Uma simples passagem da vida de Nicolau
* Por Guilherme Sardas
* Por Guilherme Sardas
Ele tinha um defeito. Mas sua qualidade como vendedor era inquestionável. De tanta paixão que tinha por automóveis, vendia cada um deles com uma naturalidade de dar inveja. Era capaz de fazer um milionário colecionador de máquinas importadas comprar um fusca de tanto tesão que tinha ao falar do que o carrinho era capaz. Modificava, alterava, trocava peças, instalava etc. e o fusquinha que veio da sucata saía da loja como uma relíquia.
Nicolau tinha o primeiro grau completo, mas não era de falar errado. E ele tinha um defeito. Ninguém entendia muito bem, mas ele tinha. Imagina que ele só conseguia vender os carros que ele tanto amava, peça por peça, aliás, um bem que ele nunca teve, ele só conseguia vendê-los quando estava apaixonado! Pelos carros? Não, por mulheres!
Ninguém sabia disso, até o dia em que ele tomou um pé da Dalva, uma mulatinha maliciosa e deliciosa lá do bairro. Todos os caras do bairro queriam pegar a moça, achavam que ela era pra poucos, para homens de atitude, meio cafajestes e tal, mas não. Todo mundo ficou boquiaberto no dia que o Nicolau, depois de tomar umas no boteco, revelou: “Tô comendo a Dalvinha!”. E ele não falava com desdém, ele falava com carinho e, claro, com o desejo à flor da pele só de lembrar o rebolado da morena.
Os dois nunca saíram juntos, sequer para dar uma volta no bairro. Ele tocava a campainha do casebre e adentrava a “flor” da Dalvinha. Assim ela chamava sua casinha, “flor”. Toda arrumadinha, cheirosa. E ia o Nicolau adentrar a "flor" da Dalvinha. Não é preciso nem dizer que o apelido deixava os caras malucos, motivo de brincadeira geral. “E aí pessoal, quem vai entregar o leite hoje pra Dalvinha? Quem vai entrar na “flor” da Dalvinha”? Bobagem de homem agrupado.
Mas o problema não era esse. Afinal, faturar a Dalvinha não era um problema, mas a solução. O problema foi quando a moça começou a visitar o Jotinha no presídio. Alguns diziam que era o antigo namorado dela que foi preso por dar uma surra na coitada num dia que o seu rebolado causou problemas demais. E o Jotinha ninguém sabe direito quem era. Não deu nem tempo pro Nicolau se tocar. Dalvinha falava pouco, mas "na lata": “Olha, Nicolau, não tô mais a fim, gosto muito de você, mas vou começar a sair com outro cara”. Ele nem reclamou, sabia que coisa boa dura pouco. Enfim, um pé na bunda direto e sem rodeios.
E o Nicolau, que quase nunca tava sozinho – ele sempre se arranjava com as empregadas da região e tinha um rolo com a mulher do Alvinho, dono do bar –, e por isso não deveria se magoar tanto com um pé na bunda previsível, demorou demais pra arranjar outro rolo. Ele disse pro Carica, um carioca sangue bom que vivia de bico e morava no bairro há alguns meses, que a Irene, a morena primeira-dama do boteco, resolveu ser fiel ao Alvinho – parece que o colega tava percebendo onde o Nicolau tava se metendo. As empregadinhas tavam escassas. O “mercado” oscilava muito, ora surgiam dois ou três rabos-de-saia de uma vez só, uma mais ajeitada que a outra, ora tudo ficava cinza e a melhor companhia passava a ser a loira gelada em cima da mesa, e assim ia se divertindo o grupo dos “Nove”. Eram nove os que tinham o boteco do Alvinho como religião.
