segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011




As ilhas da magia da união popular

* Por Raul Longo

Ilha da Magia é o dístico de Florianópolis em função da mitologia local que confere à colonização açoriana, a participação de algumas bruxas.

Bruxas eram comuns nos Açores porque ao arquipélago no meio do Atlântico, equidistante de Europa e América, os poderosos de Portugal degredavam seus contestadores.

Como nas sociedades de todas as épocas, lá em Portugal os contestadores também eram da gente do povo, pois raramente acontece de um nobre, um vigário ou qualquer classe de acomodado às benesses ou aos farelos do Poder, contestar alguma coisa.

E, naqueles tempos medievais, isso era ainda mais raro, pois o Poder era tanto e a obstinação em mantê-lo tamanha, que nem preciso contestá-lo. Bastava não se sujeitar a um daqueles poderosos para ser mandado aos Açores.

Na Ibéria, como em toda a parte, a força contestadora das mulheres sempre teve um efeito muito forte. Ainda hoje é assim. Reparem que um sujeito que reclama ou não se sujeita, por mais admirado que seja, nunca o é tanto quanto uma mulher que peita a empáfia e prepotência dos poderosos, como há pouco tempo a hoje Presidenta Dilma fez a um extinto senador.

Natural, pois da mulher se construiu o mito da fragilidade, da candura. Quando uma foge desse estereótipo, se entende que tenha superado a condição feminina.

Observando bem, é condição imposta, patriarcal, formada por preceitos religiosos que relegam a mulher à condição de servis. Agora, imaginem as feministas da europa medieval, dando uma banana para tais mitos!

E acontecia, porque aqueles povos ibéricos, antes do domínio do Império Romano, provinham dos celtas, uma cultura baseada em outros ritos onde a entidade religiosa suprema era a Grande Mãe. Aí, quando os romanos se fazem cristãos e se instaura o Império Católico com aquela transformação do Jeová dos semitas hebreus em deus único, dá-se o embate das sacerdotisas da Grande Mãe com os sacerdotes católicos.

Assim nasceu o mito das bruxas. A magia, divulgada pelos contos de fadas, foi a forma de convencer as pessoas de que aquelas mulheres contestadoras eram do mal. E quem era do mal, naqueles tempos, ou ia pra fogueira da inquisição ou para os Açores.

Lá pelo século 18, aquela gente ali abandonada desde cerca de 1430, estava à míngua, morrendo de fome, pois a insuficiente produção agrícola das ilhas era monopolizada pela Igreja e há registros de um édito real obrigando o bispo de uma delas a distribuir os grãos armazenados nos silos de sua capela, do contrário o povo morreria de fome.

Compreensível a avareza do bispo, afinal nos Açores tornou-se impossível satisfazer a gula e o jeito foi transferir aquele povo pela região litorânea da vasta e nova colônia: o Brasil.

Assim vieram as bruxas, muitas delas declaradas como tal por provocarem os párocos com a tentação da luxúria, como o caso de uma cabocla da Paraíba, dona de um corpo tão diabolicamente atentado que o padre não teve outro jeito senão mandar queimar a obra do demo.

Atenção! Aqui não se trata de alusão à sigla de partido político, coisa que então nem existia, embora, de uma forma ou de outra, marque ainda hoje a história de Florianópolis como Ilha da Magia.

Marcou e não apenas pela eleição do partido ao governo do estado, nas últimas eleições, mas principalmente porque aqueles açorianos que de lá vieram, cá continuam em situação similar, ainda que bastante melhorada no tocante ao quesito alimentação, pois com índios aprenderam o cultivo e trato da mandioca, confundindo alguns historiadores locais que chegam a divulgar engenhos de farinha e de cana como de origem açoriana, apesar de por lá não haver matéria prima que justificasse tais empenhos. E além de práticas agrícolas, aprenderam também a construir canoas e outros recursos de pesca.

Dos negros escravos aprenderam muito da culinária que hoje vai se tornando mais um atrativo turístico desta Ilha de Santa Catarina ou da Magia, entre outras artes hoje esquecidas. Ou melhor, ainda desenvolvidas, mas esquecidas de onde tenham se originado, de forma que aqui se pensa que tudo tenha vindo dos Açores e que não exista em outras partes do país.

