sábado, 19 de fevereiro de 2011




Um visitante



* Por Mario Vargas Llosa

Os areais lambem a fachada do curral e terminam ali: do vão que serve de porta ou por entre os juncos, o olhar escorrega por uma superfície branca e lânguida até encontrar o céu. Atrás do curral, a terra é dura e áspera, e a menos de um quilômetro começam as serras brilhantes, cada uma mais alta que a anterior e estreitamente unidas; os picos se incrustam nas nuvens como agulhas ou lâminas. A esquerda, estreito, sinuoso, estendendo-se na beira da areia e crescendo sem trégua até desaparecer entre duas colinas, já bem longe do curral, fica o bosque; matagais, plantas selvagens e um capim seco e rasteiro que oculta tudo, o solo irregular, as cobras, os minúsculos pântanos. Mas o bosque é apenas um anúncio da selva, um simulacro: acaba no fim de uma ribanceira, ao pé de uma montanha maciça, atrás da qual se estende a verdadeira selva. E dona Merceditas sabe disso; uma vez, anos atrás, subiu até o vértice dessa montanha e de lá' contemplou, com os olhos assombrados, através das manchas de nuvens que flutuavam aos seus pés, a plataforma verde, espalhada de alto a baixo, sem uma clareira.

Agora, dona Merceditas cochila deitada sobre dois sacos. A cabra, um pouco mais à frente, escarva a areia com o focinho, mastiga com empenho uma lasca de madeira ou bale para o ar morno da tarde. De repente, levanta as orelhas e fica tensa. A mulher entreabre os olhos:

— O que foi, Cuera?

O animal puxa a corda que o liga à estaca. A mulher se levanta, penosamente. A uns cinquenta metros, o homem se recorta nítido contra o horizonte, sua sombra o precede na areia. A mulher põe uma das mãos na testa como viseira. Olha rapidamente em volta; depois fica imóvel. O homem já está bem perto; é alto, esquálido, muito moreno; tem o cabelo crespo e olhos zombeteiros. Sua camisa desbotada ondula sobre a calça de baeta, arregaçada até os joelhos. Suas pernas parecem dois tarugos pretos.

— Boa tarde, dona Merceditas — sua voz é melodiosa e sarcástica. A mulher empalideceu.

— O que você quer? — murmura.

— A senhora me reconhece, não é? Ora, isso é ótimo. Se não for incômodo, gostaria de comer alguma coisa. E beber. Estou com muita sede.

— Aí dentro há cerveja e frutas.

— Obrigado, dona Merceditas. A senhora é muito bondosa. Como sempre. Poderia vir comigo?

— Para quê? — a mulher olha com desconfiança para ele; é gorda e bastante madura, mas tem uma pele tersa; está descalça. — Você já conhece o curral.

— Ah! — diz o homem, em tom cordial. — Não gosto de comer sozinho. Dá tristeza.

A mulher vacila um instante. Depois anda até o curral, arrastando os pés na areia. Entra. Abre uma garrafa de cerveja.

— Obrigado, muito obrigado, dona Merceditas. Mas prefiro leite. Já que abriu a garrafa, por que não bebe?

— Não estou com vontade.

— Vamos, dona Merceditas, não seja assim. Beba à minha saúde.

— Não quero.

A expressão do homem se azeda.

— Ficou surda? Eu já lhe disse que beba esta garrafa. Saúde!

A mulher levanta a garrafa e bebe a cerveja lentamente, em pequenos goles. No balcão sujo e esburacado, brilha uma jarra de leite. o homem espanta com um tapa as moscas que voam à sua volta, levanta a jarra e bebe um longo gole. Seus lábios ficam cobertos por um buço de nata que a língua, segundos depois, apaga ruidosamente.

— Ah! — diz, lambendo-se. — Como esse leite estava bom, dona Merceditas. Na certa é de cabra, não é? Gostei muito. Já acabou a garrafa? Por que não abre outra? Saúde! A mulher obedece sem protestar; o homem devora duas bananas e uma laranja.

— Olhe, dona Merceditas, não se faça de espertinha. A cerveja está escorrendo pelo seu pescoço. Vai molhar o vestido. Não desperdice as coisas assim. Abra outra garrafa e beba em homenagem a Numa. Saúde!
o homem continua repetindo "saúde" até ver quatro garrafas vazias no balcão. A mulher está com os olhos vidrados; arrota, cospe, senta em um saco de frutas.

— Meu Deus! — diz o homem. — Que mulher! A senhora é uma beberrona, dona Merceditas. Desculpe a franqueza.

