sábado, 26 de fevereiro de 2011




A biosfera

* Por Arnold Toynbee



O termo "biosfera" foi criado por Teilhard de Chardin. É um termo novo, exigido por nossa chegada a um estágio mais avançado no progresso de nosso conhecimento científico e poder material. A biosfera é uma película de terra firme, água e ar que envolve o globo (ou globo virtual) de nosso planeta Terra. É o único habitat atual — e, tanto quanto podemos prever hoje, é também o único habitat jamais viável de todas as espécies de seres vivos que conhecemos, a humanidade inclusive.
A biosfera é estritamente limitada em seu volume e, por isso, contém um estoque também limitado dos recursos de que as várias espécies de seres vivos têm de lançar mão para se manterem. Alguns desses recursos são renováveis; outros, insubstituíveis. Qualquer espécie que utilize demais seus recursos renováveis ou esgote os insubstituíveis condena-se à extinção. O número de espécies extintas que deixaram vestígios no registro geológico é assombrosamente elevado em comparação com o número das ainda existentes.
A característica mais significativa da biosfera é seu tamanho relativamente pequeno e a exiguidade dos recursos que oferece. Em termos terrestres, a biosfera é fantasticamente delgada. Seu limite superior pode ser comparado à altitude máxima, na estratosfera, em que um avião pode permanecer no ar; seu limite inferior é a profundidade, abaixo da superfície de sua porção sólida, até onde os engenheiros podem perfurar e abrir minas. A espessura da biosfera, entre esses dois limites, é mínima, como uma película delicada, se comparada ao comprimento do ralo do globo por ela coberto. Este globo está longe de ser o maior dos planetas de nosso sistema solar, e também está longe de ser o planeta mais distante do sol, em torno do qual todos os planetas do sistema "giram" em órbitas que, na verdade, não são circulares, mas sim elípticas. E mais, nosso sol é apenas um dentre o número quase incrível de sóis que formam nossa galáxia, e nossa galáxia é apenas uma, dentre uma multidão de galáxias cujo número é desconhecido (o número de galáxias que se conhecem cresce a cada aumento no alcance de nossos telescópios). Assim, comparadas às dimensões da porção conhecida do cosmos físico, as dimensões de nossa biosfera são infinitesimalmente mínimas.
A biosfera não é tão antiga quanto o planeta que ora envolve. É uma excrescência — poderia também ser chamada de halo ou crosta — que começou a existir muito tempo depois da crosta do planeta haver esfriado suficientemente para que partes de seus componentes, originariamente gasosos, se liquefizessem ou solidificassem. Quase com certeza, é a única biosfera ora existente em nosso sistema solar, e é possível que, dentro deste sistema, nenhuma outra biosfera já tenha existido ou venha a existir. Naturalmente, nosso sistema solar, como nossa biosfera, é apenas uma parte ínfima da porção conhecida do cosmos físico. É possível que outros sóis — talvez vários outros — além do nosso possuam planetas e que, entre esses outros planetas possivelmente existentes, possa haver alguns que, como o nosso, girem em torno de seus sóis a uma distância em que, como nosso planeta, possam criar biosferas em volta de suas superfícies. Mas se, de fato, há outras biosferas em potencial, não se pode pressupor que sejam realmente habitadas por seres vivos, como a nossa. Num habitat em potencial para a vida, essa potencialidade não se realiza necessariamente.
A configuração física da matéria organicamente estruturada foi descoberta agora mas, como já foi observado, o contingente físico da vida, da consciência e do propósito não é a mesma coisa que a própria vida, consciência e propósito. Não sabemos como ou por que a vida, a consciência e o propósito começaram a existir sobre a superfície de nosso planeta. No entanto, sabemos atualmente que os constituintes materiais de nossa biosfera foram redistribuídos especialmente e recompostos quimicamente como resultado da interação entre organismos vivos e matéria inorgânica. Sabemos que um efeito da gênese de organismos vivos "primitivos" foi fornecer um filtro através do qual a radiação que bombardeia constantemente nossa biosfera, provinda de nosso sol e de outras fontes externas, é atualmente admitida em nossa biosfera com urna intensidade não apenas tolerável, como também hospitaleira para formas "superiores" de vida (o termo "superiores" com o significado de mais próximo à forma assumida pela vida na espécie homo sapiens um uso relativo e subjetivo do termo "superior").
Também sabemos que a matéria contida em nossa biosfera foi e está sendo constantemente permutada ou "reciclada" entre as porções dessa matéria que, num dado momento. são inanimadas e animadas e que, na porção animada, no dado momento, algumas seções são vegetais e outras são animais e ainda que, na seção animal, alguns espécimes são não-humanos e outros são humanos. A biosfera existe e sobrevive através de um delicado equilíbrio de forças, auto-regulador e autopreservador. Os constituintes da biosfera são interdependentes e o Homem é exatamente tão dependente de sua relação com o resto da biosfera quanto qualquer dos outros atuais constituintes da mesma. Por um ato de pensamento, um ser humano pode destacar-se do resto da humanidade, do resto da biosfera e do resto do Universo físico e espiritual. A natureza humana, porém, inclusive a percepção consciente e a consciência moral, bem como a compleição humana, também só se encontra localizada na biosfera, e não temos qualquer prova de que seres humanos individuais ou a humanidade tenham - ou possam ter qualquer existência além de sua vida na biosfera. Se a biosfera deixasse de ser um habitat possível para a vida, o destino da humanidade, tanto quanto sabemos, seria a extinção que se estenderia então a todas as demais formas de vida.
