Leão José Leonardo da Silva
* Por Urariano Mota
Foto: do arquivo de Liêdo Maranhão
Para Liêdo Maranhão, maior pesquisador de povo do Brasil
Na aparência, ele era dono de todas as condições de um miserável, do miserável que os bem postos na vida chamam de um fracassado. Entre toda a gente ele andava mal vestido, mal e mal trajado até pelos costumes do povo pobre do Recife. Em 1960, quando atingiu sua fase mais próspera, usava alpercatas de sola grossa de borracha, de pneu, como diziam, que substituíram, que eram um avanço aos antigos sapatos pretos de plástico. O calçado anterior parecia mais patas do diabo, no plástico escuro que abafava, fechava, mordia, coçava com suor fétido seus pobres pés humanos, no calor de mais de 30 graus do Recife. Te esconjuro, cão. Agora, de alpercatas, era um homem.
Da cintura para cima, estava sempre metido em camisas de mangas curtas, de algodão em cores descaídas, baças por fabricação ou por passagem em muitas águas, costuradas ou emendadas com linhas escuras, por cima das calças. Camisa por fora das calças, sempre, que era ao mesmo tempo um estar à vontade e uma medida de segurança, para que não fosse descoberto o cordão barbante, que usava em lugar do cinto de couro. Calças de caroá, com freqüência de um azul de cal, de tecido áspero que arranhava a pele como um cilício, como uma punição a lembrá-lo dos seus pecados mortais, veniais, cometidos todos os dias. Todo santo dia, todos santificados dias, porque todos eram de batalha. “É uma batalha, doutor”, contava.
Falava mal o português, diziam. Isso porque observavam com atenção a sua fala, de um popular antigo, de trocas, metódicas, de R por L, ou de L por R. Por exemplo, garfos ele chamava de galfos, ao mesmo tempo que rebatizava o nome Clara pelo talvez mais simples Crara. É claro, prestavam atenção nas trocas do LH por I, como paia em lugar de palha, ou paiaço em vez de palhaço. É claro, atentavam antes para a sua boca, onde exibia no alto, isolados, apenas dois caninos, larga porta de colunas desgraciosas, sempre aberta para a passagem da língua nos momentos mais agudos. É craro, percebiam apenas a indigência do estado da sua pessoa na língua fora das normas. Ainda que fosse língua fina, de finório. Mas quem o ouvisse no todo, quem prestasse atenção no ser dos seus atos, iria notar que ele falava bem, muito bem, e fluente, com frases e retórica dignas de Vieira. É certo, de um Vieira sem latim, mas com a picardia dos gregos. Isso poderia ser percebido então. O que não se notava era que ele era um artista, que ele era um homem plástico, no sentido de moldar e modelar o ambiente, conforme o seu desejo. Para ser mais claro, ele, como todo artista, em qualquer lugar ou tempo, tirava partido, transformava em vantagem a sua dificuldade. Fazia merecimento do que o desmerecia.
O desgraçado tirava partido do seu fracasso. Para a profissão a que foi atirado, ou que escolhera, para o gênero e variedade com que ele trabalhava, a melhor feição era a do fracassado, do analfabeto, que mal falava e pior ainda parecia. Camelô ele era, na maioria das vezes, quando vendia remédios milagrosos por um preço muito abaixo do milagre. Por um preço de idiota. Em outras ocasiões, era um homem que vivia como peixe no mar do povo. Vendia, cumpria recados, pois que era portador de maravilhosas encomendas. Com um metro e sessenta e cinco, altura bem média para a gente do Recife em 1960, tinha a pele morena, acaboclado, os cabelos lisos, densos, untados de óleo. Exalava um cheiro permanente de quem não havia tomado banho há mais de dois dias (o que nem sempre era uma hipótese), misturado a pó, a poeira, ao calor tropical. Fedia, em resumo. Fedia com o cheiro daquele peixe seco que os pobres compravam fiado, daquela sardinha repleta de sal, as “raparigas”, nas vendas dos subúrbios.