— Isso que está fazendo com uma pobre velha vai lhe custar caro, Jamaicano. Você vai ver — está com a língua um pouco travada.

— É mesmo? — diz o homem, entediado. — Aliás, a que horas vem o Numa?

— Numa?

— Ah, a senhora é terrível, dona Merceditas, quando não quer entender as coisas! A que horas ele vem?

— Você é um negro sujo, Jamaicano. Numa vai matar você.


— Não diga essas palavras, dona Merceditas! — boceja. — Bem, acho que ainda temos um bom tempo. Certamente até a noite. Vamos tirar um cochilo, certo?

Levanta-se e sai. Vai até a cabra. o animal olha para ele com desconfiança. Desamarra-a. Volta ao curral fazendo a corda girar como uma hélice e assobiando: a mulher não está. No ato, desaparece a calma preguiçosa, lasciva dos seus gestos. Percorre o lugar aos pulos, xingando. Depois anda até o bosquezinho, seguido pela cabra. Esta descobre a mulher atrás de um arbusto, começa a lambê-la. o Jamaicano ri vendo os olhares rancorosos que a mulher dirige à cabra. Faz um gesto mínimo e dona Merceditas se encaminha para o curral.

— A senhora é mesmo uma mulher terrível, se é. Cada idéia que tem!

Amarra seus pés e suas mãos. Depois, carrega-a com facilidade e a larga em cima do balcão. Fica olhando para ela com malícia e, de repente, começa a fazer-lhe cócegas nas solas dos pés, que são enrugadas e largas. A mulher se contorce com as gargalhadas; seu rosto revela desespero. O balcão é estreito e, com as sacudidas, dona Merceditas se aproxima da beira: afinal rola pesadamente para o chão.

— Uma mulher terrível, se é! — repete. — Finge que está desmaiada e fica me espiando com um dos olhos. A senhora não tem jeito, dona Merceditas!

A cabra, com a cabeça enfiada no curral, olha a mulher, fixamente.


O relincho dos cavalos surge no fim da tarde; já está escurecendo. Dona Merceditas levanta o rosto e escuta, com os olhos bem abertos.

— São eles — diz o Jamaicano. Levanta-se num pulo. Os cavalos continuam relinchando e escoiceando. Na porta do curral, o homem grita, colérico:

— o senhor ficou maluco, tenente? Ficou maluco?

Numa curva do morro, detrás de umas pedras, surge o tenente; é pequeno e rechonchudo: usa botas de montar, seu rosto está suado.

Olha cautelosamente.

— Ficou maluco? — repete o Jamaicano. — o que há com o senhor?

— Não levante a voz comigo, negro — diz o tenente.

— Nós acabamos de chegar. O que está acontecendo?

— Como, o que está acontecendo? Mande o seu pessoal levar os cavalos para longe. Não conhece o seu ofício? o tenente fica vermelho.

— Você ainda não está livre, negro — diz. — Mais respeito.

— Esconda os cavalos e corte a língua deles, se quiser. Mas sem fazer barulho. E espere lá. Eu lhe darei o sinal — o Jamaicano abre a boca e o sorriso que se desenha no seu rosto é insolente. — Não entende que agora tem que me obedecer?

O tenente hesita durante alguns segundos.

— Pobre de você se ele não vier — diz. E, virando a cabeça, ordena: — Sargento Lituma, esconda os cavalos.

— Às ordens, tenente — diz alguém, atrás da colina. Ouve-se um ruído de cascos. Depois, o silêncio.

— Assim é que eu gosto — diz o Jamaicano. — Sempre obediente. Muito bem, general. Bravo, comandante. Parabéns, capitão. Não saia desse lugar. Eu lhe dou o aviso.

O tenente mostra o punho e desaparece entre as pedras.

O Jamaicano entra no curral. Os olhos da mulher estão cheios de ódio.

— Traidor — murmura. — Você veio com a polícia. Maldito!

Que educação, meu Deus, que educação a sua, dona Merceditas! Não vim com a polícia. Vim sozinho. Encontrei o tenente aqui. A senhora sabe.

— 0 Numa não vem — diz a mulher. — E os po¬liciais vão levar você de volta para a cadeia. E quando sair, o Numa vai matá-lo.

— A senhora tem maus sentimentos, dona Merceditas, sem a menor dúvida. Que coisas me pressagia!

— Traidor — repete a mulher; tinha conseguido sentar-se e está muito tesa. — Você pensa que o Numa é bobo?

— Bobo? Nada disso. É uma águia de tão esperto. Mas não se desespere, dona Merceditas. Com certeza ele virá.

