O desejo tatuou-lhe fundo o coração
* Por Eduardo Murta
Era o acaso, até a linha dos 20 anos, que daria ritmo e sentido à vida de Daniel. Nascera com sobrenome abençoado – dos Santos. E crendo em sinceras salvaguardas, deixava que todos os terremotos lhe varressem e desnudassem a alma. Do enclave existencial ao final da década de 1960 às viagens lisérgicas para o Nepal, dezembros à frente. Nada mudaria esse curso de aventuras, estava seguro. Até um setembro europeu derreter-lhe por inteiro essas convicções.
Notem, nas ruelas de Amsterdã, é ele, adolescência trôpega, camisa amarela-escândalo, cabelos à cintura. Cigarro de maconha colado aos dedos. Garrafa de vodka a tiracolo. Vai parar à esquina e, sem que peça a estranha, lhe estenderá a mão, imperativo: “Leia”. Logo ele, que desdenhava margens de rios, bulas de remédio, livros de história e futurologias. Veio lá o diagnóstico: a mulher amada, por tanto querer, haverá de arrancar-lhe o coração.
Deu dois passos para trás, sem desgrudar os olhos da cigana. E, à hipnose da pinta, dos pêlos que dela derivavam, dos dentes de ouro, apagou. Era noite, quando se pôs de pé, canto da rua, mijado, sem saber se houvera alucinado ou se de fato entregara-se à vidente. Verdade é que, mistério, saiu dali fixado em mulheres cuja maçã do rosto literalmente lembrasse a fruta – a pele entre o rosa e o vermelho – e trouxessem o queixo em desenho quadrado.
Não havia noite em que Daniel adernasse ao travesseiro sem embalar sonhos à sombra daquela previsão. E, convertido em exímio tatuador, duas décadas e meia depois já tinha inscrito nomes de A a Z corpo afora. Pensando sempre se tratar da prometida. De roqueiras a dançarinas de salão, de madames, carolas, a ex-presidiárias.
E, tanto desacerto, em lugar de angustiar-se com a incerteza, preferia alimentar-se do desafio da busca. Feito se alimentasse de manuais de autoajuda. Como se deliciara com aquilo. Madrugadas de amor em fusquinhas, cabanas de camping, suítes majestosas em cobertura de Zona Sul. Mas nenhuma, rigorosamente nenhuma, capital a ponto de ele se convencer de que finalmente dera com “ela”.
Ah, e como tivera paciência. Um quase anarquista, se vendo em namoros de sofá, filmes açucarados, festinhas em família. Até curso de noivo!!! E nada dela!!! Abrira daí desconfiança às leis da física, do taoísmo e de tudo o mais a que se apegara garimpando uma tradução para aquele torpor sentimental. Se imaginava desejável, tampouco fosse estampa de modelo. Exalava charme e autoconfiança. E sabia que mulheres amavam também isso.
Passagem fortuita pelos cafés da Sabará colonial, foi a casualidade que o aproximou da leitora compenetrada. Mirava suas feições, ela lendo Borges, e um tremor de terra foi assomando-lhe aos pés. Exatamente como descrevera, se lembrava, como descrevera a cigana!!. Pronto se apresentou, sem cerimônias: “Sou Daniel, o homem de sua vida”. Ela, Ana Clara, maçã do rosto rosada, queixo quadrado, enxergando insanidade naquilo.
Viu também uma pitada de ternura. E deixou que prosseguisse. Confiou. Gostou. Meses à frente se derretiam em paixão. Ela topou caminhadas pela serra, acampamentos à beira de lagos. Permitiu-se tatuagens, até. Mas retrocedeu à descida cega pelas corredeiras noturnas do Rio do Peixe, à escalada pelas paredes do Aconcágua, à sugestão de sexo grupal e aos coquetéis de alucinógenos. Ana vislumbrou fim de linha e partiu.