Não é bem verdade, pois os guaranis desde o sul se espalhavam por São Paulo adentrando Mato Grosso afora até a fronteira oeste do Paraguai. E negros foram misturados todos: bantos, iorubas, minas, nagôs, angolas, etc. Misturados na dispersão promovida pelos senhores brancos, mas mesmo formando variações culturais, se os dança em cada um dos estados brasileiros.

Estados pouco conhecidos pelos ilhéus de Santa Catarina ou pelos sulistas em geral, limitados em suas fronteiras únicas dentro das quais se creem exclusivos na manutenção de tradições adaptadas de negros e índios que olvidaram no decorrer das miscigenações às culturas ibéricas, enaltecidas na busca de uma identidade europeia que além de não identificar coisa alguma, solidifica provincianismos e imobiliza a criatividade das gerações, reduzindo a cultura a mesmices xenofóbicas.

Similaridades às origens açorianas, sem dúvida se mantém. Mas das mais notáveis são as relações sociais, pois ainda que não mais se careça de éditos que obriguem a dar de comer ao povo, quase tão quanto continua reprimido e abandonado. Ou simplesmente ignorado, como ainda há pouco foram ignorados e até anunciados como inexistentes pela então principal autoridade pública do país no setor, natural de Santa Catarina, os mais tradicionais trabalhadores da região, onde constituem uma das maiores colônias de pesca do Brasil.

Já certas comunidades étnicas como num passe de mágica se tornam invisíveis. A exemplo do Rio de Janeiro e Espírito Santo, ou onde haja aglomerações urbanas próximas a regiões montanhosas, os mais pobres de Florianópolis também são amontoados nos morros e escondidos nas favelas.

Em compensação, assim como no Rio e por todo o Brasil, anualmente os pobres se congraçam com as classes privilegiadas para fazer a maior festa popular do mundo. Temos até nosso sambódromo, que aqui leva o prosaico nome de Passarela Nego Quirido, em homenagem a Juventino João dos Santos Machado que era negro, mas era querido. Nessa de “é nego, mas é quirido” que em outras plagas se substitui por “é negro, mas de alma branca”, João acabou atraindo alguns não negros para a entidade carnavalesca Os Garotos do Ritmo que, com a introdução de brancos no samba, passou a ser denominada de Copa Lord, tal como hoje é conhecida uma das maiores escolas de samba da cidade.

Duas outras de Florianópolis também tem nomes sintomáticos: Consulado e, a mais antiga, Protegidos da Princesa.

A que teve Rodolfo Silva, o popular “Seu das Cor”, como primeiro presidente, já não se preocupou em buscar batismo que atestasse apadrinhamento da elite, vindo a existir apenas como Unidos da Coloninha, em homenagem ao bairro onde foi criada, na porção continental do município.

Ainda assim, quem vai à Passarela Nego Quirido assistir a um desfile, se pergunta de onde saem tantos negros para fazer o carnaval da capital catarinense. Foi o que intrigou o cineasta alagoano César Cavalcanti que, em 2005, produziu “Além do Samba, a Resistência Afro-Brasileira”, onde se documenta essa Florianópolis que não se vê nem se enxerga.

De fato, uma magia, um bruxedo. Pois como demonstrado no filme, em shopping e por todo o comércio, restaurantes, bares noturnos, no movimento cotidiano das ruas do centro da cidade, nas praias, no banho de mar e até mesmo nos hospitais e órgãos públicos da cidade, se conseguiu tornar invisível 18% da população da cidade.

Já foram 25% há algumas décadas, mas um sistemático processo de embranquecimento ou mais apropriadamente desnegrecimento populacional, conseguiu reduzir o número de cidadãos negros. Mesmo assim é intrigante: afora os da Nego Quirido, durante o ano onde se enfiam tantos negros menos queridos pela elite florianopolitana?

Não adianta acompanhar a programação local de TV. Ali não há nenhum. Tampouco nas páginas dos poucos jornais de uma mídia monopolizada pelo grupo gaúcho RBS. No entanto, com o apoio da comunidade negra e sob a legenda do PT, o vereador Márcio de Souza, graduado em química, foi eleito por 5 mandatos. Licenciado neste ano, acaba de ser substituído pelo também negro e doutor, professor em urbanismo da UFSC, Lino Peres.