— Nâo vem. Ele não é como você. Tem amigos. Vão avisá-lo que a polícia está aqui.

— A senhora acha? Eu acho que não, porque não vai dar tempo. A polícia veio pelo outro lado, por trás dos morros. Eu cruzei o areal sozinho. Em todos os povoados perguntava: "Dona Merceditas continua no curral? Acabaram de me soltar e eu vou torcer o pescoço dela." Mais de vinte pessoas devem ter corrido para contar ao Numa. A senhora ainda acha que ele não vem? Meu Deus, que cara a senhora fez, dona Merceditas!

— Se acontecer alguma coisa com o Numa — balbuciou a mulher, com voz rouca —, você vai lamentar a vida toda, Jamaicano.

O homem dá de ombros. Acende um cigarro e começa a assobiar. Depois vai até o balcão, pega a lamparina e a acende. Pendura-a em um dos juncos da porta.

— Está ficando escuro — diz. — Venha cá, dona Merceditas. Quero que o Numa veja a senhora sentada na porta, à sua espera. Ah, é verdade! A senhora não pode se mexer. Desculpe, é que sou muito esquecido.

Inclina-se e a pega nos braços. Vai deixá-la na areia, em frente ao curral. A luz da lamparina cai sobre a mulher e suaviza a pele do seu rosto: parece mais jovem.

— Por que você faz isso, Jamaicano? — a voz de dona Merceditas é, agora, fraca.

— Por quê? — diz o Jamaicano. — A senhora não esteve na cadeia, não é verdade, dona Merceditas? Os dias passam e não há nada o que fazer. A gente se chateia muito lá, eu lhe garanto. E se passa muita fome. Ah, eu estava esquecendo um detalhe. A senhora não pode ficar com a boca aberta, nem cogite em começar a gritar quando o Numa aparecer. Além do mais, poderia engolir uma mosca.

Ri. Revista o quarto e encontra um pano. Com ele enfaixa meio rosto de dona Merceditas. Observa-a por um bom tempo, divertido.

— Desculpe, mas tenho que lhe dizer que a senhora está com um aspecto muito confortável assim, dona Merceditas. Nem sei o que parece.


Na escuridão do fundo do curral, o Jamaicano se ergue como uma serpente: elasticamente e sem fazer ruído. Fica inclinado sobre si mesmo, as mãos apoiadas no balcão. Dois metros adiante, no cone de luz, a mulher está rígida, com o rosto para a frente, como se estivesse farejando o ar; ela também tinha ouvido. Foi um ruído leve mas muito claro, vindo da esquerda, que se destacou acima do canto dos grilos. Soa outra vez, mais prolongado: os galhos do bosquezinho rangem e quebram, qualquer coisa se aproxima do curral. "Não está sozinho", sussurra o Jamaicano. "Merda." Enfia a mão no bolso, pega o apito e o mete entre os lábios. Aguarda, sem se mexer. A mulher fica agitada e o Jamaicano xinga entre os dentes. Vê a mulher se contorcer e mover a cabeça como um pêndulo, tentando livrar-se da atadura. O barulho cessou: já estará na areia, que abafa as pisadas? A mulher está com o rosto virado para a esquerda e seus olhos, como os olhos de um iguana esmagado, sobressaem das órbitas. "Ela os viu", murmura o Jamaicano. Encosta a ponta da língua no apito: o metal é cortante. Dona Merceditas continua mexendo a cabeça e grunhe com angústia. A cabra dá um balido e o Jamaicano se esconde. Segundos depois vê uma sombra descendo sobre a mulher e um braço nu se estendendo até a atadura. Sopra com toda a força que tem enquanto pula sobre o recém-chegado. O apito povoa a noite como um incêndio e se perde entre os palavrões que explodem à direita e à esquerda, seguidos de passos precipitados. Os dois homens caíram em cima da mulher. 0 tenente é rápido: quando o Jamaicano se levanta, uma das suas mãos está segurando Numa pelo cabelo e a outra mantém o revólver encostado em sua têmpora. Quatro guardas com fuzis os rodeiam.

— Corram! — grita o Jamaicano para os guardas. — Os outros estão no bosque. Rápido! Eles vão fugir. Rápido!

— Parados! — diz o tenente. Não tira os olhos de Numa. Este, com o rabo do olho, tenta localizar o revólver. Parece sereno; suas mãos pendem de lado.

— Sargento Lituma, amarre-o.

