segunda-feira, 4 de julho de 2011







De que lado fica a asa da xícara?


* Por Rubem Costa

Quem assim propunha, era dona Leonor, desafiando a capacidade perceptiva da classe, gente miúda de segundo ano escolar. Agitação geral. Cabeças pensando. Depois de alguns instantes de reflexão, acudiu-me a resposta certa: — Fica do lado de fora, professora!
Surpresa com a rápida dedução, a mestra perguntou admirada — como adivinhou? Porque sou canhoto. Ué, que tem uma coisa com outra? Fiquei estupefato. Pareceu-me que a mestra não percebera que ali eu era o avesso, pois os demais sendo destros usavam a mão direita. Daí terem pensado em coro que a alça ficava do lado direito. Mas, sendo desigual, excogitei diferente. A asa é uma só. Se uso a mão esquerda e eles a direita, não pode estar dos dois lados ao mesmo tempo. Lembrei-me da xícara cheia de café que tomara de manhã. E descobri a pólvora. Só podia estar do lado de fora. Se não, como pegá-la? Uma dedução simples pela qual não esperava a pobre dona Leonor que planejava amarrar minha mão esquerda para forçar-me a escrever com a direita. Ameaçou de novo naquele dia. Dedução de jerico. Obrigar-me a ser igual aos outros. Não desconfiava a velha mestra que estava estigmatizando um aluno diante da classe. Na sua insciência, me discriminava. Descobri assim, aos oito anos, que preconceito dói, machuca a alma, agride o ser.
Em casa, fui procurar minha mãe que no jardim cuidava de suas flores. Contei-lhe o acontecido. Olívia sorriu, enigmática. Apanhou uma rosa rubra, juntou-a a uma branca e enfatizou — têm o mesmo valor. Só que vida é assim, meu filho, alva ou rubi-vermelho-sangue, feita de sacrifício, luta e convicção. Você evidenciou que diferença não é sinal de inferioridade. Tão somente é uma outra forma de ser. Para quem tem determinação, até ajuda a vencer. No terreiro, os galos não brigam por causa da cor das penas, mas pelo direito de ser dono do galinheiro. Uma disputa pelo ser e ter. Na fala prudente da mulher sábia, eu estava a aprender uma lição eterna que me iria servir logo no mês seguinte. Na aula de educação física, pernas finas, lépido, Marcelinho era imbatível no salto à distância. Eu sempre perdia.
Pensei no ensino de minha mãe. O importante é saber usar a alça da xícara no lado certo, na hora certa. Comecei a treinar. Em casa, na rua, onde pudesse. Foi daí que chegou o dia em que no exercício de competição me emparelhei com ele. Pulei cinco centímetros a mais. Naquele momento vibrante, com o pulo mágico saltou-me à mente de menino discriminado a decisão que seria a minha bússola na vida: lutar sempre por um lugar ao sol. E me serviu, alguns anos após, no instante de angústia, quando já estava terminando o ginásio. Na quinta série, preparava-me para a escola militar. Queria ser general. Uma promessa de vida sadia e (vaidade) as meninas admirando a farda engalanada. Entanto, a legenda do Realengo era — mens sana in corpore sano. Sonho que se esboroou numa manhã de novembro, quando uma golfada quente de líquido viscoso inundou-me a boca. Apavorado, cuspi. Desenhada no chão ficou uma rosa de sangue. Tuberculose. Era assim que definhavam os poetas românticos.
Sem remédio. Ninguém ainda ouvira falar em antibiótico. Por isso toda gente sabia que no repicar da tosse ecoava o veredicto da morte. E do contágio. Solidão à vista. Os companheiros de tertúlias e bailaricos sumiram. Com razão, pensei, arriscar-se a procurar-me em casa seria o mesmo que visitar o cadáver vivo de um menino morto. Chorei. Olívia, recolhendo minhas lágrimas, lembrou-me da asa da xícara. Desta vez, meu filho, a alça não estará fora, nem à direita, nem à esquerda. Vai ter de procurá-la dentro de você. Saiba usá-la. Faça uma profissão de fé em si mesmo, com coragem no presente e crença no futuro. O saldo virá depois. O milagre da vida somos nós que construímos. Era 1936. A recomendação valeu. Sobrevivi. E hoje, quando a noite sobre mim já vai descendo, recordo-me com ternura dos amigos de então — de bailaricos e tertúlias — a quem nunca desejei mal. Companheiros que, enquanto meus olhos choravam, formaram em torno de mim o arquipélago do medo, ilhas próximas que me não queriam tocar. Dessa geografia de que falo sem ressentimentos, surge Olavo que, acampando na agronomia, ainda muito moço no trabalho foi dolorosamente esmagado por um trator em movimento. Depois dele, vem o Milton, que Deus o tenha, corroído pela cirrose hepática. E o Ary e tantos outros que sumiram no horizonte, sem tempo de dizer adeus.
Ah! o Osmânio, pobre Osmânio, como fiquei triste na noite em que o encontraram caído ao lado de uma carta de despedida. No chão, uma xícara de asa partida. Cianureto. Cena brutal. E ali, diante do ser inanimado, caído, vencido, derrotado por si mesmo, pareceu-me de repente ouvir Olívia a me segredar em voz de afeto: — Na hora do insucesso, filho, para se erguer, use sempre a alça da xícara por dentro; não quebrará.
Roteiro de sabedoria inata. Conselho de mãe, rosa rubra que ajudou meus passos no pedregoso caminho da juventude inquieta. Rubi, vermelho-sangue. Rosa de amor que me deu à vida. Rosa de vida que me deu amor.



• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras. E-mail: costa.rubem@uol.com.br

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