domingo, 27 de fevereiro de 2011


O esterco ideológico


* Por Guilherme Scalzilli

Mentes autoritárias poderiam enxergar indícios conspiratórios na edição de 18 de fevereiro (de 2010) do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Afinal, em plena discussão do Projeto de Lei 29, que sofre ataques das operadoras de TVs por assinatura, o caderno publicou três páginas inteiras contendo elogios a elas. O pretexto da iniciativa foi uma crítica do assessor especial de Lula, Marco Aurélio Garcia, que qualificou o conteúdo televisivo importado dos EUA como "esterco cultural".
Entre os muitos depoimentos coletados pela jornalista Ana Paula Sousa, não há sequer uma ponderação favorável ao ponto de vista do assessor. Apenas um trecho de coluna resume de forma superficial o complexo PL, associado a um suposto dirigismo xenófobo. O resultado é uma matéria inexplicavelmente extensa e laudatória, que beneficia abertamente os adversários da regulamentação. Estes, aliás, anunciantes regulares do jornal.
O idiossincrático Marco Aurélio Garcia é ótimo bode expiatório de causas subitamente libertárias. Qualquer contraponto rasteiro a seu "esterco ideológico" ganha ares de cosmopolitismo esclarecido. O assessor não tinha o direito de fazer "top-top" em caráter privado, quando a imprensa tentava exercer sua "liberdade" de culpar o governo federal por um acidente aéreo. E quem é esse petista barbudo e preconceituoso para expor suas opiniões? Só um burocrata muito despótico ousa profanar tesouros culturais, que nos ensinam tanto sobre nós mesmos. Ele merecia ser jogado às galés.

Uma elite com interesses coincidentes

Os argumentos utilizados para defender a TV paga são constrangedores. Fala-se em livre-arbítrio numa relação irregular de consumo (venda casada), que impede o assinante de escolher os canais, forçando-o a pagar por pacotes indesejáveis. E pagar muito caro, recebendo imensidões publicitárias que suplantam a da própria TV aberta. Elogia-se a diversidade num universo monoglota, dominado por uma subcultura estadunidense de folhetim, com exibições defasadas e reprisadas exaustivamente. E, absurdo maior, comemora-se a pífia inserção de produções nacionais, relegadas a nichos irrelevantes, enquanto nossos filmes são boicotados no mercado exibidor, controlado pelos mesmos cartéis corporativos da TV por assinatura.
Parece esperto reduzir o debate aos fãs de Lost e aos poucos profissionais que desfrutam de espaço "independente" no ramo. Afinal, trata-se mesmo de uma elite com interesses coincidentes. Mas logo parecerá novamente moderno e progressista exigir que o governo financie a sobrevivência da indústria televisiva. Democraticamente, é claro, e com dinheiro público.


• Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.

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