Mas o Nicolau tinha aquele problema. Quando ele levou o pé da Dalvinha, a ficha logo caiu, como de praxe: “Meu emprego, Deus me ajude!”. Na segunda-feira pós-pé na bunda, o Nicolau foi cabisbaixo pro emprego. Ainda no domingo ele já tinha ligado pra Irene – no fim de tarde, horário que o Alvinho jantava na casa da mãe, que era brigada com a nora –, pra Rosa, empregada evangélica que de santa só tinha a saia cumprida e o meião preto por debaixo e pra Carlinha, ainda menina, vinte anos no máximo, pele branquinha, toda vaidosa, mas ela também cansou: “Nicolau, você não toma jeito, quando eu queria algo sério com você, você só pensava em farrear, agora você vem com esse papo de namoro na véspera do meu noivado?!"
A loja era uma das mais tradicionais do ramo automotivo. Era cliente antigo e novo saindo pelo ladrão. Não parava, ritmo intenso até as dez da noite. E o Nicolau era o “chapa” da maioria dos clientes fixos. Eles adoravam o jeito com que ele falava dos carros, a maneira romântica com que ele idealizava o resultado final de uma reforminha de nada que o dono pedia. Mas daquela vez a coisa foi séria, a Dalvinha mexeu demais com ele. Não tinha motivação nem pra supervisionar a pintura, a transformação de latas velhas em carrocerias lindas, o que ele mais gostava. Já sabendo que o problema não desapareceria enquanto ele não faturasse alguma outra, ele inventou uma gripe pro patrão, o Cezinha filho – o pai já tava se aposentando, trabalhava no escritório – e deu um jeito de se esconder atrás do caixa até o próximo rebolado que aparecesse.
Mas se passaram dois meses e ele não saía da fossa. E não saía da fossa porque não arranjava ninguém, e olha que ele era de paixão fácil! Uma vez ele se apaixonou por uma funcionária da Zona Azul, mais uma moreninha que o encantou. Não tocou na moça, mas aquela paixão platônica lhe garantiu vendas sensacionais, por puro tesão, literalmente. Só que o estrago que a Dalvinha fez foi sem precedentes na sua vida.
“Ô Nicolau, dá um pulo aqui!” O Cezar pai, que o tinha como o seu vendedor preferido, tava na loja no dia. “O que tá acontecendo com você, hein? O Cezinha me falou que as vendas diminuíram bastante e que você não sai do caixa... Como assim? Você nasceu pra vender carro, rapaz!” Ele olhou pro lado, disfarçou, deu de ombros e balbuciou qualquer justificativa vaga, o que aliás lhe caiu muito estranho: “Ô doutor, você sabe, né?! Eu tô com uns problemas em casa, a coisa tá difícil, a relação com a minha mulher não tá das melhores, as crianças...”. “Péra, Péra, Péra, xiuuuuuuu”, o patrão o calou no mesmo segundo. “Nicô, péra lá! Eu tô fora da loja, mas não sou burro! Você se separou da Marina faz um ano. E as crianças ficaram com ela!” Nicolau até se sentiu mal em mentir pro patrão, mas não tinha como abrir o jogo. Pediu desculpas e voltou a trabalhar na hora, nas vendas.
A semana passou difícil, tinha que trabalhar com a sombra do seu passado recente ecoando pela loja. “O Nicolau sempre foi o nosso melhor vendedor, mas não tem o prazer de antes”, ouviu de mais de um colega. Não passou um mês e o Cezar pai voltou à loja. Sem hesitar, entregou um cheque de 20 mil na mão dele, agradeceu com um abraço forte e se desculpou sem ter culpa alguma: “As vendas caíram pela metade. E o mercado tá bom pra gente. Não dá pra explicar, Nicô... Pega esse dinheiro e vê se levanta a cabeça, rapaz!" O dinheiro era muito mais do que o devido. Nicolau se despediu e foi embora.
