Reféns
* Por
Marcelo Sguassábia
Poderia apertar aquele
parafusinho minúsculo e a coisa voltaria a funcionar perfeitamente. Bastaria um
quarto de volta em sentido horário, com uma chave philips e pronto. Problema de
mau contato. Mas olhei pra cara da freguesa e vi que ela devia usar Lancôme da
testa à unha do pé, e que só aquele solitário na mão direita valia mais que a
minha oficina inteira. Então pintei a coisa bem preta para valorizar o serviço.
Pelo menos três dias na bancada, para testes no voltímetro. Provavelmente era o
diodo do transistor com o relê de amperagem em corrente descontínua, e pra
trocar a pecinha só substituindo a placa toda – importada do Japão. Seria uma
das hipóteses, mas para ter certeza, só abrindo tudo e aferindo cada um dos
componentes na oficina.
- Olha, dona, por
enquanto a senhora acerta comigo a visita técnica. Pode ficar tranquila que só
toco o serviço com a aprovação do orçamento. Mas se for isso mesmo que estou
pensando, melhor vender como sucata e comprar outro. Também não vale a pena
levar à Autorizada, eles vão querer cobrar umas três vezes mais da senhora. Mas
olha, pode ficar à vontade, pelo amor de Deus, não estou querendo forçar nada,
faça como quiser...
Daí a três dias ela
liga perguntando se o orçamento está pronto. Valorizo um pouco mais, digo que
tenho que baixar o manual de especificações atualizadas do produto no site do
fabricante e peço que ligue de novo depois de amanhã, mas que provavelmente é
aquilo que lhe disse. Ela torna a ligar no sábado às nove, eu prometo para
segunda. Na segunda eu confirmo a morte prematura de todo o circuito impresso.
Ela vende para mim mesmo o aparelho ainda na caixa por R$14,50 e já pede que eu
encomende um novo. Falo com aquele meu brother da Santa Ifigênia, e combinamos
350% em cima do preço de custo. A título de honorários. Aperto o parafuso da
belezinha que me caiu no colo por R$14,50 e passo pra frente pelo preço do
novo, para outro cliente.
***
Está tudo
esquematizado, Lontra. A gente começa falando em possibilidade de apendicite -
pela alta ingestão de milho verde na véspera associada à estafa física causada
por 16 voltas ininterruptas no pedalinho do lago municipal, conforme relatado
pelo próprio paciente.
Mas vamos devagar para
não assustar a família, até porque a gente sabe que o cara não tem nada. Se
começar a meter muito medo, eles vão atrás de uma segunda opinião e aí a gente
se encrenca.
Ratazana libera os
trâmites necessários para os exames preliminares, os raios X e os laboratoriais
de rotina. Esquema quinze/quinze/quinze pra cada um dos três, como acertado.
Golfinho, homem de confiança do Pantera, coordena todo o processo de
diagnóstico por imagem (lembrando que aí o esquema é sessenta/dez/dez/dez/dez e
que é indispensável a rubrica do Potranca, para a perícia não pegar).
Daí pra frente a gente
coloca o infeliz num tomógrafo e diz que o milho verde do quiosque reagiu
quimicamente no duodeno e seus grãos transmutaram-se em quistos, um caso
incomum mas não propriamente raro nos anais da medicina. Aí a gente diz que é
necessária uma ressonância para sacramentar o diagnóstico. Como todos sabem,
este exame ter de ser no cash. Mas tudo bem, sondei a ficha e vi que o infeliz
é fazendeiro em Palmas. Quanto aos honorários fica 50% para mim e a outra
metade para dividir com o zoológico, conforme organograma. Peço que o Avestruz
envie cópia deste aos demais envolvidos, que deverão deletar esta mensagem
assim que lida. Bom trabalho a todos.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Muito parecido com a realidade.
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