Além disso, a biosfera potencial mais próxima da nossa (se é que, além da nossa, existe outra em algum ponto do cosmos físico) pode estar a centenas de milhões de anos-luz de nosso planeta. Em nossa geração, uns poucos seres humanos foram levados à superfície da lua de nosso planeta e, após uma rápida permanência ali, foram novamente trazidos à Terra, ainda vivos em quase todos os casos. Foi um feito magnífico da ciência aplicada à tecnologia, mas foi um feito ainda mais notável de sociabilidade, considerando-se que, até o presente momento, os seres humanos tiveram muito menos sucesso em suas relações uns com os outros do que em dominar a parte não-humana da Natureza. Esse feito deu-nos algumas lições de importância prática para a avaliação de nossas perspectivas e escolha de nossa política de ação na Terra.
A Lua está muito mais próxima da Terra do que qualquer outra estrela; é o satélite de nosso planeta. Mandar alguns homens à Lua por umas poucas horas, porém, exigiu o trabalho precisamente coordenado e entusiasticamente cooperativo de várias centenas de milhares de seres humanos. Também exigiu um grande gasto de recursos materiais e considerável utilização de coragem e capacidade, que são os bens mais raros e preciosos da humanidade. Mesmo que a Lua provasse ser tão rica em recursos para a vida humana quanto as Américas, a exploração dos mesmos não seria economicamente lucrativa. Uma colonização permanente da Lua por seres terrenos seria impraticável. Os corpos humanos possuem urna estrutura física que lhes permite suportar, sem esforço, a força gravitacional peculiar à massa da Terra e a pressão peculiar ao revestimento de ar da Terra. Têm necessidade de alimento sob a forma de outras substâncias orgânicas, vegetais ou animais. Todas essas características e necessidades da vida humana estavam presentes nas Américas para os europeus que lá chegaram, atravessando o Atlântico no século X da era cristã, partindo da Escandinávia e, no século XV, oriundos da Espanha. O fato de encontrarem outros seres humanos que se haviam antecipado aos europeus na chegada e ocupação das Américas era uma prova de que essas outras partes de terra firme no planeta também eram habitáveis.
A Lua não é habitável para forma alguma de vida. A única matéria lunar que poderia ser um recurso para os seres humanos seria matéria inanimada, que jamais foi orgânica, mesmo temporariamente. Para se tornar útil, essa matéria lunar teria de ser transportada da Lua para a Terra por seres humanos acampados e trabalhando na Lua, com a desvantagem de condições extremamente duras. Isso não compensaria, como compensou trazer fumo da América para a Europa e cultivar, na Europa e na Ásia, também outras plantas — a exemplo do milho e da batata — - que haviam sido tornadas domésticas, na América, pelos predecessores dos europeus, que lá haviam chegado pelo extremo oposto.
Embora nem a Lua nem os planetas irmãos da Terra, que estão muito mais afastados da Terra do que a Lua, sejam habitáveis para os habitantes de nossa biosfera, é possível imaginar que algum outro sol, talvez numa outra galáxia, possa ter um planeta que seria habitável para nós; mas, mesmo que pudéssemos localizar um outro planeta habitável. não seria viável, para viajantes partindo de nossa biosfera, atingi-lo. Suponhamos que descobríssemos como dirigir a rota sem sermos atraídos, pelo caminho, para uma das escaldantes fornalhas. dos inúmeros sóis que se movem pelo espaço: a viagem poderia levar cem anos. Assim. teríamos que criar uma nave espacial onde os passageiros pudessem gerar filhos que pudessem viver a bordo e, por sua vez, gerar filhos e netos antes de o veículo poder pousar e desembarcar a terceira ou quarta geração. E mesmo que essa geração ao chegar a aterrisar pudesse ter certeza de encontrar ar respirável, água potável e alimentos comestíveis, além de uma pressão atmosférica e força gravitacional toleráveis nessa réplica hipotética de nossa biosfera, o veículo (urna Arca de Noé modernizada) em que fizessem a viagem de uma a outra biosfera habitável teria que carregar rações de ar, alimento e bebida que mantivessem vivas gerações sucessivas, a bordo, durante um século. Parece extremamente improvável que essa viagem fabulosa venha realmente a ser feita.
Assim, nosso conhecimento e experiência atuais levam à conclusão de que o habitat dos naturais da biosfera localizada sobre a superfície do planeta Terra continuará confinado a essa cápsula. dentro da qual surgiu a vida, na forma como a conhecemos. Embora seja possível que existam outras biosferas habitáveis para os naturais da nossa biosfera, é tão improvável que possamos jamais alcançar e colonizar qualquer delas que não seria razoável levar essa possibilidade em consideração. De fato, é uma fantasia utópica.
Se concluirmos, então, que nossa biosfera atual, que até agora foi nosso único habitat, é também o único habitat físico que temos probabilidade de ter, essa conclusão irá exortar-nos a concentrar nossos pensamentos e esforços nesta biosfera: estudar sua história, prever suas perspectivas e fazer tudo o que a ação humana puder fazer para garantir que esta - que, para nós, e a -— biosfera permaneça habitável até que, com o passar do tempo, se torne inabitável em virtude de forças cósmicas além do controle humano.
