quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Estranha máquina de devaneios

* Por Marcelo Sguassábia


Habituais ou esporádicos, todos somos lavadores de louça. Lúdico passatempo, esse. Sim, porque ninguém vai para a pia e fica pensando: agora estou lavando um garfo, agora estou enxaguando um copo, agora estou esfregando uma panela. Não. Enquanto a água escorre e o bom-bril come solto, o pensamento passeia por dobrinhas insuspeitas do cérebro.

Numa aula de história, em 1979. O professor Fausto e a dinastia dos Habsburgos, a Europa da Idade Média e seus feudos como se fosse uma colcha de retalhos. O Ypê no rótulo do detergente leva ao jatobazeiro e seu fruto amarelo de cheiro forte, pegando na boca. Cisterna sem serventia. Antiga estância de assoalhos soltos. Rende mais, novo perfume, fórmula concentrada com ação profunda.

A cidade era o fim da linha, literalmente. O trem chegava perto, não lá. Trilhos luzindo ao meio-dia. Inertes e inoperantes. As duas tábuas de cruzamento/linha férrea dando de comer aos cupins. Crosta de queijo na frigideira, ninguém merece. Custava deixar de molho? Arranco o pâncreas pela goela desse um.

O mingau de maizena vinha fumegando, polvilhado de canela. Nas mãos de Parkinson da velha Dita, que perigo. Agasalho doce antes de dormir, prêmio de quem fez lição direito. Diga às suas pernas que fico. E assim foi, ao me pedir para ficar só mais um pouco. Para mais uma. E outra. Torneira aberta e celular com toque baixo é jogo duro. Deixa fechar essa disgrama um pouco... Não, acho que é no vizinho. É, não tocou aqui, não. Fosse coisa séria ligavam no fixo também, notícia ruim chega logo.

Tanta briga por causa de um escroto de um patinho de borracha. Pensar que aquilo era o conflito, quando havia. Professor Fausto lá, traçando na lousa seu tabuleiro feudal, falando da colcha de retalhos e da monarquia de Habsburgo. Tá demorando muito pra escoar essa água, cadê o diabo verde? Só queria o segredo de lidar contigo, juro mesmo. Esse inquérito todo, pra quê... não ganharia nada te escondendo a verdade, procura compreender meu lado. Ah, dessa vez acho que é o meu celular.

A louça, agora seca. A alma, agora lavada.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Lavação de louça poética e surpreendente. Em cada frase um caminho, uma novidade, um gostoso devaneio.

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