sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O estado de vigilância nos países livres

* Por  Noam Chomsky


Tradução de Mário Albuquerque (da tradução em espanhol de Jorge Majfud)


Nos últimos tempos, temos aprendido muito sobre a natureza do poder do Estado e as forças que impulsionam suas políticas, além de aprender sobre um assunto estreitamente vinculado: o sutil e diferenciado conceito de transparência.

A fonte de informação, por óbvio, é o conjunto de documentos referentes ao sistema de vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA, sigla em inglês) dados a conhecer pelo valoroso lutador pela liberdade, o senhor Edward J. Snowden, resumidos e analisados de grande forma por seu colaborador Glenn Greenwald em seu novo livro “Sem lugar para esconder-se” (No Place to Hide)

Os documentos revelam um notável projeto destinado a expor a vigilância do Estado informação vital acerca de toda pessoa que tenha a má sorte de cair nas garras do gigante, que vem a ser, em princípio, toda pessoa vinculada com a moderna sociedade digital.

Nada tão ambicioso foi jamais imaginado pelos profetas distópicos que descreveram  assustadoras sociedades totalitárias que nos esperavam.

Não é um detalhe menor o fato de que o projeto seja executado em um dos países mais livres do planeta e em radical violação da Carta de Direitos da Constituição dos Estados Unidos, que protege os cidadãos de perseguições e capturas sem motivo e garante a privacidade de seus indivíduos, de seus lugares, seus documentos e pertences.

Por mais que os advogados do governo tentem, não há como reconciliar esses princípios com o assalto à população revelado pelos documentos de Snowden.

Também vale a pena recordar que a defesa dos direitos fundamentais à privacidade contribuiu para provocar a revolução de independência desta nação. No século XVIII o tirano era o governo britânico, que se arrogava o direito de imiscuir-se na vida dos colonos destas terras. Hoje, é o próprio governo dos próprios cidadãos estadounidenses que se arroga este direito.

Todavia, hoje a Grã-Bretanha mantém a mesma postura que provocou a rebelião dos colonos, ainda que em escala menor, pois o centro do poder tem se  destacado nos assuntos internacionais.

Segundo The Guardian e a partir de documentos fornecidos por Snowden, o governo britânico tem solicitado à NSA analisar e reter todos os números de faxes e telefones celulares, mensagens de correio eletrônico e localização de IP de cidadãos britânicos.

Sem dúvida, os cidadãos britânicos (como outros clientes internacionais) devem estar cansados de saber que a NSA intercepta de maneira rotineira roteadores, servidores e outros dispositivos de computadores exportados pelos Estados Unidos para poder implantar instrumentos de espionagem em suas máquinas, tal como informa Greenwald em seu livro.

Ao mesmo tempo em que o gigante satisfaz sua curiosidade, qualquer coisa que escrevemos em um teclado de computador pode estar sendo enviado no mesmo momento a cada vez mais enormes bases de dados do presidente Obama em Utah.

Por outra parte, valendo-se de outros recursos, o constitucionalista da Casa Branca parece decidido a demolir os fundamentos de nossas liberdades civis, fazendo com que o princípio básico da presunção de inocência, que remonta à Carta Magna de quase 800 anos, tenha sido esquecido desde muito tempo.

Porém, essa não é a única violação aos princípios éticos e legais básicos. Recentemente, o New York Times informou sobre a angústia de um juiz federal que tinha que decidir se permitia ou não que se alimentasse pela força um prisioneiro espanhol em greve de fome, que protestava dessa forma contra seu encarceramento. Não se expressou angústia alguma sobre o fato de que esse homem está preso há 12 anos em Guatánamo sem julgamento, uma das muitas vítimas do líder do mundo livre, que reivindica o direito de manter prisioneiros sem julgamentos e submetidos a torturas.

Essas revelações nos induzem a indagar mais a fundo sobre a política do Estado e sobre os fatores que a impulsionam. A versão habitual que recebemos é que o objetivo primário de ditas políticas é a segurança e a defesa contra nossos inimigos.

Essa doutrina nos obriga a formular algumas perguntas: a segurança de quem e a defesa contra que inimigos? As respostas têm sido assinaladas, de forma dramática, pelas revelações de Snowden.

As atuais políticas foram pensadas para proteger a autoridade estatal e os poderes nacionais concentrados nas mãos de uns poucos grupos, para defendê-los contra um inimigo muito temido: sua própria população, que, claro, pode converter-se em um grande inimigo se não for controlada devidamente.

Sabe-se há muito tempo que possuir informação sobre um inimigo é essencial para controlá-lo. Obama tem uma série de predecessores nesta prática, embora em seu governo isso tenha chegado a níveis sem precedentes, como hoje sabemos graças ao trabalho de Snowden, Greenwald e alguns outros.

Para defender-se do inimigo interno, o poder do Estado e o poder concentrado dos grandes negócios privados, essas duas entidades devem manter-se ocultas, enquanto que, ao contrário, o inimigo deve estar completamente exposto à vigilância da autoridade do Estado.

Este princípio foi lucidamente explicado anos atrás pelo intelectual especialista em política, o professor Samuel P. Huntington, que nos ensinou que o poder se mantém forte quando permanece na sombra; exposto à luz, começa a evaporar-se.

O mesmo Huntington faz uma ilustração explícita. Segundo ele, “é possível que tenhamos que vender a idéia (intervenção direta ou alguma outra forma de ação militar) de tal forma, que se leve a crer na impressão errônea de que estamos combatendo a União Soviética.

A percepção de Huntington acerca do poder e da política de Estado é precisa e visionária. Quando escreveu essas palavras, em 1981, o governo de Ronald Reagan empreendia sua guerra contra o terror, que logo se converteu em uma guerra terrorista, assassina e brutal, primeiro na América Central, e logo se estendeu para muito além do sul da África, Ásia e Oriente Médio.

Desde esse dia em diante, para exportar a violência e a subversão ao estrangeiro, ou aplicar a repressão e a violação de garantias individuais dentro de seu próprio país, o poder do Estado tem buscado criar a falsa impressão de que estamos na realidade combatendo o terrorismo e outras variantes de inimigos: traficantes de drogas, mulás loucos empenhados em possuir armas nucleares e outros ogros que, nos dizem vez ou outra, querem atacar-nos e destruir-nos.

Ao largo de todo o processo, o princípio básico é o mesmo. O poder não deve ser exposto à luz do dia. Edward Snowden tem se convertido no criminoso mais procurado por não entender assim essa regra inviolável.

Em poucas palavras, deve haver completa transparência no que diz respeito à população, porém nenhuma para os poderes que devem defender-se desse terrível inimigo interno.

* Linguista, filósofo, cientista cognitivo, comentarista e ativista político norte-americano, reverenciado em âmbito acadêmico como "o pai da linguística moderna”.


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