Nascido José Leonardo da Silva, na adolescência ele se fez chamar Leonardo, para não ser chamado de Zé. Depois, na maturidade passou a ser conhecido, melhor, reconhecido pelos mais íntimos como Leão. Mas somente pelos muito íntimos. Para os outros, para as suas vítimas, ele não passava de um leãozinho sem garras, sem dentes, tão inofensivo, pobre, miserável, analfabeto, ingênuo se apresentava. E puro. Puro como as feras aladas da imaginação popular. Melhor dizendo, como um anjo. Pois este Leão jamais seria uma fera:
- Madame, este anel é seu?
O homem mal vestido, o santo entre as mulheres bem vestidas, gostava de fazer essa pergunta em feiras livres. Antes observava a distância aquelas que retiravam da bolsa molhos de dinheiro. Mas observava a seu modo de observar, depois de as escolher pela cor, roupas, e português escorreito, de gente fina, educada. Então ele, vindo em sentido contrário, fazia cair um anel de fantasia, com uma pedra bonita, grande, de encantar a vista. E, surpreso, ao descobrir o pequeno tesouro no chão, olhava para a boa senhora à sua frente:
- Madame, a senhora tem sorte, porque eu sou um homem honesto. Isso é um anel de formatura, e eu sei que é da senhora. Não é ?
A boa mulher media o pobre coitado, a sua idiotice, quando o comparava ao anel brilhante, e respondia, baixinho:
- É....
Então, em nome da boa consciência, dava-lhe uma gorjeta pelo ato, dele, de honestidade.
- É....
Contava depois Leão: “Doutor, quando a mulher diz ‘é’.... é um ladrão comendo o outro”. Esse era o golpe do achadinho. O leão comido era o comedor.
Se a digna ordem dos camelôs, em sua lei geral, era enganar, Leão Leonardo radicalizava. Em vez de esperar o freguês na praça e vender, por vezes ele ia a seu encontro na rua. Leão vendia o que se chamava “no atraca”, isto é, o camelô na rua emparelhar com a pessoa e puxar conversa, ficar conversando. O freguês de sua predileção era mulher, que na época vinha do lar, de casa, sem a experiência e malícia da vida mais prática.
Naquela época, a Loja Viana Leal ficava próxima ao Mercado de São José, na praça do Mercado. Então ele fazia amizade com os balconistas da loja e pedia: “quando aparecer uma terrina com defeito, ou quebrada, você guarda pra mim, que eu lhe pago”. Quando aparecia a ocasião, ele mandava fazer um embrulho de presente, e ficava ali na ponte da Boa Vista. Quando passavam duas madames, ele se metia pelo meio delas, e soltava a terrina. Para dizer, quase aos prantos:
- Minha senhora, o que é que vou dizer agora? A senhora quebrou um presente encomendado pelo doutor!
E a mulher:
- Espera aí, meu senhor, tenha calma, o que é que a gente pode fazer?...Quanto é?
Homem simples, parco, o Leão aflito se satisfazia com pouca coisa.
- A senhora dá o que quiser...
No comum dos seus dias, Leão Leonardo era camelô de remédio. Que remédio, ele dizia, era tudo que o curava de morrer de fome. Para os outros, não. No comum de suas batalhas, Leão vendia remédio para curar varizes. Sim, uma pomadinha magnífica que fechava e alisava a pele, veias, pernas, sem cirurgia. Uma pomadinha digna das Mil e uma noites. Já próximo do fim, quando quase tudo é inútil esconder, Leão contava e cantava a receita de sua maravilha:
- Meia lata de óleo. Óleo de cozinha, doutor. Aí eu botava o óleo pra ferver. Depois, raspava uma vela e botava no óleo. Aí esfriava e botava nas latinhas. Muito bonitas as latinhas, doutor.