Lituma deixa o fuzil no chão e desenrola a corda que tem na cintura. Amarra Numa pelos pés e depois o algema. A cabra se aproximou, e depois de cheirar as pernas de Numa começa a lambê-las, suavemente.

— Os cavalos, sargento Lituma.

O tenente enfia o revólver no coldre e se inclina em direção à mulher. Tira a atadura e as amarras. Dona Merceditas se levanta, enxota a cabra com uma pancada no lombo e se aproxima de Numa. Passa a mão por sua testa, sem dizer nada.

— O que ele lhe fez? — diz Numa.

— Nada — diz a mulher. — Quer fumar?

— Tenente — insiste o Jamaicano. — O senhor não percebe que os outros estão ali mesmo, no bosque? Não os ouviu? Devem ser uns três ou quatro, pelo menos. O que está esperando para mandar buscá-los?

— Silêncio, negro — diz o tenente, sem olhar para ele. Risca um fósforo e acende o cigarro que a mulher pôs na boca de Numa. Este começa a dar longas tragadas; apenas o cigarro entre os dentes e solta a fumaça pelo nariz. — Eu só vim buscar este aqui. Mais ninguém.

— Muito bem — diz o Jamaicano. — Pior para o senhor se não conhece o seu ofício. Eu já fiz a minha parte. Estou livre.

— Sim — diz o tenente. — Está livre.

— Os cavalos, meu tenente — diz Lituma. Está segurando as rédeas de cinco animais.

— Ponha-o no seu cavalo, Lituma — diz o tenente.

— Ele vai com você.

O sargento e o outro guarda carregam Numa e o sentam no cavalo, depois de desamarrar seus pés. Lituma monta a seguir. O tenente se aproxima dos cavalos e pega as rédeas do seu.

— Escute, tenente, com quem eu vou?

— Você? — diz — tenente, com um pé no estribo.

— Você?

— Sim, eu — diz o Jamaicano. — Quem mais podia ser?

— Você está livre — diz o tenente. — Não precisa vir conosco. Pode ir para onde quiser.

Lituma e os outros guardas, montados nos cavalos, riem.

— Que brincadeira é essa? — diz o Jamaicano. Sua voz treme. — Não vai me deixar aqui, não é mesmo, tenente? — O senhor está ouvindo esses ruídos ali no bosque. Eu me portei bem. Cumpri o que prometi. Não pode fazer isso comigo.

— Se sairmos logo, sargento Lituma — diz o tenente —, chegamos a Piura ao amanhecer. Pelo areal é melhor viajar de noite. Os animais se cansam menos.

— Tenente — grita o Jamaicano; está com as rédeas do cavalo do oficial nas mãos e as sacode, frenético. — O senhor não vai me deixar aqui! Não pode fazer uma maldade dessas!

O tenente tira um dos pés do estribo e empurra o Jamaicano para longe.

— Vamos ter que galopar de vez em quando — diz o tenente. — Acha que vai chover, sargento Lituma?

— É difícil, tenente. O céu está claro.

— Não pode ir embora sem mim! — clama o Jamaicano, em altos brados.

Dona Merceditas começa a rir, às gargalhadas, segurando a barriga.

— Vamos — diz o tenente.

— Tenente! — grita o Jamaicano. — Tenente, eu estou lhe implorando!

Os cavalos se afastam, devagar. O Jamaicano observa, atônito. A luz da lamparina ilumina o seu rosto transfigurado. Dona Merceditas continua rindo estrondosamente. De repente, faz silêncio. Leva as mãos à boca, como uma buzina.

— Numa! — grita. — Vou levar frutas para você aos domingos.

Depois, recomeça a rir, bem alto. No bosquezinho brota um rumor de galhos e folhas secas se quebrando.


Texto extraído do livro "Os chefes, os filhotes", Ed. Alfaguara - Rio de Janeiro (RJ), 2010, pág. 79, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman e publicado no site Releituras..

* Jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário peruano, é um dos mais importantes escritores da atualidade. Viveu em Paris na década de 1960 e lecionou em diversas universidades norte-americanas e européias ao longo dos anos. Numa incursão ao mundo da política, candidatou-se à presidência do Peru em 1990, perdendo a eleição para Alberto Fujimori. Autor de extensa obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios Cervantes, Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov e Crinzane Cavour. Foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 2010. Alguns de seus principais livros são: Os chefes, Os filhotes, Sobre as utopias, A guerra do fim do mundo, Pantaleão e as visitadoras, Travessuras da menina má, A cidade e os cachorros, A casa verde, Tia Julia e o escrivinhador, Elogio da madrasta e Os cadernos de dom Rigoberto

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