O poder material da humanidade aumentou agora em tal grau que poderia tornar inabitável a biosfera e, realmente, irá produzir esse resultado suicida num período de tempo previsível, se a população humana do globo não empreender agora ação conjunta e vigorosa para conter a poluição e espoliação que estão sendo infligidas à biosfera pela ganância cega da humanidade. Por outro lado, o poder material da humanidade não bastará para garantir que a biosfera continue a ser habitável, na medida em que nos abstenhamos de destruí-la pois, embora a biosfera seja finita, não é auto-suficiente. A Mãe-Terra não gerou a vida por partenogênese. A vida foi gerada na biosfera através da fertilização da Mãe--Terra por um pai: o Aton do faraó Aquenaton, o disco solar, que é "o Sol Inconquistável", "Sol Invictus" dos imperadores romanos ilírios. de Aureliano a Constantino, o Grande.
A reserva de energia física da biosfera — que é a fonte material de vida e também a fonte da força física presente na natureza inanimada, que o homem agora dominou — não se origina na própria biosfera. Essa energia física foi e é constantemente irradiada para a biosfera por nosso sol e também por outras partes cósmicas e o papel da biosfera, nessa recepção vital de radiação provinda de além de seus confins, é meramente seletivo. Já foi mencionado que a biosfera filtra a radiação que cai sobre ela. Admite os raios que geram a vida e repele os que são letais. Esse jorro benéfico de radiação sobre a biosfera a partir de fontes externas, porém, só continuará a ser benéfico enquanto o filtro não for retirado de ação, e enquanto essas fontes de radiação permanecerem invariáveis; e nosso sol, como todos os demais no cosmos estelar, está-se modificando constantemente. É concebível que, numa data futura, algumas dessas modificações cósmicas, em nosso sol ou em outras estrelas, possam alterar de tal forma a incidência de radiação recebida por nossa biosfera que tornem inabitável o que é hoje urna biosfera e, se e quando nossa biosfera for ameaçada por essa catástrofe, parece improvável que o poder material da humanidade seja suficientemente grande para conseguir neutralizar uma alteração mortal na influência de forças cósmicas.
Consideremos, agora, os componentes da biosfera e a natureza de suas relações uns com os outros. Há três componentes na biosfera: em primeiro lugar, matéria que ainda não se tornou viva pela aquisição de uma estrutura orgânica; em segundo lugar, matéria orgânica viva; e em terceiro, matéria inanimada que já foi viva e orgânica e que ainda mantém algumas qualidades e poderes orgânicos. Sabemos que a biosfera é mais nova do que o planeta que envolve; também sabemos que, dentro da própria biosfera, a vida e a percepção consciente não estão presentes há tanto tempo quanto a matéria com a qual vieram a associar-se. A película de matéria que, atualmente, é uma biosfera, já foi inteiramente inanimada e inconsciente, como ainda o é a maior parte da matéria do globo. Não sabemos como ou por que uma parte da substância material da biosfera se tornou finalmente animada, nem como ou por que, num estágio ainda posterior, uma parte dessa matéria viva se tornou consciente. Podemos formular a mesma pergunta inversamente: como e por que a vida e a percepção consciente vieram a se encarnar? Mas também dessa forma inversa a resposta ao enigma ainda nos escapa.
O componente exorgânico da biosfera é surpreendentemente vasto e forneceu à humanidade alguns dos recursos mais importantes para a manutenção da vida humana. Atualmente é do conhecimento geral que os recifes e ilhas de coral foram produzidos por miríades de animais minúsculos, cada um acrescentando seu incremento ínfimo de rocha artificial sólida e resistente. No curso de milênios, o trabalho realizado por esses minúsculos animais aumentou notavelmente a área de terra firme na biosfera, habitável para formas de vida não-aquáticas. Esses seres vivos minúsculos, mas inúmeros e infatigáveis, construíram uma área adicional de terra firme insular habitável maior do que a proveniente da poderosa força inanimada da ação vulcânica, que rivalizou com os minúsculos animais autores do coral, ao empilhar matéria sólida sob a água até emergir uma ilha acima da superfície do mar.
Também é do conhecimento geral, atualmente, que o carvão é um produto dos troncos de árvores que já tiveram vida, e que o solo fértil deve parte de sua fertilidade ao fato de haver sido atravessado por minhocas e haver sido povoado por bactérias de espécies que lhe intensificam a capacidade de sustentar a vegetação; o leigo, porém, ainda se surpreende se um geólogo lhe sugerir que a pedra calcária, ora visível nos picos recortados de algumas das atuais cadeias de montanhas da biosfera, é produto de depósitos das conchas ou ossos de animais marinhos no fundo de mares desaparecidos há muitos e muitos anos, e que esses depósitos horizontais de matéria orgânica que já teve vida foram dobrados - recentemente, em termos da escala de tempo dos geólogos - por uma contração da crosta da Terra, e redobrados, até serem impulsionados para cima, adotando suas formas contorcidas atuais. O leigo irá surpreender-se ainda mais se lhe for dito que os vastos depósitos subterrâneos de óleo mineral também podem ser matéria ex-orgânica — isto é, que podem ser semelhantes ao carvão, e não ao minério de ferro ou granito: substâncias que jamais passaram por um estágio orgânico na configuração de suas moléculas constituintes.