No começo dessa prática farmacêutica, a sua mulher, evangélica, arregalava os olhos e gritava, para não ser cúmplice de um crime:
- Mas Leão, isso é pecado!
- E nós vamos morrer de fome? Jogue os pecados pra cima de mim. Eu carrego.
Até que a sua mulher acostumou, e nada mais viu, porque o hábito de comer traz em si uma complacência. Como ela poderia saber, pelos frutos trazidos para casa, dos pecados cometidos pelo pecador? Natural, o coração não pode viver em agonia. Para quê adivinhar?
Ora, estava escrito que na praça em frente ao Mercado de São José Leão Leonardo não fosse o único a vender maravilhas. Pelo contrário, ali estavam em disputa pela atenção do povo muitos artistas, mágicos, feiticeiros, adivinhos, médicos e enviados das florestas. Agiam como em um teatro antigo da Grécia. Camelôs, come-vidro, engole-cobra, cantadores, mas sobretudo camelôs de remédio, os mais inteligentes. Inventores de nomes até para as drogas que vendiam: Resina da Gerimataia, Banha do peixe-elétrico... Por isso, o bravo Leão havia de obrar o seu milagre antes do cristão entrar no palco do Mercado. De observar e observar, ele descobriu o que chamava “uma chave”.
Era um tempo em que as mulheres, como a moda mais avançada, usavam no Recife calças compridas. Um recurso ótimo de esconder pernas finas e varizes. Que fez Leão? Na Rua Direita, tinha um vendedor ambulante de calçados. Ele costumava dispor um caixãozinho, para que as mulheres experimentassem o sapato. Como era indispensável, as mulheres levantavam a perna da calça. Então o nosso experimentado vidente, de um ponto privilegiado, via as que possuíam varizes. Ato contínuo, ele acompanhava a mulher a uma certa distância, dava uma volta, e se encontrava, sem querer, com ela:
- Madame, por que não cuida de suas varizes? Sim, cuide. Mas pelo amor de Deus não faça como Clara Nunes.
Na época, Clara Nunes havia falecido, em um acidente anestésico, ao se operar de varizes. E por isso, o nosso enviado insistia:
- Por favor, não se opere não.
Quando isso ouvia, a mulher perguntava:
- Mas como é que o senhor sabe que eu tenho varizes?.
- Eu estou lendo na testa da senhora. Eu sou índio. Eu sou o Índio Telefitin!....
E vendia estoques de sua impressionante pomada à mulher impressionada. O diabo é que o milagre, certo como a visão profética de um pajé, depois do uso da pomada falhava. Estava escrito. Mas não estava predito o que Leão havia de fazer ante uma desmoralização pública. Diante de uma cliente raivosa, certa vez, ele “tirou a bronca”, como dizia. Na praça do Mercado ela lhe disse:
- Olhe, o seu remédio não fez efeito nenhum.
E ele, em desespero e frio:
- Mas a senhora usou em quarto minguante? Durante a lua quarto minguante?.
- Naaão...
- Pois o Índio disse que é pra usar a pomada em quarto minguante.
Fazia sentido. A lua em quarto minguante tem pontas, que se projetam como pontas de varizes. Por isso a mulher lhe comprou mais outra latinha da pomada.
Esse Índio era mesmo uma criatura e criação extraordinária. Justiça seja feita, o Índio não era uma criatura exclusiva de Leão. Tal criatura estava na imaginação do povo. O Índio, os índios, de modo geral, eram e seriam senhores de um conhecimento que os doutores médicos da cidade jamais poderiam ter. Como aqui, numa das últimas aparições do feiticeiro-sábio-gênio-santo.
