sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O jogador 12 do Sport

* Por Urariano Mota


Os jornais de Pernambuco um pouquinho exageravam nas manchetes para a batalha de uma noite em 2009: “O jogo da vida! Agora vale a classificação! Uma vitória para a história!”. Mas nas palavras dos jornalistas de qualquer cidade do Brasil nada houve que se comparasse a estas de um imparcial repórter do Recife: “Um feito para todos os séculos. Ao consegui-lo, todo e qualquer rubro-negro do Sport poderá bater no peito e dizer que seu time está entre os 16 melhores da América. O presidente Sílvio Guimarães, o capitão Durval, dona Maria José e os milhares de anônimos da geral, mais arquibancadas, cadeiras...”.

É sobre esse anônimo com sua aura, calor ou magia, sem o qual nenhum time existe, que desejo falar.  Ele, o torcedor, se revelou para mim no primeiro jogo do Sport contra o Colo-Colo, no Chile. Eu não fui a Santiago, mas pude ver a partida em um bar, em pé, ao longo de um balcão em Olinda. Para terem ideia da importância, eu perdi, saí de um show dos Demônios da Garoa, de graça, no exato instante em que os endiabrados cantavam Iracema. Mas não perdi este retrato: no bar, todos torciam. Todos. Garçons, televisor, clientes, garrafas, copos, colheres, rua, garfos e urras. Antes do apito, um cidadão junto a mim, a quem jamais eu havia visto, começa a sua confissão sem me olhar, com os olhos fitos na tela.

- Meu Deus, eu devia beber um coquetel de Lexotan. (Os times vêm para o centro do campo, e por isso recebo uma cotovelada.) Pra mim, o Sport é mais importante que o amor.

O barulho no Caldinho da Codorna é muito grande, e por isso julgo ter ouvido mal:  - Melhor que o amor?! Por quê?

-Porque transcende.

Mais uma vez julgo estar muito mal das ouças. Tem muita buzina lá fora, são 18 de fevereiro, estamos na semana antes do carnaval em Olinda, a tensão é imensa, e não sei por que até a cerveja e a cachaça não fazem efeito, evaporam-se. Por isso, mais uma vez pergunto, achando estranha a palavra transcendência naquele contexto:

- Trans-cen-de, é isso? Por que transcende?

E o torcedor com as mãos, como reforço da definição do transcende: - Porque vai além, é muito além do amor. É o Sport.

Volto para a telinha. As cores vermelha e preta cintilam, brilham, ofuscam. Há uma figura de leão em pé a segurar um escudo nas camisas, um rumor surdo a correr todos os lugares, uma respiração suspensa e coletiva. Por Deus, então entendo bem o que é transcender. Compreendo o que o jogador número 12 quis dizer. Pelo menos durante estes únicos e inesquecíveis 90 minutos de êxtase e agonia, o Sport transcende. Então Ciro faz um gol. Sport, 1 a 0. Então Ciro dá um passe para Wilson. Sport, 2 a 0.  Então eu, este torcedor equilibrado, que só deixou de ver Os Demônios da Garoa, que só deixou de ouvir Iracema, a música da infância, perco a razão e grito em coro: “Cazá, Cazá, Cazá, a turma é mesmo boa... Sport, Sport, Isporte!”. O garçom pula, a tevê grita, os carros buzinam, a noite de Olinda vira dia. O jogo termina, Sport 2 a 1. Todas as contas se pagam na maior felicidade.

No outro dia é que notei uma falta. Entre todos os clientes, copos, cadeiras e garrafas, havia um torcedor que não era rubro-negro. Eu fiquei sem a minha carteira. Mas aqui pra nós, pela vitória do Sport, francamente, achei barato.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros


Um comentário:

  1. Quando o resultado é a vitória, aceitamos as maiores privações. Uma coisa compensa a outra.

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