Atos falhos
* Por Pedro J. Bondaczuk
O erro é a coisa mais democrática que existe no mundo, disse um pensador, cujo nome não me lembro. Alguns são cometidos por falta de conhecimento, outros por mau planejamento, outros ainda, por desleixo etc. Os motivos variam. Mas há os chamados "atos falhos". Ou seja, aqueles cometidos quando a pessoa tem convicção de estar fazendo as coisas de maneira certa, mas não está. Por uma dessas traições do subconsciente, faz uma inadequada associação de idéias, com resultados quase sempre desastrosos ou, no mínimo, constrangedores. Em minha função de editor, trabalhando contra o relógio e com escassa margem de tempo para raciocinar, às vezes dou desses escorregões.
Como meu trabalho é público, passa pelo crivo diário de milhares de leitores, quando há algum erro, este imediatamente ressalta. Não há como esconder. E o constrangimento é enorme. Foi o que aconteceu certa ocasião com uma notícia sobre a morte do ator, cantor, bailarino e diretor de cinema Gene Kelly. O filme que o celebrizou, entre tantos que fez, foi "Cantando na Chuva". Trata-se de um clássico de Hollywood. Assisti-o pelo menos vinte vezes, sempre com o mesmo interesse, já que é uma verdadeira obra-prima da Sétima Arte. Tenho-o em casa, gravado em vídeo, e de vez em quando torno a assisti-lo.
Pois bem, quando Gene Kelly morreu, eu quis fazer uma manchete diferente. Em vez de citar seu nome, como todos fazem em caso de notícias de morte, pensei em mencionar o trabalho que marcou a sua trajetória na vida artística. Lembro-me que foi em uma sexta-feira, dia bastante atribulado em qualquer redação de jornal. Minha edição estava atrasada e já havia cobranças para que eu liberasse a página. Na hora da titulação, não tive dúvidas. Manchetei: "Morre o bailarino de 'Dançando na chuva'". Claro que estava errado. Fui traído por um ato falho, em uma informação que conhecia de sobejo, em cada detalhe.
Como se tratava de um dançarino, aquele que ao lado de Fred Astaire popularizou no mundo todo a dança popular, meu subconsciente se deixou levar por isso. Bastava que eu me lembrasse da trilha sonora, "Singing in the rain", para que colocasse o nome correto do filme em minha manchete. E este, sem dúvida, é "Cantando na chuva". Foi uma das grandes frustrações da minha carreira de editor, embora cada erro seja como que uma ferida no ego e, conseqüentemente, no prestígio.
Mas não é somente na vida profissional que os atos falhos acontecem. Na pessoal ocorrem até com maior freqüência. Tempos atrás, quando morava em São Caetano do Sul, estava à procura de emprego para suplementar o salário que recebia como radialista. Como trabalhava na madrugada, tinha todo o período da tarde livre e achava um desperdício não preencher esse tempo com uma atividade remunerada. Conversando com o pessoal da Turma do Rapa --- sobre a qual já escrevi em uma das crônicas anteriores --- o Zé Gordo disse que tinha um conhecido que ocupava um alto cargo em uma empresa, que me poderia arranjar o trabalho que eu estava procurando.
Conversa vai, conversa vem, meu amigo descreveu-me o sujeito com o qual eu deveria falar. Disse, entre outras coisas, que o tal conhecido seu tinha os dentes saltados para fora e que se sentia complexado por isso. Era chamado pelas costas de "Dentinho", apelido que abominava e o tirava do sério. Lembro-me que o Zé Gordo ainda me recomendou: "Vê se não o chama dessa forma, pois além de não conseguir o emprego, é capaz de você receber ainda algumas bolachas".
"Claro que não! Não sou burro!", respondi-lhe irritado. No dia combinado, apareci na firma, um escritório de representações, à procura do tal sujeito. O guarda encaminhou-me diretamente à sua sala. Entrei, sentei-me, esperei que desligasse o telefone e me desse atenção. Assim que isso aconteceu, entreguei-lhe o bilhete do Zé Gordo. Mas não conseguia tirar os olhos da sua boca. Mais especificamente de seus dentes saltados. Seu nome era Dirceu. Não me lembrava na hora do sobrenome, mas não importava. O sujeito fez-me uma série de perguntas sobre o que eu sabia fazer, além de locução de rádio, quanto queria ganhar e coisas desse tipo. Saiu por duas vezes da sala com meus documentos e, por fim, disse que eu estava admitido.
Recomendou que passasse naquele mesmo dia --- era uma quarta-feira --- no Departamento de Pessoal e começasse a trabalhar já na segunda-feira. Fiquei eufórico. Precisava daquele trabalho como ninguém, embora não quisesse largar o rádio. O horário combinado era o ideal. Permitia-me conciliar as duas atividades. Um tanto quanto emocionado por haver conseguido o que queria, levantei-me, todo sorridente, estendi-lhe a mão e sapequei: "Muito obrigado senhor 'Dentinho'". E saí de imediato. Quando percebi o que havia dito, já era tarde. Ainda pude ouvir, à distância, já na portaria da empresa: "Dentinho é a p...q...p..."...Isto é o que se chama "ato falho".
