domingo, 13 de fevereiro de 2011




Plantão de aeroporto

* Por Nei Duclós

Lupicínio Rodrigues desce do avião e coloca o pé no aeroporto, onde faço plantão, depois de um dia pesado em que obedeci às pautas de cidade, aquela famosa sucessão de buracos de rua. Ele tem a cara redonda, covinhas no rosto quando sorri com a boca fina e o brilho no olhar. É gentil e doce, e ao caminhar deixa a cabeça pendendo levemente para o lado, como se estivesse ao sabor de algum vento.
- De onde você vem, Lupicínio?
- Fui gravar um disco para a Abril, em São Paulo.
- Tem alguma música inédita?
- Tem. A guarânia Judiaria.
- Canta para mim?

E o foca dos focas, aquele que assume tarefas desprezadas pelos veteranos, enfrentando o rito de passagem que é esperar personalidades em viagem, ouve, de viva voz, uma das canções do gênio, bem ao pé do ouvido: “Agora você vai ouvir aquilo que merece/ As coisas ficam muito boas quando a gente esquece/ Mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão/ A judiaria que você um dia fez pro coitadinho do meu coração”. O verso final saía com aquele jeito rasgado dele. Sussurrado em meio à balbúrdia, era o maior dos privilégios, nesta profissão insuportável, mas que não tem outra igual.
- E agora, Lupicínio, qual o próximo passo?
- Aqui em Porto Alegre é só trabalhar.
E seu olhar se perde. Lembro que o tinha visto antes por duas vezes. Primeiro, num elevador no centro da cidade, onde ele envergava uma calça apertada, um sapato branco sem meia e uma camiseta listrada. Já estávamos nos 60, mas ele era um recado dos anos 40. Depois, numa madrugada, junto com um grupo de universitários, fui conhecer o Clube dos Cozinheiros, onde Lupicínio apresentou, todo encapotado (era inverno) alguns dos seus clássicos imortais.

Mas o plantão do aeroporto também podia ser perigoso, como no dia em que o local estava coalhado de pessoas fardadas. Deveria ser alguém importante, deduzi, num raciocínio rápido como a luz. Não tive dúvidas. Cheguei para o primeiro sentinela (ah, a juventude) e lasquei:
- Quem está sendo esperado?
Imediatamente fui cercado por homens de sobretudo e terno, de cabelo de corte escovinha (só o tampo a cabeça tinha uma pequena relva), olhos azuis faiscantes de ódio e desconfiança. Fui levado a um reservado onde tentaram arrancar a confissão daquele terrorista. Eu não atinava com o problema. Estava vestido de maneira normal: cabelo comprido despenteado, casaco de brim tingido de preto, presente de um cunhado capitão do Exército, calça verde desbotada de veludo, feito sob medida a partir de um cotelê importado da Argentina, que usava no inverno e no verão, botas de borracha que iam até o joelho, já que eu não dispunha de nenhum outro tipo de calçado. Qual o problema, qual a estranheza? Estava apenas fazendo o meu trabalho!

Toda aquela vestimenta me dava um peso extra no corpo que deveria pesar uns 30 quilos na época. O vento poderia me carregar, por isso talvez usasse tantas âncoras. Os meganhas não acreditaram na minha história. Como poderia, com aquela aparência execrável, ser repórter da Folha da Tarde, da Caldas Junior, a mais importante empresa de jornalismo do Rio Grande do Sul? Onde estava meu comprovante? Minha carteira profissional? Minha identificação como jornalista?
Eu não tinha. Acabara de ser selecionado para a vaga e estava completamente desprevenido. O fotógrafo que me acompanhava ficou branco de susto, mas telefonou para a redação, e o equívoco foi desfeito. Caí fora de fininho e jamais soube quem deveria chegar naquele dia.