No boteco dos “Nove”, ele encheu a cara, falou como nunca, brincou, deu risada, esqueceu o mundo. O Carica, o Alvinho, a Irene e todo o resto ficaram perplexos, não acreditavam que ele havia sido demitido. Ele deu o coração pela Dalvinha, pela Rosa, pela Carlinha... Deu o coração pela loja, pelos clientes, pelos carros. Seu coração tava sempre dividido, é verdade, mas sempre sobrava uma bom quinhão pra ele entregar aos seus gostos. Agora ele tava sozinho e sem emprego. Isso definitivamente era novo pra ele.
No dia seguinte, Nicolau acordou cedo, tinha uma pasta de couro na mão. O Carica e o Dudu cumprimentaram de longe. Ele fez uma saudação e seguiu reto. Quando virou a esquina do bar ouviu a gargalhada da Dalvinha, ela carregava uma mala grande e, à frente, o tal do Jotinha tinha o corpo estirado na calçada e olhava o céu, como se fosse uma dádiva. “Tô vendo o sol redondo, redondinho, hahahaha, aahhhhhhhhhh! Obrigado meu Deus!”, gritava ele. O Jotinha levantou a moça pela perna, encaixando sua cara nos seios, enquanto a mulata gargalhava com um prazer indescritível. Nem quando tava fazendo o que mais gostava ela tinha o semblante tão forte, de felicidade tão plena. “O Jotinha é o amor da vida dela”, já havia dito a Irene. Nicolau seguiu adiante.
Algum tempo depois, no bar dos "Nove", já sentiam sua falta. Era raro ele não aparecer no horário do almoço pra jogar um papo fora e tomar uma cerveja... O papo da mesa entre os oito era o Nicolau. Quando dispersaram um pouco, esquecendo o colega, ele chegou. Demorou um pouco até que os amigos o percebessem. Ele não vinha subindo a ladeira a passos tranqüilos e com o sorriso leve na face, como de costume. O Carica olhou e, esperto, matou a charada na hora, assobiou pro Dudu e pro Bigode para que eles atentassem...
Nicolau vinha num Chevrolet lindo, capota bege, estofado reformado todo branco, o carro brilhava com um vermelho candente, do jeito que ele sonhou a vida toda. A paixão pelo carro tava estampada na cara atrás do brilho do pára-brisa, fazia tempo que não viam o seu sorriso se estender preguiçoso por alguns minutos. Os oito saíram com a buzina. Abraçaram o colega numa comunhão de berros, risos e empurrões. Ele mostrou todo o carro com orgulho. E enfatizou: “Vermelho, vermelho! Carro tem que ser vermelho”! Carro pra ele era paixão, até na cor.
Aquilo certamente merecia uma bebedeira de pelo menos um dia inteiro pra comemorar. Mas, ele entrou no carro, estacionou na frente de casa e fechou a porta como se não quisesse visitas. Os oito acharam estranho, mas deixaram pra lá, imaginando que alguma dor ainda existia no ex-braço-direito do seu Cezar.
“Alô, Marina?” A moça respondeu com voz frágil e serena: “Oi Nico! Fala! o que foi?” Ele chorou calado no telefone, em seguida entonando uma voz forjada, segura e tranqüila: “Você tá ocupada? Posso ver as crianças?” Marina assentiu. Nicolau pegou o carro e partiu apressado.
Ao chegar na casa de Marina, buzinou, nem entrou, e chamou para um passeio os dois filhos que saíram correndo da casa. ”Vai com o papai, vai passear no carro novo”, disse Marina, enxugando uma lágrima que desceu de repente. Marina foi mulher de um homem só, amou Nicolau e ponto. Ela sabia o que aquele carro significava para ele. Era uma paixão conquistada, uma paixão definitiva. Os moleques se acomodaram no banco de trás, enquanto a moça limpava outra lágrima rebelde com o avental, já subindo a escadinha do casebre geminado. Nicolau berrou: “Marina, vem também!” Ela foi. No caminho, Marina evitava qualquer desconforto com o ex-marido. Entretinha os filhos mostrando detalhes do carro. E Nicolau dirigia calado, num silêncio cheio de verdade, de uma felicidade que nunca havia sentido. O carro, agora, na companhia dos três, parecia ser um universo feito sob medida pra ele, uma célula de paixões preenchidas, o núcleo de uma nova família que se formava.