A magnitude surpreendente da massa de matéria ex-orgânica na biosfera chama nossa atenção para alguns aspectos desconcertantes da história da vida (chamada erroneamente de "evolução", um termo que significa não uma alteração genuína, mas o "desdobramento" de alguma coisa que sempre existiu naquele lugar em estado latente). A vida diferenciou-se numa quantidade de gêneros e espécies distintos e cada espécie é representada por uma quantidade de espécimes. A multiplicidade de espécies e espécimes foi a condição que permitiu a progressão da vida, de organismos relativamente simples e fracos para organismos relativamente complexos e potentes, mas o preço dessa progressão, através de divisão e diferenciação, foi a competição e a luta. Cada espécie e cada espécime de cada uma das espécies compete com as demais pela posse dos constituintes da biosfera, inanimados e animados que, para uma determinada espécie e para seus espécimes, sejam recursos, no sentido de serem meios efetivos de manutenção da vida. Em alguns casos a competição foi indireta: uma espécie, ou um espécime de uma espécie, extinguiu outra ou outro não por ato de rapina ou extermínio, mas ganhando para si a parte do leão de algum recurso que, para ambos os competidores, é uma das necessidades vitais. Quando os espécimes de espécies não-humanas de animais lutam por alimentos, água ou acasalamento, os perdedores têm a fama de pedir clemência e recebê-la dos vencedores em troca de sua rendição. Os seres humanos têm a fama de ser os únicos animais que lutam entre si até a morte e que massacram as mulheres e crianças "do inimigo", bem como os velhos e combatentes masculinos. Essa fonte de atrocidade distintamente humana estava sendo perpetrada no Vietnã no momento em que eu escrevia essas palavras em Londres, e tem sido celebrada — e dessa forma, embora não intencionalmente. abominada — em famosas obras de arte criadas nos últimos 5.000 anos; por exemplo, a paleta do Rei Narmer, o baixo-relevo de Eannatum, a estrela de Naramsin e os monumentos de seus imitadores assírios subsequentes, as epopéias gregas de Homero e a coluna de Trajano.
Assim, a progressão da vida foi parasitária, em seu melhor aspecto, e predatória na pior das hipóteses. O Reino Animal tem sido um parasita do Reino Vegetal; os animais (pelo menos os animais não-marinhos) não poderiam vir a existir se a vegetação já não existisse como fornecedora vital de ar e alimento para os animais; algumas espécies de animais se mantêm matando e devorando animais de outras espécies, e o homem tornou-se um desses carnívoros desde a época em que saiu de seu abrigo anterior, no alto das árvores, e aventurou-se no solo, arriscando-se a ali matar ou morrer. As vítimas da progressão da vida são as espécies que se tornaram extintas e os representantes de espécies sobreviventes, que são continuamente massacrados. O homem domesticou algumas espécies de animais não-humanos para roubar-lhes seus produtos - leite ou mel - enquanto vivos, e matá-los implacavelmente para usar sua carne como alimento, e seus ossos, tendões, couro e peles como matérias-primas para a confecção de ferramentas e roupas.
Os seres humanos também têm feito presas entre si. O canibalismo e a escravatura têm sido praticados em sociedades altamente sofisticadas - ambas essas enormidades na Meso América pré-colombiana, por exemplo, e a escravatura nas sociedades greco-romana, islamita e ocidental moderna. Um escravo é um ser humano tratado como se fosse um animal doméstico não-humano e o caráter revoltante do tratamento dispensado pelo homem a animais não-humanos foi confessado implicitamente no movimento, durante os dois últimos século, em prol da abolição da prática de se escravizarem seres humanos. Além disso, a emancipação jurídica de escravos pode não liberá-los de fato, pois um homem juridicamente livre pode ser explorado servilmente. Um colono romano nominalmente livre no século IV de nossa era, bem como um decurião romano da mesma época, eram menos livres de fato do que um pastor romano, administrador de terra ou oficial escravo do imperador no século 1 de nossa era, ou do que um mameluco islamita (este termo árabe significa "reduzido a ser uma peça de propriedade"; no entanto, para um mameluco, a escravidão jurídica era o meio para se tornar amo e senhor de uma multidão de camponeses juridicamente livres). Nos Estados Unidos, os negros, emancipados juridicamente em 1862, percebem agora, mais de um século depois, e com justa razão, que a maioria branca de seus concidadãos ainda lhes nega direitos humanos plenos.
A atrocidade especificamente humana que vem desaparecendo mais depressa é o assassinato sob a forma ritual de sacrifício humano. O assassinato foi amplamente condenado quando o motivo era ganância ou ódio pessoal. O assassinato como punição para crime igual também vem sendo progressivamente abolido. Em alguns estados de hoje, foram abolidos não apenas feudos privados com derramamento de sangue, como também as execuções oficiais. Também o assassinato ritual foi abolido nos casos em que o deus ao qual se sacrifica a vítima humana é uma deificação deste ou daquele recurso natural necessário à manutenção da vida humana — por exemplo, a chuva, as colheitas ou o gado. Todavia, desde a época em que o homem obteve o controle da natureza não-humana, Os deuses adorados com mais devoção, fanatismo e ausência de remorso foram deificações do poder humano coletivo organizado, através do qual o homem venceu a natureza não-humana.