Um dia, que ele dizia ter acontecido pela primeira vez na feira de Arcoverde, Leão Leonardo variou de milagre, passando para a venda de garrafadas. Sim, para os homens ele vendia garrafadas, que assim eram chamadas as garrafas de remédio, repletas de um líquido extraordinário. Então nessa primeira vez, Leão Leonardo pôs os olhos num senhor velho, e nele pôs os olhos como o profeta escolhe aquele a quem vai perseguir. Manso, com uma cara de pagador de promessas, aproximou-se do velhinho e lhe disse:
- Olha aí, eu não disse ao senhor que trazia? Eu sou um homem de palavra.
E o velhinho:
- Trazia o quê, meu filho?
- Ah, desculpe. Eu me enganei com o senhor. Aqui tinha um velhinho, que tá aperreado com uma menina nova. E me pediu pra trazer uma garrafada de Manaus.
Quando ouviu isso, o bom velhinho olhou para os lados e respondeu, baixo:
- É dos índios, é?
- É. Do Amazonas.
E selou a sorte, com a seguinte terapêutica:
- O remédio é pra passar ao redor do pau.
E recebeu por isso um bom pagamento. O esperançoso velhinho, que estava vendendo umas galinhas no chão, ainda amarradas, juntou todas em um só golpe e correu para casa. “Doutor, eu chega tive pena”.
No fim da vida, ao relembrar esse velhinho, Leão Leonardo muito se arrependia, por não poder guardar a mesma esperança. Ainda que delas precisasse, nem às garrafadas podia recorrer. A olhar triste para os cantos do casebre, contava:
- Doutor, pra mim não tem mais milagre.
Eu, que tomei nota de sua história, não me ocorreu lhe dizer na ocasião que o maior milagre era ter existido uma pessoa como Leão, um leão como ele. Leão José Leonardo, um dos inventores da cura da impotência pela garrafada do Índio.
• Escritor e jornalista, autor dos livros “Soledad no Recife” e “Os corações futuristas”, entre outros.
* Por Urariano Mota
Foto: do arquivo de Liêdo Maranhão
Para Liêdo Maranhão, maior pesquisador de povo do Brasil
Na aparência, ele era dono de todas as condições de um miserável, do miserável que os bem postos na vida chamam de um fracassado. Entre toda a gente ele andava mal vestido, mal e mal trajado até pelos costumes do povo pobre do Recife. Em 1960, quando atingiu sua fase mais próspera, usava alpercatas de sola grossa de borracha, de pneu, como diziam, que substituíram, que eram um avanço aos antigos sapatos pretos de plástico. O calçado anterior parecia mais patas do diabo, no plástico escuro que abafava, fechava, mordia, coçava com suor fétido seus pobres pés humanos, no calor de mais de 30 graus do Recife. Te esconjuro, cão. Agora, de alpercatas, era um homem.
Da cintura para cima, estava sempre metido em camisas de mangas curtas, de algodão em cores descaídas, baças por fabricação ou por passagem em muitas águas, costuradas ou emendadas com linhas escuras, por cima das calças. Camisa por fora das calças, sempre, que era ao mesmo tempo um estar à vontade e uma medida de segurança, para que não fosse descoberto o cordão barbante, que usava em lugar do cinto de couro. Calças de caroá, com freqüência de um azul de cal, de tecido áspero que arranhava a pele como um cilício, como uma punição a lembrá-lo dos seus pecados mortais, veniais, cometidos todos os dias. Todo santo dia, todos santificados dias, porque todos eram de batalha. “É uma batalha, doutor”, contava.
