terça-feira, 27 de setembro de 2016

Brincar e brinquedos

* Por Harry Wiese

Brincar é coisa séria. É tão séria que uma das funções da literatura é a função lúdica do espírito. Tem a ver com a ideia da arte como jogo. O poeta é uma criança que utiliza suas emoções, como um menino que edifica castelos na areia da praia, ou faz bolhas de sabão no jardim. A comprovação está no excerto do poema de Martins Fontes, “Inocência”.

“Criança ingênua, o dia inteiro,
com os meus caniços de taquara,
ficava eu, ao sol de então,
junto dos tanques, no terreiro,
soprando a espuma, leve e clara,
fazendo bolhas de sabão”.

De acordo com Baudelaire, “A poesia é a infância que se encontrou de novo”.

Lembro-me das brincadeiras e brinquedos da minha infância. Bom era fabricar o próprio brinquedo e depois brincar com ele. Brinquedos comprados eram raros. Eram caros ou não existiam como hoje.

Bom também era acompanhar o processo de fabricação na pequena oficina do meu tio. Ele fazia carrinhos de bois, caminhões, figuras de animais, tudo em madeira. Algum tempo antes do Natal éramos proibidos de acompanhar seu trabalho. Tinha a ver com os presentes. O barulho do vai e vem do serrote e as marteladas eram ouvidas com satisfação e impunham certa magia: a de ser coisa boa. Pelo barulho também tentávamos adivinhar o tipo de brinquedo que ele estava fabricando.

Fazer o próprio brinquedo era fascinante. Era preciso sonhá-lo, planejá-lo e executá-lo. Todo brinquedo tem origem no sonho. É uma coisa meio idêntica com a filosofia de Platão: o mundo das ideias. Vou exemplificar: para brincar de polícia e ladrão precisávamos de armas. Armas, quase de mentirinha, é verdade. Fazíamos espingardas de ar comprimido. Sonhávamos com a arma quase de mentirinha, íamos ao bambuzal escolher o gomo ideal do bambu, nem muito grosso, nem muito frágil, o cortávamos e o lixávamos. Ainda era preciso o empurrador, que era um bambu fininho que coubesse no espaço do bambu maior, um pouquinho mais curto, pois a função dele era empurrar a laranjinha, bem apertada contra aquela que ficava na outra ponta. O ar comprimido se encarregava de empurrar a laranja para fora, dando um estrondo. Saía até uma fumacinha. Isso era fascinante. Essa brincadeira somente poderia ser procedida na época em que houvesse laranjas, caídas, evidentemente, caso contrário, a prestação de contas descambava em broncas e castigos.

Para nós, meninos, confeccionar o próprio estilingue era colocar a gente nele. A funda, como também era chamada, tinha que ter a cara da gente. O processo iniciava com a procura e seleção da forquilha. Ficávamos horas a fio na capoeira à procura. Tinha de ser especial. A escolha da borracha também era fundamental, pois ela dava a impulsão às pelotas de argila ou mesmo a pedras redondas especialmente selecionadas nos caminhos das roças ou no raso dos riachos. Os elásticos eram conseguidos nos postos de gasolina e oficinas mecânicas, provenientes de câmaras de ar de carros e caminhões. As amarrações das borrachas à forquilha e ao couro que segurava a pedra ou a pelota de argila precisavam de justeza para que não recebêssemos uma boa pelotada na face.

Como morávamos na colônia, era evidente que gostássemos de animais. Animais quadrúpedes foram construídos com duas laranjas: uma maior que formava o corpo e uma menor que constituía a cabeça. Eram interligadas com um pauzinho fino e pontiagudo. Chifres, rabos e pernas também eram paus pontiagudos ou espinhos. Assim formávamos animais de rara beleza e nos tornamos artistas sem saber.

Na época da minha infância, muitos adultos que não tinham coragem para brincar, pois todos os adultos têm uma criança dentro de si, começaram a fabricar brinquedos. Fabricar brinquedos é uma forma de brincar. Este processo, principalmente, coube às mulheres. As mulheres faziam as bonecas para as filhas. Dupla alegria: a de confeccionar brincando e a perspectiva de brincar das meninas.

Brincando a gente aprendia. Também brincávamos de trabalhar. Brincar de trabalhar é diferente de trabalhar. Como brincávamos com os animais, era evidente que necessitássemos de trabalhar. Trabalhar significava plantar e colher. Assim, aos poucos tínhamos as nossas roças com milho, mandioca, batata e muitos outros produtos. Ficávamos encantados vendo as plantas nascerem, crescerem e ficarem maduras.

E desta maneira, cresci e crescemos num mundo simples, mas fantástico. Formamos a nossa base, nossa estrutura e o nosso futuro. O trabalho com prazer na vida adulta está alicerçado na forma de brincar na infância.

Como a literatura também tem a função lúdica do espírito, tenho certeza de que bons escritores e bons poetas são aqueles que conseguem transformar textos em brinquedos. Quem consegue esta proeza terá leitores de todas as idades, pois se engana quem pensa que adultos não brincam. Brincar é coisa séria!

* Poeta, escritor e professor, autor dos livros “Meu canto-amar”; “Girata de espantos”; “Nebulosa de amor”: “Contos e poemas de Natal”; “A sétima caverna”,”De Neu-Zürich a Presidente Getúlio: uma história de sucesso”; “A inserção da língua portuguesa na Colônia Hammonia”: “Terra da fartura: história da colonização de Ibirama”: “Teoria da Literatura”: “IbirAMARes e outros poemas” e “A história das árvores-homens e outras crônicas”. wiese@ibnet.com.br e www.harrywiese.pro.br


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