Não há outros políticos negros na cidade, mas esses já são suficientes para demonstrar a razão do título do filme de César Cavalcanti, confirmando que além do samba do carnaval na Nego Quirido, há uma resistência afro-brasileira em Florianópolis ao bloqueio racial.

Talvez por tal experiência é que a mais recente escola de samba do município, fundada em 2009 após 3 títulos consecutivos de campeão como bloco carnavalesco, resolveu homenagear outra ilha da magia: Cuba.

Há 5 décadas bloqueada pela maior potência político/bélica e econômica do mundo, a resistência de Cuba pela sobrevivência de sua soberania como nação, não deixa de ser uma magia. E ao homenageá-la, o Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba União da Ilha da Magia tem obtido para o carnaval de Florianópolis inédita promoção popular, como se infere da constante circulação pela internet de textos e matérias como a do Alípio Freire, reproduzida adiante.

E me chegam de todo o Brasil, de leste a oeste, de norte a su... deste. Quase deslizei, mas a verdade é que daqui do sul, propriamente, nem tanto. O que, talvez, se explique pelo monopólio da RBS.

Todos os anos, ao reproduzir flagrantes dos desfiles de cada capital, em cadeia nacional a Rede Globo exibe alguns poucos minutos de imagens da Nego Quirido, produzidas pela sua filiada RBS. Tanto isso é verdade que, comentando a eventualidade da assistência de um desses momentos, um assíduo visitante de temporadas de final de ano me perguntou se os passistas seriam contratados do Rio de Janeiro. Com essa observação confirmou a magia da invisibilidade dos negros de Florianópolis, mas também atestou o esforço da Globo e da RBS em dar alguma visibilidade às manifestações populares brasileiras, ocorridas fora do eixo Rio - São Paulo. Isso ocorre ao menos no carnaval quando as fronteiras culturais do Brasil se estendem até a Bahia.

Mesmo assim, o carnaval de Florianópolis nunca obteve maior notoriedade nem tanta divulgação pelos esforços de alguma de suas escolas de samba como vêm ocorrendo neste ano, em razão do enredo da União da Ilha da Magia.

Não pela Globo ou qualquer outra emissora, pois no que depende da difusão da mídia convencional o país também é reduzido, ainda que por outros motivos. Mais para mercadológicos do que de cunho xenofóbicos.

De toda forma, seja por questões de mercado ou xenofóbicas, sempre se empobrece o regionalismo pela invisibilidade da riqueza de nossa diversidade e a promoção de anacrônicos jacobinismos e ridículos ufanismos. Mas, graças ao enredo da União da Ilha da Magia, ainda que pelo país continuem ignorando a presença negra na conformação sócio/cultural da capital catarinense, muitos brasileiros pela primeira vez estão sendo informados de que aqui existe carnaval. E carnaval de resistência.

Apesar dessa divulgação ser importante para uma cidade de vocação turística que, queira-se ou não, integra um país internacionalmente conhecido pelo evento, ouvi dizer que a União da Ilha da Magia está tendo dificuldades e sofrendo bloqueios de patrocínios públicos e privados. Fui comentar o fato com alguém que me respondeu como se evidente: “Também! Quem manda escolher um enredo como esse?”

Na matéria abaixo, Alípio Freire demonstra que a resposta a essa pergunta está mais na magia da união popular no que na crença das bruxas de Florianópolis. Essas, únicas sobreviventes do incêndio dos galpões da Grande Rio na Cidade do Samba, desfilarão no Sambódromo carioca.

Embora a prefeitura de Florianópolis, que no final do ano passado antecipou a cobrança do IPTU com significativos acréscimos para o período 2011, tenha se recusado a ajudar a escola mais vitimada pelo incêndio; caso ocorra uma mágica e fantástica consagração oficial da União da Ilha da Magia como campeã deste carnaval, certamente a RBS irá sugerir que os jurados foram comprados com dólares e uísques cubanos.

Cuba nunca produziu uísque e, sim, rum; mas aí são outras magias e das verdadeiramente pesadas. Isso de magia branca e magia negra é só manipulação de preconceitos dos velhos podres poderes que detêm a os verdadeiros e perigosos bruxedos. Tem aqueles que não creem, pero que hay, hay.

• Jornalista e escritor.

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