Os estados soberanos têm sido os objetos supremos de adoração da humanidade durante os últimos 5.000 anos; e são divindades que têm exigido e recebido hecatombes de sacrifícios humanos. Os estados soberanos fazem guerra uns contra os outros e, na guerra, cada um deles exige da elite de seus súditos masculinos que assassinem os súditos do estado "inimigo", arriscando-se a serem assassinados por suas pretensas vítimas. Até onde nos leva a memória, todos os seres humanos. à exceção de algumas pequenas minorias a exemplo dos membros da Sociedade de Amigos — consideram o fato de matar e morrer na guerra como não apenas legítimo, mas também meritório e glorioso. Matar na guerra, bem como matar para executar uma sentença de morte, tem sido paradoxalmente desculpado como "não sendo assassinato".
A progressão da vida na biosfera tem valido seu preço em angústia? Um ser humano vale mais do que uma árvore, ou esta vale mais que uma ameba? A progressão da vida produziu uma série ascendente de espécies apenas se calcularmos a ascendência em termos de poder. A humanidade é a espécie mais poderosa que surgiu até agora, mas é, por si só, má. Os seres humanos são inigualáveis em sua capacidade de serem maus, porque são inigualáveis em terem consciência do que f azem e em fazerem escolhas deliberadas. O poeta William Blake, considerando as criaturas vivas em termos tradicionais, como obra de um deus criador semelhante - ao homem, aterrorizou-se, com justa causa, com a criação do tigre. O tigre, porém, ao contrário do homem e de um deus criador hipotético, é inocente. Quando um tigre satisfaz sua fome matando e devorando sua vítima, não é atormentado pela consciência. Por outro lado, seria um ato sem propósito, desnecessário e supremamente mau se um deus houvesse criado o tigre para matar o cordeiro, o ser humano para matar o tigre, e o bacilo e o vírus para que mantivessem sua espécie matando seres humanos em massa.
Assim, à primeira vista, a progressão da vida parece má - objetivamente má, mesmo se afastarmos a crença de que esse mal foi deliberadamente criado por um deus que, se realizou sua obra intencionalmente, deve ser pior do que qualquer ser humano jamais teve o poder de ser. No entanto, esse primeiro juízo acerca das consequências da progressão da vida testifica que, além do mal, há, na biosfera, uma consciência moral que condena e abomina o mal.
Essa consciência reside no homem. A revolta da consciência humana contra o mal é prova de que o homem também é capaz de ser bom e sabemos, por experiência, que os seres humanos podem agir e às vezes agem — altruística e desinteressadamente, a ponto de se sacrificarem inteiramente por seus companheiros. Também sabemos que o auto-sacrifício não é uma virtude exclusivamente humana. O motivo clássico de auto-sacrifício é o amor de uma mãe por seus filhos, e as mães humanas não são as únicas a se sacrificarem por esta causa. O amor materno que se auto-sacrifica é encontrado em outras espécies de mamíferos e também entre os pássaros.
Além disso, todas as espécies que se mantêm em existência pela reprodução obtêm de seus espécimes vivos uma cooperação entre representantes dos dois sexos, a qual não representa um benefício direto para os próprios indivíduos, mas sim um serviço que prestam à espécie. Numa visão panorâmica, também podemos verificar que a intenção das várias espécies de vida não toma apenas a forma de competição e conflito. Embora a relação entre o Reino Vegetal e o Reino Animal seja, sob um aspecto, uma relação entre um hospedeiro explorado e um parasita predatório, sob outro aspecto os dois remos agem como parceiros trabalhando pelo interesse comum de manter a biosfera habitável, tanto para as plantas como para os animais. Essa interação cooperativa garante, por exemplo, a distribuição e circulação de oxigênio e dióxido de carbono num movimento rítmico que torna a vida possível.
Dessa forma, a progressão da vida na biosfera parece revelar em si duas tendências antitéticas e contrárias uma à outra. Quando um ser humano estuda a história da biosfera até o ponto atual, verifica que essa história produziu tanto o bem quanto o mal, e tanto a maldade quanto a virtude.
Esses conceitos, naturalmente, são exclusivamente humanos. Somente um ser que possui percepção consciente pode distinguir entre o bem e o mal, e escolher entre agir com maldade ou virtude. Esses conceitos são não-existentes para as criaturas vivas não-humanas, e estas são consideradas boas ou más segundo juízos humanos.
Isso significa que os padrões éticos são impostos arbitrariamente por uma sanção humana e que essa sanção é irrelevante para os fatos da vida e, portanto, utópica? Poderíamos ser levados a essa conclusão se o homem fosse simplesmente um espectador e censor, observando e avaliando a biosfera, de seu exterior. O homem é, com certeza, tanto espectador quanto censor. Esses papéis que desempenha são corolários de sua faculdade de percepção consciente e de seu consequente e inevitável poder e necessidade de fazer escolhas éticas e emitir juízos éticos. A humanidade, porém, também é um ramo da árvore da vida; somos um dos produtos da progressão da vida e isso significa que os padrões e juízos éticos do homem são inerentes à biosfera e, portanto, à realidade total de que faz parte a biosfera. Assim, vida e percepção consciente e o bem e o mal não são menos reais do que a matéria à qual estão misteriosamente associados na biosfera. Se supomos que a matéria seja um constituinte primordial da realidade, não temos razão alguma para supor que essas manifestações não-materiais da realidade não sejam também primordiais.