Falava mal o português, diziam. Isso porque observavam com atenção a sua fala, de um popular antigo, de trocas, metódicas, de R por L, ou de L por R. Por exemplo, garfos ele chamava de galfos, ao mesmo tempo que rebatizava o nome Clara pelo talvez mais simples Crara. É claro, prestavam atenção nas trocas do LH por I, como paia em lugar de palha, ou paiaço em vez de palhaço. É claro, atentavam antes para a sua boca, onde exibia no alto, isolados, apenas dois caninos, larga porta de colunas desgraciosas, sempre aberta para a passagem da língua nos momentos mais agudos. É craro, percebiam apenas a indigência do estado da sua pessoa na língua fora das normas. Ainda que fosse língua fina, de finório. Mas quem o ouvisse no todo, quem prestasse atenção no ser dos seus atos, iria notar que ele falava bem, muito bem, e fluente, com frases e retórica dignas de Vieira. É certo, de um Vieira sem latim, mas com a picardia dos gregos. Isso poderia ser percebido então. O que não se notava era que ele era um artista, que ele era um homem plástico, no sentido de moldar e modelar o ambiente, conforme o seu desejo. Para ser mais claro, ele, como todo artista, em qualquer lugar ou tempo, tirava partido, transformava em vantagem a sua dificuldade. Fazia merecimento do que o desmerecia.
O desgraçado tirava partido do seu fracasso. Para a profissão a que foi atirado, ou que escolhera, para o gênero e variedade com que ele trabalhava, a melhor feição era a do fracassado, do analfabeto, que mal falava e pior ainda parecia. Camelô ele era, na maioria das vezes, quando vendia remédios milagrosos por um preço muito abaixo do milagre. Por um preço de idiota. Em outras ocasiões, era um homem que vivia como peixe no mar do povo. Vendia, cumpria recados, pois que era portador de maravilhosas encomendas. Com um metro e sessenta e cinco, altura bem média para a gente do Recife em 1960, tinha a pele morena, acaboclado, os cabelos lisos, densos, untados de óleo. Exalava um cheiro permanente de quem não havia tomado banho há mais de dois dias (o que nem sempre era uma hipótese), misturado a pó, a poeira, ao calor tropical. Fedia, em resumo. Fedia com o cheiro daquele peixe seco que os pobres compravam fiado, daquela sardinha repleta de sal, as “raparigas”, nas vendas dos subúrbios.
Nascido José Leonardo da Silva, na adolescência ele se fez chamar Leonardo, para não ser chamado de Zé. Depois, na maturidade passou a ser conhecido, melhor, reconhecido pelos mais íntimos como Leão. Mas somente pelos muito íntimos. Para os outros, para as suas vítimas, ele não passava de um leãozinho sem garras, sem dentes, tão inofensivo, pobre, miserável, analfabeto, ingênuo se apresentava. E puro. Puro como as feras aladas da imaginação popular. Melhor dizendo, como um anjo. Pois este Leão jamais seria uma fera:
- Madame, este anel é seu?
O homem mal vestido, o santo entre as mulheres bem vestidas, gostava de fazer essa pergunta em feiras livres. Antes observava a distância aquelas que retiravam da bolsa molhos de dinheiro. Mas observava a seu modo de observar, depois de as escolher pela cor, roupas, e português escorreito, de gente fina, educada. Então ele, vindo em sentido contrário, fazia cair um anel de fantasia, com uma pedra bonita, grande, de encantar a vista. E, surpreso, ao descobrir o pequeno tesouro no chão, olhava para a boa senhora à sua frente:
- Madame, a senhora tem sorte, porque eu sou um homem honesto. Isso é um anel de formatura, e eu sei que é da senhora. Não é ?
A boa mulher media o pobre coitado, a sua idiotice, quando o comparava ao anel brilhante, e respondia, baixinho:
- É....
Então, em nome da boa consciência, dava-lhe uma gorjeta pelo ato, dele, de honestidade.
- É....
Contava depois Leão: “Doutor, quando a mulher diz ‘é’.... é um ladrão comendo o outro”. Esse era o golpe do achadinho. O leão comido era o comedor.
Se a digna ordem dos camelôs, em sua lei geral, era enganar, Leão Leonardo radicalizava. Em vez de esperar o freguês na praça e vender, por vezes ele ia a seu encontro na rua. Leão vendia o que se chamava “no atraca”, isto é, o camelô na rua emparelhar com a pessoa e puxar conversa, ficar conversando. O freguês de sua predileção era mulher, que na época vinha do lar, de casa, sem a experiência e malícia da vida mais prática.