Nicolau tinha o primeiro grau completo, mas não era de falar errado. E ele tinha um defeito. Ninguém entendia muito bem, mas ele tinha. Imagina que ele só conseguia vender os carros que ele tanto amava, peça por peça, aliás, um bem que ele nunca teve, ele só conseguia vendê-los quando estava apaixonado! Pelos carros? Não, por mulheres!
Ninguém sabia disso, até o dia em que ele tomou um pé da Dalva, uma mulatinha maliciosa e deliciosa lá do bairro. Todos os caras do bairro queriam pegar a moça, achavam que ela era pra poucos, para homens de atitude, meio cafajestes e tal, mas não. Todo mundo ficou boquiaberto no dia que o Nicolau, depois de tomar umas no boteco, revelou: “Tô comendo a Dalvinha!”. E ele não falava com desdém, ele falava com carinho e, claro, com o desejo à flor da pele só de lembrar o rebolado da morena.
Os dois nunca saíram juntos, sequer para dar uma volta no bairro. Ele tocava a campainha do casebre e adentrava a “flor” da Dalvinha. Assim ela chamava sua casinha, “flor”. Toda arrumadinha, cheirosa. E ia o Nicolau adentrar a "flor" da Dalvinha. Não é preciso nem dizer que o apelido deixava os caras malucos, motivo de brincadeira geral. “E aí pessoal, quem vai entregar o leite hoje pra Dalvinha? Quem vai entrar na “flor” da Dalvinha”? Bobagem de homem agrupado.
Mas o problema não era esse. Afinal, faturar a Dalvinha não era um problema, mas a solução. O problema foi quando a moça começou a visitar o Jotinha no presídio. Alguns diziam que era o antigo namorado dela que foi preso por dar uma surra na coitada num dia que o seu rebolado causou problemas demais. E o Jotinha ninguém sabe direito quem era. Não deu nem tempo pro Nicolau se tocar. Dalvinha falava pouco, mas "na lata": “Olha, Nicolau, não tô mais a fim, gosto muito de você, mas vou começar a sair com outro cara”. Ele nem reclamou, sabia que coisa boa dura pouco. Enfim, um pé na bunda direto e sem rodeios.
E o Nicolau, que quase nunca tava sozinho – ele sempre se arranjava com as empregadas da região e tinha um rolo com a mulher do Alvinho, dono do bar –, e por isso não deveria se magoar tanto com um pé na bunda previsível, demorou demais pra arranjar outro rolo. Ele disse pro Carica, um carioca sangue bom que vivia de bico e morava no bairro há alguns meses, que a Irene, a morena primeira-dama do boteco, resolveu ser fiel ao Alvinho – parece que o colega tava percebendo onde o Nicolau tava se metendo. As empregadinhas tavam escassas. O “mercado” oscilava muito, ora surgiam dois ou três rabos-de-saia de uma vez só, uma mais ajeitada que a outra, ora tudo ficava cinza e a melhor companhia passava a ser a loira gelada em cima da mesa, e assim ia se divertindo o grupo dos “Nove”. Eram nove os que tinham o boteco do Alvinho como religião.
Mas o Nicolau tinha aquele problema. Quando ele levou o pé da Dalvinha, a ficha logo caiu, como de praxe: “Meu emprego, Deus me ajude!”. Na segunda-feira pós-pé na bunda, o Nicolau foi cabisbaixo pro emprego. Ainda no domingo ele já tinha ligado pra Irene – no fim de tarde, horário que o Alvinho jantava na casa da mãe, que era brigada com a nora –, pra Rosa, empregada evangélica que de santa só tinha a saia cumprida e o meião preto por debaixo e pra Carlinha, ainda menina, vinte anos no máximo, pele branquinha, toda vaidosa, mas ela também cansou: “Nicolau, você não toma jeito, quando eu queria algo sério com você, você só pensava em farrear, agora você vem com esse papo de namoro na véspera do meu noivado?!"