Daniel inconformado. Mandou flores. Bilhetes. Carros de som. Implorou via internet. Virou ícone no youtube. E nada. Daí barbarizou. Fez pacto sabe-se lá com o quê. Encontraram o corpo numa caixa de presentes gigante, à porta dela. Cercado por poemas de Borges. A cavidade do coração aberta. E nele tatuado, num azul quase bordado: Teu para sempre.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
Era o acaso, até a linha dos 20 anos, que daria ritmo e sentido à vida de Daniel. Nascera com sobrenome abençoado – dos Santos. E crendo em sinceras salvaguardas, deixava que todos os terremotos lhe varressem e desnudassem a alma. Do enclave existencial ao final da década de 1960 às viagens lisérgicas para o Nepal, dezembros à frente. Nada mudaria esse curso de aventuras, estava seguro. Até um setembro europeu derreter-lhe por inteiro essas convicções.
Notem, nas ruelas de Amsterdã, é ele, adolescência trôpega, camisa amarela-escândalo, cabelos à cintura. Cigarro de maconha colado aos dedos. Garrafa de vodka a tiracolo. Vai parar à esquina e, sem que peça a estranha, lhe estenderá a mão, imperativo: “Leia”. Logo ele, que desdenhava margens de rios, bulas de remédio, livros de história e futurologias. Veio lá o diagnóstico: a mulher amada, por tanto querer, haverá de arrancar-lhe o coração.
Deu dois passos para trás, sem desgrudar os olhos da cigana. E, à hipnose da pinta, dos pêlos que dela derivavam, dos dentes de ouro, apagou. Era noite, quando se pôs de pé, canto da rua, mijado, sem saber se houvera alucinado ou se de fato entregara-se à vidente. Verdade é que, mistério, saiu dali fixado em mulheres cuja maçã do rosto literalmente lembrasse a fruta – a pele entre o rosa e o vermelho – e trouxessem o queixo em desenho quadrado.
Não havia noite em que Daniel adernasse ao travesseiro sem embalar sonhos à sombra daquela previsão. E, convertido em exímio tatuador, duas décadas e meia depois já tinha inscrito nomes de A a Z corpo afora. Pensando sempre se tratar da prometida. De roqueiras a dançarinas de salão, de madames, carolas, a ex-presidiárias.
E, tanto desacerto, em lugar de angustiar-se com a incerteza, preferia alimentar-se do desafio da busca. Feito se alimentasse de manuais de autoajuda. Como se deliciara com aquilo. Madrugadas de amor em fusquinhas, cabanas de camping, suítes majestosas em cobertura de Zona Sul. Mas nenhuma, rigorosamente nenhuma, capital a ponto de ele se convencer de que finalmente dera com “ela”.
Ah, e como tivera paciência. Um quase anarquista, se vendo em namoros de sofá, filmes açucarados, festinhas em família. Até curso de noivo!!! E nada dela!!! Abrira daí desconfiança às leis da física, do taoísmo e de tudo o mais a que se apegara garimpando uma tradução para aquele torpor sentimental. Se imaginava desejável, tampouco fosse estampa de modelo. Exalava charme e autoconfiança. E sabia que mulheres amavam também isso.
Passagem fortuita pelos cafés da Sabará colonial, foi a casualidade que o aproximou da leitora compenetrada. Mirava suas feições, ela lendo Borges, e um tremor de terra foi assomando-lhe aos pés. Exatamente como descrevera, se lembrava, como descrevera a cigana!!. Pronto se apresentou, sem cerimônias: “Sou Daniel, o homem de sua vida”. Ela, Ana Clara, maçã do rosto rosada, queixo quadrado, enxergando insanidade naquilo.
Viu também uma pitada de ternura. E deixou que prosseguisse. Confiou. Gostou. Meses à frente se derretiam em paixão. Ela topou caminhadas pela serra, acampamentos à beira de lagos. Permitiu-se tatuagens, até. Mas retrocedeu à descida cega pelas corredeiras noturnas do Rio do Peixe, à escalada pelas paredes do Aconcágua, à sugestão de sexo grupal e aos coquetéis de alucinógenos. Ana vislumbrou fim de linha e partiu.
Daniel inconformado. Mandou flores. Bilhetes. Carros de som. Implorou via internet. Virou ícone no youtube. E nada. Daí barbarizou. Fez pacto sabe-se lá com o quê. Encontraram o corpo numa caixa de presentes gigante, à porta dela. Cercado por poemas de Borges. A cavidade do coração aberta. E nele tatuado, num azul quase bordado: Teu para sempre.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
A paixão se sobrepõe à tragédia, só enxergo
ResponderExcluirbeleza nesse texto.
Parabéns Murta.
Abraços
Quem terá feito isso?
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