domingo, 20 de fevereiro de 2011




Além do susto remorso

* Por Lêda Selma

Isso foi há muito tempo. Nunca passei um apuro tão grande. Escapei por pouco. No momento, só consegui invocar Nossa Senhora dos Apurados, santa que inventei no auge do desespero. E não é que a bendita me valeu?! Os maridos afeitos a peraltices descartáveis, aquelas pra espantar o marasmo da rotina sob os lençóis domésticos, podem confiar na inventada, pois ela tem o maior prestígio na Instância Superior.
– Mas, e então? – atalha um dos ouvintes.
– Ah! sim: estava eu numa daquelas estripulias extraconjugais, daquelas com pinta de reativar até vulcão inativo, com uma louraça de mão, voz e lábios venenosos, corpo apetitoso, um mulheraço de dilatar as pupilas de qualquer cego, quando...
– Que mal lhe pergunte, estava o amigo onde?
– Ora, num motel, isto é, adentrando o próprio. Hum... mas já sentia os efeitos antecipados dos momentos vindouros.
– E daí?
– Daí que, súbito, divisei minha esposa, com aquela panca de mulher elegante, cheia de vida, a bordo de seu chevette vermelho, acompanhada de um rapaz bem-ajambrado, alto, fortão, e deduzi: o tal ajudante, escolhido a dedo, para cuidar de seu material de trabalho.
– Está explicado o susto... – interferiu um outro.
– Pois então. Susto e remorso. É, amigo, me bateu um remorso, um comichão na consciência, que só vendo. Pensei: castigo! E merecido, afinal, não era justo a coitada, ali, em serviço, pronta pra pegar no duro, e eu pronto pra vadiar...
– Agora, desentendi de vez, criatura. Você vadiando, sua mulher chegando num chevette vermelho pra trabalhar... Ela trabalha no motel...?!
– Trabalhar, trabalhar, não. Ela roda ali, acolá, fazendo uns bicos, biscate, entende?
– Se entendo... Entendo, e como!
– E lá deve ser propício pra mostrar e demonstrar a qualidade do seu produto que, aliás, garanto-lhes, é de primeiríssima!
– Imagino...
– E o melhor é que o moço, o ajudante, um Arnold Schuaznega melhorado nunca deixa a pobrezinha na mão, está sempre com ela. Ah! esqueci de dizer que minha gansa (é assim que a trato carinhosamente) é revendedora de produtos de beleza e de limpeza!
– Gansa... decerto, com ç, gança... Ih! deixa pra lá!
– Você e seus trocadilhos, piadista como sempre, hem?!
– Trocadilho, é...?! Bem, curiosidade indiscreta, pergunta maldosa: E a louraça, dilatou a pupila do “cego”? – arriscou, com ironia, o desentendido, ou melhor, nem tanto.
– Uma catástrofe, meu caro! Além de quase ter morrido de susto, ainda fui vencido pelo remorso. Também, aquela desmancha-prazeres – brincadeira, tadinha de minha esposa! – precisava aparecer justo naquele lugar e justo naquele momento pra me deixar todo penitenciado?! E o vexame, então? Completo. E não houve mais santa que desse jeito de levantar meu astral. Até hoje, não sei o que aquela louruda ficou pensando de mim. Só sei que tive muita sorte, porque se minha mulher tivesse me visto, além da decepção de ter descoberto o tremendo infiel que sou, a estas horas, eu estaria no olho da rua ou com o passaporte carimbado para o inferno. E casamento é coisa séria, a gente não pode acabar com ele assim, sem mais nem menos, por culpa de um marido que adora traquinar nos compartimentos femininos alheios. Arre!!!

Crônica publicada no jornal “Diário da Manhã”, de Goiânia, em 15.01.2011

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

Um comentário:

  1. Parafraseando o personagem de Jô Soares que ouvia do amigo, diante de todas as evidências que seu filho era homossexual: " tem pai que é cego".

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