A Infância
* Por Raymundo Netto
Era início do século
XX. Eu era Américo, um menino como qualquer outro que crescia numa, até então,
pequena cidade de ruas descalçadas. Eu era apenas um garoto que me entretinha
sentado no cume de um frade-de-pedra, esquecido do mundo, maravilhado pela
delícia despreocupada de um festival de arraias de papéis coloridos enfeitando
os céus durante tão calorosos dias.
Minha mãe, Damiana (a
quem sempre me referi como Mãe Miana) havia se ido precocemente ao dar à luz.
Meu pai, o Sr.
Estanislau, tocava música incidental no Cine Polytheama, um dos primeiros
cinematógrafos da cidade. Os cinematógrafos, para quem não sabe, deram lugar
aos Cines Di Maio, Majestic e Moderno, antes da terceira década deste século
que passou.
Papai faleceu,
brevemente também, vítima de mal súbito, deixando-me aos cuidados de minha tia
e madrinha Severina, uma bondosa viúva de uma natureza extremamente afável,
conhecida pelo fraterno apelido de Sílvia.
Ela recebia uma pensão
minguada do Tio Nathércio, que morrera durante a época da grande seca vitimado
pela epidemia de varíola que assolou a cidade, por isso, precisava fazer
serviços de costura para a vizinhança. Muitas das vizinhas mal tinham como
pagar-lhe ao final do mês, no que ela dizia:
- Mais importante é a
nossa amizade. Esta não tem preço!
Daquela máquina de
costura, móvel de honra na sala e presente da avó Bebé, colocada
estrategicamente diante da sacada balaustrada, minha tia cumprimentava a todos
que por ali passavam. Dava conselhos, receitas, orações, além de se atualizar
das novidades da cidade que, geralmente, se sabia no jardim Sete de Setembro,
no centro da Praça do Ferreira, naqueles tempos.
Após a morte do
padrinho, titia ia à rua raríssimas vezes, restringindo as saídas às feiras e
às novenas da Coração de Jesus, a “Igreja dos Albano”. Das novenas, estendia-se
um pouco indo à Botica do Ferreira para comprar remédios a fim de aliviar-se de
uma antiga gastrite que a machucava bastante.
Morávamos numa
casinhola de paredes caiadas à Rua Formosa. Era um pequeno imóvel de paredes
geminadas, sem janelas laterais e com um pequeno quintal, universo de minhas
primeiras aventuras. Há mais ou menos uns vinte anos atrás, naquela casa, ainda
havia um pé de seriguelas que minha tia plantara. Será que ele ainda está lá?
Duvido muito...
No centro de sua
fachada ladeada por dois frontões, acima da cimalha, havia um grande trevo em
relevo. Minha tia costumava dizer que era sinal de boa sorte.
Através dos dois
“jacarés”, na platibanda, eu e a meninada engelhávamos os dedos naqueles
gostosos banhos de bica, quando a chuva engrossava na cidade.
A casa, pouco
mobiliada, tinha, num canto, um pequeno oratório talhado em madeira na forma da
Igreja do Pequeno Grande, local onde meus padrinhos haviam se casado. Fora
presente de um carpinteiro paraibano, de nome Raymundo Alves Ferreira, o Cabo
Raymundo, que vivia em Recife.
Naquela sala eu
dividia espaço com velhas gaiolas de arame, heranças afetivas de meu padrinho,
que orgulhosamente limpava todos os dias. Lembro-me, ainda com dor, da tristeza
da minha tia quando um galo-de-campina, de nome Leonel, não amanheceu...
À porta, meninos
apenas em calções, portando acima da cabeça, rodilhas e tabuleiros com
quebra-queixos, bolos, pés-de-moleque, roletes de cana, paulista, pitombas,
além de outros doces, pamonhas e rapaduras, gritavam felizes e alegres vendendo
as suas iguarias.
Ao anoitecer, quando
não colocava as cadeiras na calçada, a madrinha derreava-se em sua poltrona
ornamentada de palhinha-da-índia, próximo à sacada; estirava as pernas,
projetando um par de chinelas de cordovão, que recebera do padrinho quando em
viagem ao Rio de Janeiro; acendia uma velinha de carnaúba que encarvoava a
parede e, assim, passava a ciciar os segredos de sua vida como uma brisa
trespassa as folhas frescas de um cajueiro. Será que as pessoas ainda sabem o
gosto de colocar os pés nas areias frias das sombras de cajueiros à tardinha e
saborear a carne suculenta e doce de um caju? Será que ainda fazem isso?
Ao seu lado, eu me
atrapalhava nas lições de gramática, o que a madrinha, de pronto, me acudia.
Com sua voz trêmula me dizia: “Quem não sabe escrever e falar não é respeitado
pelas pessoas. Veja lá...”
Em nossa casa havia
apenas um quarto, o da madrinha.
À noite eu armava a
minha rede de varandas curtas na sala. Muitas vezes eu podia ouvir, através de
um silêncio inquietante, os buchichos de bêbedos à nossa porta que,
frequentemente, amanheciam lá, adormecidos e tão bem abrigados na soleira fria
de pedra.
Outras noites, quando
o silêncio se fazia ainda mais presente, os cães das redondezas ladravam
saudando a lua prateada que despontava livre dos terríveis arranha-céus que
hoje a enclausuram. Eu adorava sentir seus raios luminosos que sangravam pelas
frinchas do telhado num acalanto a Fortaleza que, nas manhãs, em dias de
chuvisco, exalava uma fragrância de areia de ruas molhadas.
Lumiado por um
candeeiro de querosene, eu sonhava sonhos de menino, em asas de falcões,
despertando com a luz do sol que brilhava intensamente pelas rótulas coloridas
da janela da sala.
Que saudade daqueles
tempos, meu Deus!
Vocês podem acreditar
que a madrinha, a despeito da tragicidade de minha vida e das condições
precárias que nos perseguiam, adulava-me como se adula um bebê. Tratava-me
cheio de mimos, cuidados e cafunés. Seus dedos finos e perfeitos percorriam
trilhas de pensamentos florentes nos momentos de dor e medo de todo infante.
Não raro, em datas de
festas, ela aparecia com visgo ou patinhos de alfenim que vinham do engenho do
coronel Façanha, compadre dela, lá das terras da Priaoca.
Ela era toda a minha
família. E eu era o que restou da dela.
Trecho extraído de “Um
Conto no Passado – cadeiras na calçada”/ prêmio de Incentivo à Publicação e
Divulgação de Obra Inédita na categoria Romance pela Secretaria de Cultura do
Estado do Ceará em 2004.
* Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado:
cadeiras na calçada, e um sonhador declarado que ainda se encanta com as
pessoas.
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