A loja era uma das mais tradicionais do ramo automotivo. Era cliente antigo e novo saindo pelo ladrão. Não parava, ritmo intenso até as dez da noite. E o Nicolau era o “chapa” da maioria dos clientes fixos. Eles adoravam o jeito com que ele falava dos carros, a maneira romântica com que ele idealizava o resultado final de uma reforminha de nada que o dono pedia. Mas daquela vez a coisa foi séria, a Dalvinha mexeu demais com ele. Não tinha motivação nem pra supervisionar a pintura, a transformação de latas velhas em carrocerias lindas, o que ele mais gostava. Já sabendo que o problema não desapareceria enquanto ele não faturasse alguma outra, ele inventou uma gripe pro patrão, o Cezinha filho – o pai já tava se aposentando, trabalhava no escritório – e deu um jeito de se esconder atrás do caixa até o próximo rebolado que aparecesse.
Mas se passaram dois meses e ele não saía da fossa. E não saía da fossa porque não arranjava ninguém, e olha que ele era de paixão fácil! Uma vez ele se apaixonou por uma funcionária da Zona Azul, mais uma moreninha que o encantou. Não tocou na moça, mas aquela paixão platônica lhe garantiu vendas sensacionais, por puro tesão, literalmente. Só que o estrago que a Dalvinha fez foi sem precedentes na sua vida.
“Ô Nicolau, dá um pulo aqui!” O Cezar pai, que o tinha como o seu vendedor preferido, tava na loja no dia. “O que tá acontecendo com você, hein? O Cezinha me falou que as vendas diminuíram bastante e que você não sai do caixa... Como assim? Você nasceu pra vender carro, rapaz!” Ele olhou pro lado, disfarçou, deu de ombros e balbuciou qualquer justificativa vaga, o que aliás lhe caiu muito estranho: “Ô doutor, você sabe, né?! Eu tô com uns problemas em casa, a coisa tá difícil, a relação com a minha mulher não tá das melhores, as crianças...”. “Péra, Péra, Péra, xiuuuuuuu”, o patrão o calou no mesmo segundo. “Nicô, péra lá! Eu tô fora da loja, mas não sou burro! Você se separou da Marina faz um ano. E as crianças ficaram com ela!” Nicolau até se sentiu mal em mentir pro patrão, mas não tinha como abrir o jogo. Pediu desculpas e voltou a trabalhar na hora, nas vendas.
A semana passou difícil, tinha que trabalhar com a sombra do seu passado recente ecoando pela loja. “O Nicolau sempre foi o nosso melhor vendedor, mas não tem o prazer de antes”, ouviu de mais de um colega. Não passou um mês e o Cezar pai voltou à loja. Sem hesitar, entregou um cheque de 20 mil na mão dele, agradeceu com um abraço forte e se desculpou sem ter culpa alguma: “As vendas caíram pela metade. E o mercado tá bom pra gente. Não dá pra explicar, Nicô... Pega esse dinheiro e vê se levanta a cabeça, rapaz!" O dinheiro era muito mais do que o devido. Nicolau se despediu e foi embora.
No boteco dos “Nove”, ele encheu a cara, falou como nunca, brincou, deu risada, esqueceu o mundo. O Carica, o Alvinho, a Irene e todo o resto ficaram perplexos, não acreditavam que ele havia sido demitido. Ele deu o coração pela Dalvinha, pela Rosa, pela Carlinha... Deu o coração pela loja, pelos clientes, pelos carros. Seu coração tava sempre dividido, é verdade, mas sempre sobrava uma bom quinhão pra ele entregar aos seus gostos. Agora ele tava sozinho e sem emprego. Isso definitivamente era novo pra ele.