Todavia, na progressão da vida da biosfera, a percepção consciente surgiu na época, relativamente recente, em que surgiu o homem e, atualmente, tomamos consciência, tardia e abruptamente, de que a presença do homem está apresentando agora uma ameaça à habitabilidade da biosfera para todas as formas de vida, inclusive a própria vida humana. Até agora, competição e conflito, que foram um aspecto da progressão da vida, causaram a extinção de numerosas espécies de seres vivos e também mortes prematuras, violentas e dolorosas a inúmeras espécimes de todas as espécies. A humanidade cobrou uma taxa de sacrifício humano a si própria, além de causar a morte de espécies rivais de predadores e de extinguir uma quantidade de espécies de plantas. Até mesmo os tubarões, bactérias e vírus já não estão à altura de seus adversários humanos. Todavia, até o momento atual, essa destruição de determinadas espécies e de espécimes individuais de certas espécies não pareceu representar, em si, uma ameaça à sobrevivência da própria vida. Até agora, a extinção de algumas espécies de vida deu oportunidade ao florescimento de outras.
O homem tem sido a mais bem sucedida de todas as espécies em dominar os demais constituintes da biosfera, animados e inanimados. No despertar de sua percepção consciente o homem encontrou-se à mercê da natureza não-humana; decidiu-se a fazer de si o senhor da natureza não-humana e avançou progressivamente em direção à consecução desse objetivo. Nos últimos 10.000 anos, desafiou a seleção natural, substituindo-a pela seleção humana na medida de suas possibilidades. Promoveu a sobrevivência de plantas e animais que domesticou para suas próprias necessidades e empreendeu o extermínio de algumas outras espécies que considerou nocivas. Rotulou essas espécies indesejáveis de "ervas daninhas" "vermes" e, ao lhes dar esses rótulos pejorativos, informou que fará todo o possível para exterminá-las. Na medida em que o homem conseguiu substituir a seleção’ natural pela seleção humana, reduziu o número de espécies sobreviventes.
No entanto, durante o primeiro estágio de sua carreira, que até agora foi, indubitavelmente, o estágio mais longo, o homem não deixou na biosfera marca tão profunda quanto a deixada por alguns de seus companheiros vivos de outras espécies. As pirâmides de Gizé e Teotihuacán e as montanhas feitas pelo homem em Cholula e Sakai tornam minúsculos os templos, catedrais e "arranha-céus" de épocas posteriores; contudo, os maiores monumentos feitos pelo homem são insignificantes quando comparados à obra dos minúsculos animais que construíram as ilhas de coral. Por volta do despertar da civilização, há cerca de 5.000 anos, o homem havia tomado consciência da preeminência do poder que adquirira na biosfera; antes do início da Era Cristã ele havia descoberto que a biosfera é um invólucro finito em torno da superfície de uma estrela que é um globo; desde o século XV da era cristã os europeus vêm ocupando e povoando as porções da superfície terrestre da biosfera, antes esparsamente povoadas. Até a geração atual, porém, a humanidade continuou a se comportar, na prática, como se o suprimento dos recursos não-substituíveis da biosfera, como os minerais, fossem inesgotáveis e como se o mar e o ar fossem não-poluíveis.
De fato, até recentemente esses constituintes da biosfera pareciam virtualmente infinitos quando mensurados em termos da capacidade humana de exauri-los ou poluí-los. Em minha infância (nasci em 1889), ainda parecia fantástico imaginar que o homem jamais teria o poder de poluir toda a atmosfera circum-ambiente, embora em Londres, onde cresci, e também em Manchester, St. Louis e num número crescente de outras cidades, naquela época, a fumaça gerada peia queima doméstica e industrial de carvão produzisse névoa que interceptava a luz do sol e sufocava os pulmões humanos dias a fio. Essa ameaça à pureza da atmosfera não era levada em conta, mas considerada nada mais do que um aborrecimento local e ocasional. Quanto à possibilidade de que as atividades humanas pudessem poluir o mar, teria sido considerada uma fantasia ridícula.
A verdade é que, até o terceiro quartel do século XX d.C., a humanidade havia subestimado o seu recente aumento no poder de afetar a biosfera. Esse aumento foi produzido por duas novas perspectivas: primeiro, o empenho deliberado e sistemático na pesquisa científica e a aplicação desta ao avanço da tecnologia; em segundo lugar, o controle, para aplicação a propósitos humanos, da energia física patente ou latente nos constituintes inanimados da biosfera — por exemplo, a energia da água perpetuamente fluindo para baixo, em direção ao nível do mar, depois de haver sido elevada do nível do mar para a atmosfera. Desde o início da Revolução Industrial na Grã-Bretanha, há duzentos anos, essa força hidráulica gravitacional, que anteriormente fora aplicada a pouco mais que moer o grão, foi controlada de modo a fazer funcionar maquinaria para a manufatura de muitos tipos de bens materiais. A força hidráulica também foi elevada a graus mais altos de potência ao ser convertida em força a vapor e energia elétrica. A eletricidade pode ser gerada a partir da força física de quedas d’água naturais ou artificiais, mas a água não pode ser convertida em vapor sem ser aquecida pela combustão de elementos combustíveis, e estes foram usados não apenas para converter força hidráulica em força a vapor e energia elétrica, como também para substituir com vantagem o uso da força hidráulica, mesmo em sua forma mais potente. Além disso, o carvão vegetal, combustível substituível derivado da madeira, foi suplantado por combustíveis não-substituíveis: carvão mineral, petróleo e, finalmente, urânio.
