sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011




Gisele Bündchen, a dona de casa de 1958

* Por Urariano Mota



Há um quê de antigo, muito antigo, na última campanha de Gisele Bündchen para a SKY, que entrou no ar esta semana. Para tamanha novidade, gritaram os títulos nas notícias da imprensa brasileira: “Gisele Bündchen posa de dona de casa e pinta unha do pé em campanha. Top brasileira estrela comercial em que interpreta mulher abandonada pelo marido”.


Nesse comercial, Gisele veste a roupa de uma dona de casa que, separada do marido, a viver na solidão, aguarda a volta do príncipe. A julgar pela declarações do publicitário que fez a campanha, Gisele nesse papel está uma típica dona de casa. À semelhança da mulher brasileira, ele supõe. E que saque de gênio, pôr uma estrela top em carne comum. É como se a princesa dos sonhos de todo o mundo, como ele supõe, descesse à realidade plebeia encarnando uma senhora frágil, de pernas longas e finíssimas, pois Deus não lhe deu outras, e ficasse a esperar o grande dia, o da volta do maridão.


Esclarecem as notícias, em seu tom mais prosaico, a contar o enredo do céu em inglês como se fosse o relato fiel de uma deusa que desceu para se transformar em mulher comum:
“No atual comercial, ela surge de vestido de chita e avental, sugerindo que estava envolvida com tarefas domésticas. Magérrima, ela solta os cabelos e corre para os braços do amado (interpretado pelo ator Augusto Madeira) após ouvir o barulho do portão. Há um terno abraço e, enquanto estão enroscados, ele vai empurrando a esposa para pegar o controle remoto e ligar a televisão. É divertido. O fundo musical é o clássico ‘O Portão’, do repertório de Roberto Carlos”. Nesse filme, o marido troca a mulher Gisele pela televisão, como se vê aqui http://www.youtube.com/watch?v=PoCfYcUawwI&feature=player_embedded

A isso esclarece o roteirista: "Nesse filme ela age como qualquer mulher esperando o marido. É a Amélia dos sonhos masculinos", brinca John, autor do roteiro produzido pela O2 Filmes. "Mas as mulheres também vão se sentir vingadas ao ver a mulher mais cobiçada do mundo numa situação tão familiar." Ele, John, crê que sim.
Notem. Nem sempre a gente precisa ser cruel para ser verdadeiro. Como prova do quanto a propaganda de Gisele vê a mulher como um ser do fim dos anos 50, compare-se o roteiro acima com o de um comercial da geladeira Cônsul, aqui http://www.youtube.com/watch?v=VAtyZoV1MLY. Nele, o maridão abre a porta da casa, um marido cujo ator possui a cara e o nariz de Fernado Colllor, e beija a testa da mulher, que faz biquinho e anuncia: “Ela já chegou”. E ele: “Ah é, é? Deixa eu ver”. Ela é a geladeira. Então a mulher abre a porta, da geladeira, e o marido, esquecido dela, a esposa, entra nela, a geladeira, e fica lá, feliz e risonho. É ou não a mesma troca da esposa por um eletrodoméstico?

Como reflexo da posição da mulher, compare-se o de Gisele com este comercial clássico do perfume Damosel, do fim dos anos 50. Esse é um clássico, que vai além da imagem, do roteiro e da narração, porque aponta os valores máximos para a mulher em 1958, que culminavam no casamento. Pode ser visto aqui http://www.youtube.com/watch?v=LuggBGGebdY
E que narração, vale a pena transcrever: “Recém-casados, eles estão recordando todos os momentos perfumados com Damosel. E você também, minha amiga...” (Imagem de uma catedral) “...quando estiver saindo da igreja no dia feliz do seu casamento...” (imagem da noiva em seu largo vestido, a descer as escadas, suntuosa) “... recordará com carinho todos os instantes do seu romance”. (Fotógrafo tira fotos dos felizes pombinhos. O casal entra no carro).
Então vem a voz cavernosa do narrador, cuja tom cavernoso era o modelo daqueles anos de feliz pesadelo: “Damosel, o perfume que dá felicidade, é composto das mais deliciosas essências dos cinco continentes”. Sempre, do começo ao fim, o belo som da música Fascination, que pontua a frase: “Damosel é um convite para o sonho. O perfume de Damosel foi inspirado no culto do amor, encantamento e felicidade. Comece a viver hoje mesmo o seu sonho perfumado com Damosel, de Atkinsons”. Imagem de um casal à beira de um rio no crepúsculo.

Agora vem um corte, mas não no tempo, porque no comercial mais recente 1958 e pessoas se reúnem como se o tempo não houvesse passado. No último desta semana se encontram Roberto Carlos, Gisele Bündchen e a antiga mulher, que continua a esperar a volta do marido. Em vão, coitada, pois ele a troca por uma tevê do céu sky. Fica um cheiro de naftalina. Comparado ao Gisele no sky, bem melhor era o anúncio do Damosel, como cheiro, trilha e modernidade.

• Escritor e jornalista, autor dos livros “Soledad no Recife” e “Os corações futuristas”, entre outros.

Um comentário:

  1. Como fiz no Vermelho, posto o comentário aqui:
    Gostei do paralelo dos comerciais, com melhor satisfação para com atual, pelo bom-humor, ironia e ar retrô. Destaco a interpretação da top-model, que não é atriz. Saiu-se de forma convincente. Os demais vídeos fizeram-me lembrar da minha mãe, uma eterna revolucionária na modalidade falada, que criticava uma propaganda do então único absorvente higiênico na década de sessenta: "use MODESS e seja feliz", ou algo semelhante. Nessa interessante retrospectiva, o tempo parou.

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