No dia seguinte, Nicolau acordou cedo, tinha uma pasta de couro na mão. O Carica e o Dudu cumprimentaram de longe. Ele fez uma saudação e seguiu reto. Quando virou a esquina do bar ouviu a gargalhada da Dalvinha, ela carregava uma mala grande e, à frente, o tal do Jotinha tinha o corpo estirado na calçada e olhava o céu, como se fosse uma dádiva. “Tô vendo o sol redondo, redondinho, hahahaha, aahhhhhhhhhh! Obrigado meu Deus!”, gritava ele. O Jotinha levantou a moça pela perna, encaixando sua cara nos seios, enquanto a mulata gargalhava com um prazer indescritível. Nem quando tava fazendo o que mais gostava ela tinha o semblante tão forte, de felicidade tão plena. “O Jotinha é o amor da vida dela”, já havia dito a Irene. Nicolau seguiu adiante.
Algum tempo depois, no bar dos "Nove", já sentiam sua falta. Era raro ele não aparecer no horário do almoço pra jogar um papo fora e tomar uma cerveja... O papo da mesa entre os oito era o Nicolau. Quando dispersaram um pouco, esquecendo o colega, ele chegou. Demorou um pouco até que os amigos o percebessem. Ele não vinha subindo a ladeira a passos tranqüilos e com o sorriso leve na face, como de costume. O Carica olhou e, esperto, matou a charada na hora, assobiou pro Dudu e pro Bigode para que eles atentassem...
Nicolau vinha num Chevrolet lindo, capota bege, estofado reformado todo branco, o carro brilhava com um vermelho candente, do jeito que ele sonhou a vida toda. A paixão pelo carro tava estampada na cara atrás do brilho do pára-brisa, fazia tempo que não viam o seu sorriso se estender preguiçoso por alguns minutos. Os oito saíram com a buzina. Abraçaram o colega numa comunhão de berros, risos e empurrões. Ele mostrou todo o carro com orgulho. E enfatizou: “Vermelho, vermelho! Carro tem que ser vermelho”! Carro pra ele era paixão, até na cor.
Aquilo certamente merecia uma bebedeira de pelo menos um dia inteiro pra comemorar. Mas, ele entrou no carro, estacionou na frente de casa e fechou a porta como se não quisesse visitas. Os oito acharam estranho, mas deixaram pra lá, imaginando que alguma dor ainda existia no ex-braço-direito do seu Cezar.
“Alô, Marina?” A moça respondeu com voz frágil e serena: “Oi Nico! Fala! o que foi?” Ele chorou calado no telefone, em seguida entonando uma voz forjada, segura e tranqüila: “Você tá ocupada? Posso ver as crianças?” Marina assentiu. Nicolau pegou o carro e partiu apressado.
Ao chegar na casa de Marina, buzinou, nem entrou, e chamou para um passeio os dois filhos que saíram correndo da casa. ”Vai com o papai, vai passear no carro novo”, disse Marina, enxugando uma lágrima que desceu de repente. Marina foi mulher de um homem só, amou Nicolau e ponto. Ela sabia o que aquele carro significava para ele. Era uma paixão conquistada, uma paixão definitiva. Os moleques se acomodaram no banco de trás, enquanto a moça limpava outra lágrima rebelde com o avental, já subindo a escadinha do casebre geminado. Nicolau berrou: “Marina, vem também!” Ela foi. No caminho, Marina evitava qualquer desconforto com o ex-marido. Entretinha os filhos mostrando detalhes do carro. E Nicolau dirigia calado, num silêncio cheio de verdade, de uma felicidade que nunca havia sentido. O carro, agora, na companhia dos três, parecia ser um universo feito sob medida pra ele, uma célula de paixões preenchidas, o núcleo de uma nova família que se formava.
* Jornalista e redator publicitário
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