quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011


Obra inacabada

As anotações de alguns escritores, aquelas que eles fazem em papel qualquer – como o usado para embrulhar pão nas padarias, por exemplo, ou como maços de cigarro, guardanapos etc. – e que são meros lembretes, para não se esquecerem de determinados detalhes em livros que estejam escrevendo ou que planejem escrever, e que depois de utilizar têm a intenção de jogar fora, (mas por alguma razão não jogam), são peças interessantíssimas para quem pesquisa métodos de produção de textos. São notas espontâneas, pessoais, íntimas, particularíssimas, feitas, portanto, para eles mesmos e não para “consumo público”.
Tive acesso a esses rascunhos (que nem chegam a ser isso), de vários escritores meus amigos, após sua morte, com a autorização das famílias. E fiquei fascinado com esse “tesouro” literário que o público provavelmente jamais conhecerá. Alguns pensamentos e parágrafos de textos tive o capricho de anotar e de comentar em minhas crônicas, dando, claro, o devido crédito. Sei que, nestes casos, cometi inconfidências, porquanto não fui autorizado pelos autores (já mortos) para tal. Mas creio que esse pecadilho é perdoável. Estou certo que, se ressuscitassem, eles me perdoariam. Afinal, não agi assim para empanar sua memória, mas para salvaguardá-la.
Quem quiser, algum dia, fazer o mesmo em relação às minhas notas, lembretes, recados, esboços e sabe-se lá mais o quê, esteja à vontade. Não tenho nada de comprometedor, de secreto, de impublicável que queira esconder. Tenho uma gaveta lotadinha desses papéis. Periodicamente faço uma limpeza em regra nela. Entretanto, as anotações que entram ali são em quantidade muito maior do que as que saem. Portanto, ela jamais irá se esvaziar. Pelo menos, é o que suponho.
Uma coisa ficou clara para mim: boa parte dos escritores morre sem poder ele, e não a morte, dar sua obra por acabada. Não posso garantir que assim seja com todos, pois não tenho como comprovar, mas desconfio que, cada qual em sua medida, a totalidade dos literatos passa por esse tipo de frustração. Alguns desses livros inacabados estavam em fase de revisão. Nesses casos, e se o escritor gozar de algum prestígio nos meios editoriais, as editoras se encarregam de dar um jeito de publicar, com a ressalva de que se trata de publicação póstuma. Sabe-se lá, porém, quais as mudanças que o autor pretendia fazer neles e que, se não morresse antes, provavelmente faria.
Caso bastante famoso, referente a anotações, é o do grande, imenso, extraordinário e todos os adjetivos de excelência que lhe vierem à cabeça, Fernando Pessoa. Quando morreu, deixou, intocado, um baú carregadinho de papéis inéditos, que poderia ser comparado à alegoria da cornucópia da abundância. Por que? Porque a riqueza de idéias e de saber literário nele contidos parece inesgotável. Esse material já rendeu, sem exagero algum, uma centena de livros, dos mais diversos “organizadores” desses papéis, e resta, inédita, ainda, uma quantidade que eu diria três vezes maior do que a já analisada, revisada, posta no papel, impressa e publicada.
Já imaginaram se Fernando Pessoa tivesse tempo, saúde e disposição para trabalhar nesse material, digamos, “bruto”, o quanto a sua obra seria ainda maior do que já é? Citei esse caso específico porque ele é bastante conhecido no mundo literário e ninguém poderá me acusar de estar inventando. Mas poderia mencionar algumas dezenas de outros que, no entanto, não posso comprovar.
Se eu tivesse o poder de modificar a realidade (claro que não tenho) e principalmente a natureza, introduziria na vida um dispositivo qualquer que não permitisse que escritores adoecessem, se tornassem senis e, principalmente, que morressem, antes de concluírem suas obras. Alguns, mais agitados, criativos e prolíficos, se tornariam, com certeza, “eternos”. São os que o tempo todo estão com idéias novas, à espera de oportunidade de as desenvolver e transformar em poemas, romances, novelas, contos...
Conheço escritores de noventa anos de idade, que quase não conseguem nem andar, sem condições de escrever, pois as mãos trêmulas impedem, que não tiveram a felicidade de aprender a utilizar o computador, com livros e mais livros prontos na cabeça. O pior de tudo é que, quando “falam” as suas criações, a única forma que têm de comprovar que elas existem e estão na sua memória, são ridicularizados, não raro até por parentes muito próximos, que acham que estejam caducos. Muitos deles, porém, são de uma lucidez de fazer inveja a garotões de vinte e cinco ou trinta anos.
Estes vão morrer deixando, certamente, suas obras inacabadas, por falta de condições de acabá-las. Suas anotações (quando as têm), um dia irão para o lixo, numa das tantas “arrumações” que as pessoas costumam fazer em suas casas, em que raramente têm algum critério. Nelas, se jogam fora preciosidades e se guardam quinquilharias, estas sim inúteis, como se fossem tesouros.
Há escritores que têm a ventura de contar com herdeiros lúcidos e cultos, que sabem valorizar essa riqueza intelectual e que preservam tais papéis, transformando as casas em que viveram em museus e fundações. Estes, contudo, são raros. Vocês já imaginaram quanta coisa se perdeu para sempre com a destruição de anotações dos nossos luminares da literatura, que não puderam acabar o que começaram, ou seja, a sua obra?

Boa leitura.

O Editor.

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3 comentários:

  1. Os meus escritos de infância se perderam, mas tenho
    uma caixa cheia de "tranqueiras".
    A princípio é bem possível que se percam no tempo.
    Mas, acho que ainda terei um tempinho para resolver o que fazer delas.

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  2. Lembrei-me de uma prima historiadora, com pós-doutorado, que entrevistou meus avós (avô nascido em 1908 e avó nascida em 1910) aqui em Montes Claros, gravando em fitacassete. Entrou um ladrão na casa dela, aí em Campinas e, sabe o que roubou? As fitas. Meus avós não eram literatos, mas tinham histórias que hoje eu gostaria de ouvir. Perdeu-se um tesouro.

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  3. Eu adoro guardar meus textos inacabados para finalizá-los em algum momento posterior com mais inspiração. A gaveta de esboços do escritor é um baú que guarda verdadeiros tesouros...

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