O urânio, o combustível de exploração mais recente, liberta energia atômica mas, ao aventurar a manipulação dessa força titânica, o homem, desde 1945, embarcou na mesma aventura que teve um fim trágico para o semideus mitológico Faetonte, quando roubou a carruagem de seu pai divino, o Sol. Os corcéis da carruagem de Hélio abandonaram o caminho, quando sentiram que as rédeas haviam sido tomadas pelas fracas mãos de um mortal. Abandonaram seu curso normal e a biosfera ter-se-ia transformado em cinzas se Zeus não a houvesse salvo da destruição, matando sumariamente, com um raio, o presunçoso remplaçant mortal do Sol. O mito de Faetonte é uma alegoria do risco a que o homem se expôs ao brincar com a energia atômica. Resta saber se o homem será capaz de utilizar impunemente essa poderosa força material. Seu poder não tem precedentes, mas também não tem precedentes o veneno de sua ação de destruição radiativa. Agora o homem interferiu no processo pelo qual a biosfera — a Mãe-Terra da vida — foi impregnada de radiação solar em termos que dão vida, e não em termos letais. Esse feito portentoso da tecnologia científica humana, conjugada às consequências dos feitos prévios e menores da Revolução Industrial, ameaça agora tornar a biosfera inabitável.
Assim, estamos agora num, ponto decisivo da história da biosfera e da história mais curta de um de seus produtos e habitantes, a humanidade, O homem foi o primeiro dos filhos da Mãe-Terra a subjugar a mãe da vida e a subtrair às mãos do pai da vida, o Sol, a força terrível da energia solar. Agora, o homem deixou essa energia solta na biosfera, nua e crua, pela primeira vez desde que a biosfera se tornou capaz de abrigar a vida. Hoje em dia não sabemos se o homem estará disposto ou será capaz de evitar trazer para si e para os demais seres vivos o destino de Faetonte.
O homem é a primeira espécie de ser vivo em nossa biosfera que adquiriu o poder de destruí-la e, ao assim fazer, de liquidar a si mesmo. Como organismo psicossomático, o ‘homem está sujeito, como todas as outras formas de vida, a uma lei inexorável da natureza, O homem, como os demais seres vivos de outras espécies, é parte integrante da biosfera e. se a biosfera se tornasse inabitável, o homem, bem como todas as outras espécies, seria extinto.
A biosfera tem podido abrigar a vida porque tem sido uma associação auto-reguladora de componentes mutuamente complementares e antes do aparecimento do homem, nenhum componente da biosfera — orgânico, ex-orgânico ou inorgânico — jamais obteve o poder de perturbar o equilíbrio delicadamente ajustado do jogo de forcas por meio das quais a biosfera se tornou um lar hospitaleiro para a vida. As espécies pré-humanas de seres vivos, que eram incapazes ou agressivas demais para se manterem em harmonia com o ritmo da biosfera, foram liquidadas pela ação desse ritmo muito antes de sua incapacidade ou agressividade chegarem perto de ameaçar perturbar o ritmo de que dependia sua vida e a vida de todas as outras espécies. A biosfera era muitíssimo mais potente do que qualquer de seus habitantes pré-humanos.
O homem é o primeiro dos habitantes da biosfera a ser mais potente que ela própria. A aquisição de percepção consciente pelo homem permitiu-lhe fazer escolhas e, portanto, conceber e pôr em prática planos que possam impedir a natureza de liquidá-lo como liquidou outras espécies que se tornaram um estorvo e uma. ameaça à biosfera como um todo. O homem pode conseguir sobreviver até destruir a biosfera se resolver destruí-la mas, se tomar essa decisão, nã3o poderá fugir a seu merecido castigo. Se o homem destruir a biosfera irá exterminar a si mesmo, bem como a todas as outras formas de vida psicossomática sobre a superfície da mãe da vida, a Terra.
A partir deste ponto, portanto, podemos fazer um exame retrospectivo, até o presente, do encontro entre a Mãe-Terra e o Homem, o mais poderoso e enigmático de todos os seus filhos, O enigma reside no fato de que o homem, e só ele, entre os habitantes da biosfera, também é habitante de outro reino — um reino espiritual, não-material e invisível. Na biosfera, o homem é um ser psicossomático, agindo em um mundo material e finito. Neste plano de atividade humana, o objetivo do homem, desde que se tornou consciente, tem sido tornar-se senhor de seu ambiente não-humano e, em nossos dias, tem à vista o sucesso deste esforço — possivelmente para sua própria destruição. Mas a outra morada do homem, o mundo espiritual, também é parte integrante da realidade total; difere da biosfera por ser não-material e infinito; e, em sua vida no mundo espiritual, o homem acha que sua missão é buscar não um domínio material sobre seu ambiente não-humano, mas um domínio espiritual sobre si mesmo.
Esses dois objetivos antitéticos e os dois ideais diferentes que os inspiram foram expostos em textos famosos. A diretiva clássica para o homem tornar-se senhor da biosfera é dada no versículo 28 do primeiro capítulo do Livro do Gênese:
Crescei e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movam sobre a Terra.
Essa diretriz é clara e enfática, mas também o são as rejeições a ela. "Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal" soa como uma resposta direta à diretriz do Livro do Gênese e o Novo Testamento foi precedido pelo Tao tê Ching ao declarar que as realizações tecnológicas e de organização do homem são uma armadilha.
Quanto mais "armas aguçadas" houver,
Mais incivilizada crescerá a terra inteira.