Naquela época, a Loja Viana Leal ficava próxima ao Mercado de São José, na praça do Mercado. Então ele fazia amizade com os balconistas da loja e pedia: “quando aparecer uma terrina com defeito, ou quebrada, você guarda pra mim, que eu lhe pago”. Quando aparecia a ocasião, ele mandava fazer um embrulho de presente, e ficava ali na ponte da Boa Vista. Quando passavam duas madames, ele se metia pelo meio delas, e soltava a terrina. Para dizer, quase aos prantos:
- Minha senhora, o que é que vou dizer agora? A senhora quebrou um presente encomendado pelo doutor!
E a mulher:
- Espera aí, meu senhor, tenha calma, o que é que a gente pode fazer?...Quanto é?
Homem simples, parco, o Leão aflito se satisfazia com pouca coisa.
- A senhora dá o que quiser...
No comum dos seus dias, Leão Leonardo era camelô de remédio. Que remédio, ele dizia, era tudo que o curava de morrer de fome. Para os outros, não. No comum de suas batalhas, Leão vendia remédio para curar varizes. Sim, uma pomadinha magnífica que fechava e alisava a pele, veias, pernas, sem cirurgia. Uma pomadinha digna das Mil e uma noites. Já próximo do fim, quando quase tudo é inútil esconder, Leão contava e cantava a receita de sua maravilha:
- Meia lata de óleo. Óleo de cozinha, doutor. Aí eu botava o óleo pra ferver. Depois, raspava uma vela e botava no óleo. Aí esfriava e botava nas latinhas. Muito bonitas as latinhas, doutor.
No começo dessa prática farmacêutica, a sua mulher, evangélica, arregalava os olhos e gritava, para não ser cúmplice de um crime:
- Mas Leão, isso é pecado!
- E nós vamos morrer de fome? Jogue os pecados pra cima de mim. Eu carrego.
Até que a sua mulher acostumou, e nada mais viu, porque o hábito de comer traz em si uma complacência. Como ela poderia saber, pelos frutos trazidos para casa, dos pecados cometidos pelo pecador? Natural, o coração não pode viver em agonia. Para quê adivinhar?
Ora, estava escrito que na praça em frente ao Mercado de São José Leão Leonardo não fosse o único a vender maravilhas. Pelo contrário, ali estavam em disputa pela atenção do povo muitos artistas, mágicos, feiticeiros, adivinhos, médicos e enviados das florestas. Agiam como em um teatro antigo da Grécia. Camelôs, come-vidro, engole-cobra, cantadores, mas sobretudo camelôs de remédio, os mais inteligentes. Inventores de nomes até para as drogas que vendiam: Resina da Gerimataia, Banha do peixe-elétrico... Por isso, o bravo Leão havia de obrar o seu milagre antes do cristão entrar no palco do Mercado. De observar e observar, ele descobriu o que chamava “uma chave”.
Era um tempo em que as mulheres, como a moda mais avançada, usavam no Recife calças compridas. Um recurso ótimo de esconder pernas finas e varizes. Que fez Leão? Na Rua Direita, tinha um vendedor ambulante de calçados. Ele costumava dispor um caixãozinho, para que as mulheres experimentassem o sapato. Como era indispensável, as mulheres levantavam a perna da calça. Então o nosso experimentado vidente, de um ponto privilegiado, via as que possuíam varizes. Ato contínuo, ele acompanhava a mulher a uma certa distância, dava uma volta, e se encontrava, sem querer, com ela:
- Madame, por que não cuida de suas varizes? Sim, cuide. Mas pelo amor de Deus não faça como Clara Nunes.
