segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011




Os pronunciados olhos do Brasil

***Por Fausto Brignol

Petrolina, no engaste entre dois povos um pouco de saudade, talvez algum resto de mim esteja se esgueirando naquele óleo cru, quantos brasis!...

- Meu povo, quantos sois?
- Os que passam fome ou também os que comem caranguejos, excelência?

Saudade de meus tempos de óleo refinado, quando mais moço e apenas sonhador, pensando revirar mundos, atravessar tantos lugares, tantos brasis!...

- Moça bonita, diga lá, o que foi isso?
- Foi o boto, sim senhor, em forma de moço bem alimentado, e naquele dia eu não tinha o que comer.

O meu sangue sempre foi escuro assim, mesmo nas romarias, Bom Jesus, todo o nordeste, quando eu era pau-brasil pirateado por naus que nunca dantes tinha visto, nem as estrelas me albergaram na visão crente do poeta... Meus joelhos, pura fé na procissão quando canto para pedir água e apenas jorra o óleo, que dizem bento, e a dor a latejar, que dizem pura.

Padre Cícero já sabia da amargura necessária à nudez do meu crescimento, mesmo franzino e pouco acelerado. Já era beato o Brasil da cana de açúcar quando virei bagaço e me jogaram no chão para purificar a terra e me transformar em óleo mestiço – tantos navios a desejar meu sangue!...

- Meu povo, quantos sois?
- Os vivos ou também os que cortam cana, sinhá?

Quando o meu sangue caiu no chão e se transformou naquele óleo bruto como as cantigas de senzala e eu senti que a vida podia ser melhor, mas não sabia como e viajei tanto que não tinha mais suor para regar o chão comparsa de meus pés e vi uma baía esquizofrênica, entre tantas baías que inundavam a minha imaginação, como se eu estivesse tendo uma visão de fome como acontece quando se viaja ou como se pairasse ou finalmente voasse em direção aos meus sonhos mais perdidos, lá embaixo, onde sabia que seria devorado novamente, como predestinação ou cegueira deste país que já não me engana – ah!, Rio de Janeiro de corcovados ambientais – onde sou sugado por gruas estéreis e assassinado nas esquinas de tua vasta babilônia, como pensei no teu nome como salvífico licor, ressurreição de todas as almas perdidas... Mas eras apenas um nome.

- Moça bonita, diga lá, o que foi isso?
- Nasceu morto, meu senhor, a vida é assim.

- Meu povo, quantos sois?
- Os que nasceram mortos também, madame?

Renasço em semente, mas que semente eu sou? Uma semente oleosa, uma semente pérfida, uma semente que não dará sementes. Não sabia que a minha reencarnação seria tão híbrida, que não teria genes para deixar como pequena herança que fosse, somente lembrança dos momentos de fome dos deserdados neste sul tão imenso onde o latifúndio perde-se em campinas estéreis, em terra morta onde o gado come o seu capim importado, que chamam de ração. Meridionais brasis perdidos entre pedras, barrancos e água verde de barragens secas, com poucos donos no meio da multidão de escravos passivos, domados, garroteados!... Como eu te queria mais verde e mais sincero! Também a mim tentaste convencer, mas eu não aceito mais os teus falsos ardores guerreiros, a propaganda enganosa de tuas festas de bombachas e cavalos de olhos esponjosos como o óleo que sou, entranhado em planta estéril.

- Meu povo, quantos sois?
- Somente os estancieiros ou também os que comem transgênicos?

Espreito as árvores que caem ininterruptamente e alimento-me da seiva antes que morra e deixe o chão murcho e órfão de vida. Sou o óleo cru, escondido muito abaixo do sal da terra, esperando o meu destino de barril e solidão esquecida. Sobre mim passam tratores e motosserras, sinto o gemer das raízes arrancadas, da madeira torturada, do devastar constante, febril, da mata que já foi virgem e agora se tornou a forçada prostituta dos que tem olhos de sangue e podridão. Ah, meus brasis de sanguessugas, meus brasis de pau-de-arara! Quantas prisões maníacas em teus porões sangrentos!

- Moça bonita, diga lá, o que é isso?
- Virei muié-dama, meu senhor, por favor, não me renegue, é tanta a necessidade...

- Meu povo, quantos sois?
- Os empresários ou também as prostitutas, dona?

Sinto o peso da última onça pisar no charco onde me escondo, fugitivo da minha cor de óleo velho, me entranhando no barro onde tentarei demorar no suspiro da terra a relembrar façanhas que nunca aconteceram – tantos brasis se perderam a ressecar nos carnavais das eternas quartas-feiras de tantas cinzas!... E eu acreditando... A última onça perdida a buscar o verde, sem horizontes que não seja água para seus olhos esquecidos, apenas a lembrança da vida a perdurar por um instante tímido, e o cantar dos pássaros cada vez mais quieto sobre o súbito mar insano que submete a floresta a seus desejos carnívoros de energia – ah, meu Brasil!, porque ficaste tão cego?

- Meu povo, quantos sois?
- Só os engenheiros ou também o povo deserdado, mãinha?

- Moça bonita, diga lá, o que é isso?
- É a cegueira da fome, sim senhor.

“Lá detrás daquele morro/Passa boi/Passa boiada/Só não passa a minha amada...”* Só não passa a minha amada? O que é isso “seu foguista/Seu sacana maquinista?”** Piuíííí! O trilho acabou! Cadê o Brasil? Quando, em minhas lendas de caboclo, tocava o violão enquanto a fonte cantava – chuá!-chuá! – e eu me deliciava com teus olhos que sorriam... Mas agora sou caubói, vou matar boi, ouvir música cauntri, serenar a serenata do meu peito, o tico-tico que sem fubá ficou e eu aqui, de bobo, a brincar de gente, quando me querem apenas biodiesel, produto a ser exportado, grito mudo no meio da torcida, voto na urna sem-vergonha, olhos vidrados na televisão e sorriso de pateta na cara, número em pesquisa quando me caçam nas favelas porque queria ficar rico como eles, mas é proibido! É proibido brincar de pátria mãe gentil quando as câmeras olham para mim em todas as cidades loucas, e eu brasileiro?

- Meu povo, quantos sois?
- Os políticos ou também os sobreviventes, dona?

- Meu rapaz, me responde: o que é que há?
- É uma dor tão lá dentro que me deixa consumido, como se fosse uma fome que só quer me devorar.

- Meu povo, quantos sois? Quantos sois, meu povo? Quantos sois?
- Também os que choram de tristeza, senhora?

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* Cancioneiro popular.
** Versos de Manuel Bandeira.

*** Poeta, jornalista e escritor

Um comentário:

  1. Somos tantos...mas uma referência
    nos reduz a únicos...a necessidade.
    Abraços

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