Plantão era obrigação de foca. O encargo era repassado no final do expediente, depois de uma tarde de cão. A tortura começava a uma hora da tarde, quando o chefe de reportagem chegava para distribuir as tarefas. Para todos dizia sua máxima:
- Vai lá ver o que tem e o que não tem.
As ordens eram incompreensíveis. Um dia fiz uma pergunta tão absurda para uma fonte que ele me pediu a pauta, que estava escrita num pedacinho de papel, datilografada. Ele desenrolou o papel que eu tinha amassado no fundo do bolso, leu e entendeu. Aí me deu a entrevista. Depois de desovar a produção diária, tinha o plus, que era cercar passageiros, um expediente que se estendia até tarde da noite. Os veteranos, espertos, diziam que o plantão de aeroporto era uma aula de jornalismo, que aprenderíamos tudo ali: dar um furo, conhecer pessoalmente as personalidades. Ficavam na redação, e ainda tiravam sarro no dia seguinte dos contratempos dos focas.

O aeroporto era o olho da imprensa, que precisava saber o movimento das fontes mais importantes. Pouco se tirava de lá, a não ser algumas frases esparsas, uma plantadinha de notas, um futuro governador ainda desconhecido (já que eram nomeados e não precisavam de exposição pública para assumir o posto). As viagens eram mais raras, não é como hoje que toda celebridade trafega pelo ar a todo momento. Imagino como seria redundante ficar num plantão aeroporto, ainda mais nesta época de conexão total, em que dá para cobrir o fim do mundo só com a ajuda do mouse.

O jornalismo feito a martelo exigia esforço de estiva. A informação era rara e não estava sobrando como hoje, em que podemos acompanhar a intimidade dos astros como se estivéssemos aboletados na sala de visitas, ou descobrir o que fazem pessoas importantes quando acham que ninguém está olhando. Havia uma pele pública sobre a escassez humana. A viagem de avião tinha certa solenidade, especialmente para o repórter iniciante, que jamais saíra de seu torrão. Mas não se esperava muito do plantão. As melhores coisas não poderiam ser ditas. Como “entregar” o esforço de determinado deputado federal em inocular informações que beneficiassem sua candidatura a ministro de Estado?

Já estávamos escaldados pelo AI-5. O governo era ilegítimo. Os cargos eram ocupados todos pela direita. Não era possível fazer perguntas simples como: quem vai chegar hoje? Não se podia tratar uma sentinela de tchê-loco. Eles saltavam. Queriam pegar na jugular do foca despreparado, de aspecto rude e roqueiro num mundo de gravatas, quepes e sapatos com brilho. Hoje todos se vestem como presidiários. Macacões, camisetas, abrigos, tênis. Continuam todos iguais, nesta sucessão de personalidades enigmáticas, que vistas de perto perdem todo o encanto que a mídia tenta lhes dar. É impossível vê-las com uma certa emoção e solenidade, como víamos os lideres antes de 1964, quando a imagem era formatada pelo rádio, imaginada por emissão da voz e vestida de mitos que se foram.

Mas é bom que todo esse carisma se perca. Pelo menos não poderemos cair no erro quem cometi quando vi Oito e Meio, de Fellini, pela primeira vez. Cheio de fumaças intelectuais, eu observava o longo travelling do início do filme, aquele em que as pessoas cumprimentam a câmara bebendo algo desconhecido e que tem por desfecho a aparição de Claudia Cardinale, mais bonita do que um anjo. Eu estava no cinema de Uruguaiana ao lado do meu colega de aula Rubens Lenar Güez. De repente, no meio do travelling, ele me perguntou:
- Sabes o é que isso?
Respirei fundo e defini:
- A humanidade em desfile!
- Não, disse o bom Rubens. É uma fonte de água mineral.
Tinha matado a charada. Enquanto eu me esforçava em ver algo mais do que simplesmente uma cena humana, ele decifrava o mistério apenas com a melhor qualidade de um repórter: a observação pura e simples, sem ilusões, tambores ou clarins. Era um sinal de como deveríamos nos comportar a partir daquela data: enxergando no anonimato da massa em trânsito aquilo que se destaca como fato. A aparência singular da notícia depende da vocação do jornalista que assume a profissão para o resto da vida, mesmo que o prendam pela falta de preparo.

* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.

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