Na época, Clara Nunes havia falecido, em um acidente anestésico, ao se operar de varizes. E por isso, o nosso enviado insistia:
- Por favor, não se opere não.
Quando isso ouvia, a mulher perguntava:
- Mas como é que o senhor sabe que eu tenho varizes?.
- Eu estou lendo na testa da senhora. Eu sou índio. Eu sou o Índio Telefitin!....
E vendia estoques de sua impressionante pomada à mulher impressionada. O diabo é que o milagre, certo como a visão profética de um pajé, depois do uso da pomada falhava. Estava escrito. Mas não estava predito o que Leão havia de fazer ante uma desmoralização pública. Diante de uma cliente raivosa, certa vez, ele “tirou a bronca”, como dizia. Na praça do Mercado ela lhe disse:
- Olhe, o seu remédio não fez efeito nenhum.
E ele, em desespero e frio:
- Mas a senhora usou em quarto minguante? Durante a lua quarto minguante?.
- Naaão...
- Pois o Índio disse que é pra usar a pomada em quarto minguante.
Fazia sentido. A lua em quarto minguante tem pontas, que se projetam como pontas de varizes. Por isso a mulher lhe comprou mais outra latinha da pomada.
Esse Índio era mesmo uma criatura e criação extraordinária. Justiça seja feita, o Índio não era uma criatura exclusiva de Leão. Tal criatura estava na imaginação do povo. O Índio, os índios, de modo geral, eram e seriam senhores de um conhecimento que os doutores médicos da cidade jamais poderiam ter. Como aqui, numa das últimas aparições do feiticeiro-sábio-gênio-santo.
Um dia, que ele dizia ter acontecido pela primeira vez na feira de Arcoverde, Leão Leonardo variou de milagre, passando para a venda de garrafadas. Sim, para os homens ele vendia garrafadas, que assim eram chamadas as garrafas de remédio, repletas de um líquido extraordinário. Então nessa primeira vez, Leão Leonardo pôs os olhos num senhor velho, e nele pôs os olhos como o profeta escolhe aquele a quem vai perseguir. Manso, com uma cara de pagador de promessas, aproximou-se do velhinho e lhe disse:
- Olha aí, eu não disse ao senhor que trazia? Eu sou um homem de palavra.
E o velhinho:
- Trazia o quê, meu filho?
- Ah, desculpe. Eu me enganei com o senhor. Aqui tinha um velhinho, que tá aperreado com uma menina nova. E me pediu pra trazer uma garrafada de Manaus.
Quando ouviu isso, o bom velhinho olhou para os lados e respondeu, baixo:
- É dos índios, é?
- É. Do Amazonas.
E selou a sorte, com a seguinte terapêutica:
- O remédio é pra passar ao redor do pau.
E recebeu por isso um bom pagamento. O esperançoso velhinho, que estava vendendo umas galinhas no chão, ainda amarradas, juntou todas em um só golpe e correu para casa. “Doutor, eu chega tive pena”.
No fim da vida, ao relembrar esse velhinho, Leão Leonardo muito se arrependia, por não poder guardar a mesma esperança. Ainda que delas precisasse, nem às garrafadas podia recorrer. A olhar triste para os cantos do casebre, contava:
- Doutor, pra mim não tem mais milagre.
Eu, que tomei nota de sua história, não me ocorreu lhe dizer na ocasião que o maior milagre era ter existido uma pessoa como Leão, um leão como ele. Leão José Leonardo, um dos inventores da cura da impotência pela garrafada do Índio.
• Escritor e jornalista, autor dos livros “Soledad no Recife” e “Os corações futuristas”, entre outros.
Leão vendia ilusões com a convicção de um padre. Pena que seus feitiços não serviam a ele, o feiticeiro.
ResponderExcluirA vida desse personagem ganhou uma cor de ficção e de graça nas suas palavras Urariano, da descrição da aparência, da personalidade, das ações ao cheiro. Deu para senti-lo sem esforço algum.