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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* Por Pedro J. Bondaczuk
O erro é a coisa mais democrática que existe no mundo, disse um pensador, cujo nome não me lembro. Alguns são cometidos por falta de conhecimento, outros por mau planejamento, outros ainda, por desleixo etc. Os motivos variam. Mas há os chamados "atos falhos". Ou seja, aqueles cometidos quando a pessoa tem convicção de estar fazendo as coisas de maneira certa, mas não está. Por uma dessas traições do subconsciente, faz uma inadequada associação de idéias, com resultados quase sempre desastrosos ou, no mínimo, constrangedores. Em minha função de editor, trabalhando contra o relógio e com escassa margem de tempo para raciocinar, às vezes dou desses escorregões.
Como meu trabalho é público, passa pelo crivo diário de milhares de leitores, quando há algum erro, este imediatamente ressalta. Não há como esconder. E o constrangimento é enorme. Foi o que aconteceu certa ocasião com uma notícia sobre a morte do ator, cantor, bailarino e diretor de cinema Gene Kelly. O filme que o celebrizou, entre tantos que fez, foi "Cantando na Chuva". Trata-se de um clássico de Hollywood. Assisti-o pelo menos vinte vezes, sempre com o mesmo interesse, já que é uma verdadeira obra-prima da Sétima Arte. Tenho-o em casa, gravado em vídeo, e de vez em quando torno a assisti-lo.
Pois bem, quando Gene Kelly morreu, eu quis fazer uma manchete diferente. Em vez de citar seu nome, como todos fazem em caso de notícias de morte, pensei em mencionar o trabalho que marcou a sua trajetória na vida artística. Lembro-me que foi em uma sexta-feira, dia bastante atribulado em qualquer redação de jornal. Minha edição estava atrasada e já havia cobranças para que eu liberasse a página. Na hora da titulação, não tive dúvidas. Manchetei: "Morre o bailarino de 'Dançando na chuva'". Claro que estava errado. Fui traído por um ato falho, em uma informação que conhecia de sobejo, em cada detalhe.
Como se tratava de um dançarino, aquele que ao lado de Fred Astaire popularizou no mundo todo a dança popular, meu subconsciente se deixou levar por isso. Bastava que eu me lembrasse da trilha sonora, "Singing in the rain", para que colocasse o nome correto do filme em minha manchete. E este, sem dúvida, é "Cantando na chuva". Foi uma das grandes frustrações da minha carreira de editor, embora cada erro seja como que uma ferida no ego e, conseqüentemente, no prestígio.
Mas não é somente na vida profissional que os atos falhos acontecem. Na pessoal ocorrem até com maior freqüência. Tempos atrás, quando morava em São Caetano do Sul, estava à procura de emprego para suplementar o salário que recebia como radialista. Como trabalhava na madrugada, tinha todo o período da tarde livre e achava um desperdício não preencher esse tempo com uma atividade remunerada. Conversando com o pessoal da Turma do Rapa --- sobre a qual já escrevi em uma das crônicas anteriores --- o Zé Gordo disse que tinha um conhecido que ocupava um alto cargo em uma empresa, que me poderia arranjar o trabalho que eu estava procurando.
Conversa vai, conversa vem, meu amigo descreveu-me o sujeito com o qual eu deveria falar. Disse, entre outras coisas, que o tal conhecido seu tinha os dentes saltados para fora e que se sentia complexado por isso. Era chamado pelas costas de "Dentinho", apelido que abominava e o tirava do sério. Lembro-me que o Zé Gordo ainda me recomendou: "Vê se não o chama dessa forma, pois além de não conseguir o emprego, é capaz de você receber ainda algumas bolachas".
"Claro que não! Não sou burro!", respondi-lhe irritado. No dia combinado, apareci na firma, um escritório de representações, à procura do tal sujeito. O guarda encaminhou-me diretamente à sua sala. Entrei, sentei-me, esperei que desligasse o telefone e me desse atenção. Assim que isso aconteceu, entreguei-lhe o bilhete do Zé Gordo. Mas não conseguia tirar os olhos da sua boca. Mais especificamente de seus dentes saltados. Seu nome era Dirceu. Não me lembrava na hora do sobrenome, mas não importava. O sujeito fez-me uma série de perguntas sobre o que eu sabia fazer, além de locução de rádio, quanto queria ganhar e coisas desse tipo. Saiu por duas vezes da sala com meus documentos e, por fim, disse que eu estava admitido.
Recomendou que passasse naquele mesmo dia --- era uma quarta-feira --- no Departamento de Pessoal e começasse a trabalhar já na segunda-feira. Fiquei eufórico. Precisava daquele trabalho como ninguém, embora não quisesse largar o rádio. O horário combinado era o ideal. Permitia-me conciliar as duas atividades. Um tanto quanto emocionado por haver conseguido o que queria, levantei-me, todo sorridente, estendi-lhe a mão e sapequei: "Muito obrigado senhor 'Dentinho'". E saí de imediato. Quando percebi o que havia dito, já era tarde. Ainda pude ouvir, à distância, já na portaria da empresa: "Dentinho é a p...q...p..."...Isto é o que se chama "ato falho".
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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O que comprar:
Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). – Preço: R$ 23,90.
Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. – Preço: R$ 20,90.
Como comprar:
Pela internet – WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.
Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). – Preço: R$ 23,90.
Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. – Preço: R$ 20,90.
Como comprar:
Pela internet – WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.
Quanto menos se quer fazer, mais de faz. O subconsciente fica mais forte que o consciente. Quando nos damos conta do erro ficamos morrendo de vergonha. E a gravação ficará para sempre na memória.
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