Quanto mais artífices engenhosos houver,
Mais instrumentos perniciosos serão inventados.
Quanto mais leis forem promulgadas,
Mais ladrões e bandidos haverá.’
Entesa um arco ao máximo,
E desejarás ter parado a tempo. (2)
Ele poderia fazer com que, embora houvesse entre o povo instrumentos que exigissem dez, cem vezes menos trabalho, o povo não os usasse. (...) Poderia ainda haver barcos e carruagens, mas ninguém entraria neles; poderia ainda haver armas de guerra, mas ninguém as usaria.(3)
Essas passagens do Tao té Ching têm seu correspondente no Evangelho segundo S. Mateus:
Olhai os lírios do campo como crescem: não trabalham nem fiam. Digo-vos que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles,(4)
Trata-se de rejeições à solicitação para nos dedicarmos a aquisição de poder e riqueza. Abrem caminho ao apelo para que abracemos um ideal oposto.
Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida perdê-la-á, e quem perder a vida por mim e pelo Evangelho, esse a salvará. E que aproveita ao homem ganhar o mundo todo e perder sua alma? Pois que dará o homem em troca de sua a1ma? (5)

Se um ser humano perdesse sua alma, deixaria de ser humano, pois a essência do ser humano é ter consciência de uma presença espiritual por trás dos fenômenos e é como alma, e não como organismo psicossomático, que o ser humano está em comunicação com essa presença espiritual ou mesmo se identifica com ela, na experiência dos místicos.
Vendo corno vive, na biosfera e no mundo espiritual simultanearnentc, o Homem é na verdade um anfíbio, como foi habilmente chamado por Sir Thomas Browne e, cm cada um dos dois elementos em que vive, possui um objetivo. O homem, porém, não pode atingir os dois objetivos inteiramente, ou servir a dois senhores. Um de seus objetivos e um de seus senhores deve ser considerado supremo ou até mesmo receber dedicação exclusiva, caso os dois demonstrem ser incompatíveis e irreconciliáveis. Qual das duas alternativas deve ser escolhida? O debate acerca dessa questão tornou-se explícito na Índia, na geração de Buda, por volta da metade do último milênio a.C. Era explícito no Ocidente, na geração de S. Francisco de Assis, no século X~1II d.C. Em ambas as ocasiões, a escolha de alternativas opostas levou a uma separação entre pai e filho. Provavelmente o problema tem estado implicitamente em discussão desde o despertar da percepção consciente, pois uma das verdades fluas por ela reveladas ao ser humano é a ambivalência moral da natureza humana. Todavia, na maioria das vezes e no maior número de lugares até os dias de hoje, as pessoas têm evitado trazer à baila o problema que levou Buda e 5. Francisco a cortarem os laços naturais que os prendiam às respectivas famílias. Foi somente em nossa própria geração que a escolha tornou-se inevitável para a humanidade como um todo.
Em nossa geração o domínio total que o homem obteve sobre toda a biosfera está ameaçando derrotar as intenções do homem, destruindo a biosfera e exterminando a vida, inclusive a própria vida humana. Desde o século XIII o homem ocidental tem venerado abertamente Francesco Bernardone, o santo que renunciou à herança de um lucrativo negócio de família e foi recompensado com os estigmas de Cristo por haver esposado a Pobreza. O exemplo que o homem ocidental vem realmente seguindo, porém, não é o de S. Francisco; o homem ocidental tem imitado o pai do santo, Pietro Bernardone, o bem sucedido negociante de tecidos por atacado. Desde o início da Revolução Industrial, o Homem Moderno tem-se dedicado, de forma mais obsessiva que qualquer de seus antecessores, à busca do objetivo que lhe foi apresentado no primeiro capítulo do Livro do Gênese.
Parece que o homem não conseguira salvar-se da destruição de seu poder e ganância materiais diabólicos, a menos que passe por uma mudança em seu coração, a qual o leve a abandonar seu objetivo presente, adotando o ideal contrário. Sua situação presente, imposta por ele mesmo, apresentou-lhe um desafio peremptório. Poderá o homem vir a aceitar, como regras práticas necessárias de conduta para pessoas de estatura moral comum, os preceitos pregados e praticados por santos, que até agora têm sido considerados conselhos utópicos de perfeição para l’homme moyen sensuel? O debate sobre este problema — que já vem de longe e parece estar-se aproximando de um clímax em nossos dias é o tema da presente crônica acerca do encontro da Humanidade com a Mãe-Terra.


NOTAS:
1Tao tê Ching, cap. 57, citado na tradução de Arthur Waley, The Way
and its Power (Londres, 1934, Allen and Unwin), p. 211.
2Op. cit., cap. 9, p. 152.
3Op. cit., cap. 80, p. 241.
4Mateus, 6, 28-29.
5Marcos, 8, 34-37. Comp. Mateus, 16, 24-26; Lucas, 9, 23-25.

Toynbee, A (1979) A Humanidade e a Mãe Terra, Uma História Narrativa do Mundo, Segunda Edição, p. 22-40.

• Historiador britânico, cuja obra-prima é Um Estudo de História (A Study of History), em que examina, em doze volumes, o processo de nascimento, crescimento e queda das civilizações sob uma perspectiva global.

Um comentário:

  1. Atentem para este extraordinário ensaio, que tem que ser lido e relido e comentado e divulgado por todos os que pensam e se dispõem a participar da resolução dos problemas que afligem a humanidade.

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