Muitos valentões, que se julgam senhores do mundo, idem. Muitos atores canastrões, ou cantores desafinados, ou compositores de ocasião, ou poetastros, ou romancistas de água com açúcar, etc, etc, etc, igualmente não percebem quando representam esse papel. São cegados pela vaidade. Perderam a capacidade de enxergar o óbvio, o que todos vêem, o que está claro e cristalino e que só eles não se dão conta. Estão mortos (sem sangue) pelo ridículo, mas esqueceram de avisá-los.

Nada apavora mais quem vive de escrever do que este perigo. Percebendo ou não, todos estamos sujeitos a situações, digamos, vexatórias. Uma escolha inadequada de tema, uma abordagem desastrada, piegas ou pueril de um assunto qualquer, uma ilusão acerca de uma suposta qualidade que apenas o autor vislumbra e zás...! O infeliz resvala, rodopia e vai ao chão. Leva um tombo, às vezes impossível de se recuperar. Pior ridículo é quando quem está fazendo esse papel sequer percebe. Aí é trágico. O infeliz é alvo de cochichos, de risadinhas, de anedotas e de chacotas, todos pelas costas. E quando alguma alma piedosa o alerta, em vez de agradecer, mostra-se ainda mais agressivo com quem lhe prestou esse favor. Sente-se ofendido. Assume ares de quem teve a  dignidade ferida. Torna-se inimigo de quem o alertou. Os extremamente vaidosos agem invariavelmente dessa maneira.

O escritor paulista do século XVIII, Matias Aires Ramos da Silva (quase esquecido), afirma: "Trazem os homens entre si uma contínua guerra de vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua: a vaidade é como um instrumento, que tira dos nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma distância imensa, ao mesmo tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos outros ainda mais perto, e maiores do que são". Não há caminho mais curto e mais seguro para o ridículo do que este. Ou do que atacar publicamente, com argumentos pueris (ou mesmo lógicos), quem tenha reputação solidamente firmada mediante uma obra consensualmente admitida como de qualidade. É o que ocorre com muitos críticos, acostumados apenas a jargões e lugares-comuns ao avaliar um livro, uma peça, um filme, um quadro ou uma escultura e acham que sua função é unicamente falar mal das produções alheias. Ou, o que é pior, quem se desmancha em elogios ao que é ostensivamente ruim.

Quantas vezes não nos sentimos mal, como se os atingidos estivéssemos sendo nós, ao testemunharmos alguém representando um papel ridículo! Fazendo um discurso tolo, eivado de referências incorretas ou inadequadas, por exemplo. Atuando em uma peça teatral e esquecendo a fala, ou com dicção ruim, ou entrando em hora errada e fora do contexto, ou tropeçando e caindo no palco etc. Aliás, todos os que se apresentam em público correm estes riscos. Daí a necessidade de um contínuo autopoliciamento. Daí ser preciso contar com grande dose de humildade para nunca se achar o perfeito, o intocável, o superior aos outros. Daí ser indispensável rigorosa e permanente autocrítica, para corrigir os defeitos. E mesmo com tudo isso, nunca se está a salvo dessa "morte súbita", quase sempre sutil e indolor, causada pelo ridículo.

Boa leitura!

O Editor.

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Um comentário:

  1. Seria bom que, quando fôssemos enveredar para o caminho do ridículo, desconfiássemos e mudássemos de rota.

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