segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011




Eu não existo, mas me lembrei de você

* Por Eduardo Murta

Foi no estertor despretensioso do noticiário que Pompílio deu com a mais singular idéia, desde que o fenômeno da Internet fizera divisor de água na vida de tanta gente a um só tempo. O aspecto singular, e quase ingênuo, o comovia naquilo. Do outro lado do mundo, ouvira, um homem iria montar plantão e abrir fila a que as pessoas, uma a uma, viessem e lhe contassem uma história.
Numa era em que a palavra ganhara contornos cada vez mais virtuais, das frases com calor e das entonações carregadas de sentimento Pompílio nutria saudade essencial. Daí enxergar-se por inteiro nessa empreitada. E encher-se do desejo de repetir nessas terras as cenas que descreviam do estrangeiro: homens, mulheres e meninos prontos para encarnar seu dia de livro vivo.
Fez, então, exatamente como lá. Espalhou panfletinhos pelo lugarejo e armou sua barraca na praça. Levou junto três vasilhas de biscoito, o gato Veludo e duas cadeiras de balanço. Logo formou-se fila longa, dobrando quarteirão. Importava pouco se o que movia o povaréu era a promessa de uma nota de 10 ou a pura inspiração.
Vieram doninhas com recordações do Império, pescadores com mentiras de assombrar Pinóquio, meninas que sonhavam com príncipes encantados, meninos com DNA de super-herói. Outros nem tanto. Foi um destes quem transformou o dia de Pompílio. Retesou-lhe o espírito, fartou-lhe em sensações já na primeira frase. Beirava os 9 anos, levava serenidade de 60.
Se sentou, estalou os dedinhos, sorriu breve. Surpreendentemente circunspecto, pediu ao homem que fechasse os olhos, a melhor ouvi-lo. E revelou, aura de mistério: “Eu não existo, mas me lembrei de você”. As órbitas de Pompílio imprimindo um tremor de embriagada expectativa. O caudal de ansiedade arrastando-lhe como para um sonho, em que os avós, que conhecera só por fotos, festejavam sua chegada à chácara da família.
Ele gargalhando, num tom que lembrava crianças desembrulhando presentes de Natal. E não era coisa menor essa benção de estar diante dos quatro velhinhos. Ganharia doce de cristaleira, passeio a cavalo, biscoito de forno de barro e molharia os pés nas nascentes do lugar. Suprema glória.
Mas viria o melhor: banho morno em banheira, as costas massageadas, pijama, e o acalanto de dormir ouvindo avôs e avós contando-lhe histórias de tempos outros. Como se, no próprio sonho, adormecesse. Ele deixou-se embalar naquele sentimento cristalino, restaurador, até o burburinho trazer-lhe de volta.
Relampejou os olhos e, pronto, estava diante do menino que lhe dera as mãos naquela santa imersão. Trocaram sorrisos de cumplicidade. E o visitante completou o arco de revelações: “Nenhum deles esteve com você, mas todos te amaram como uma grata história a ser contada”. As miradas lhe marejaram, e Pompílio, ar de leveza, pleno, puxou do criadinho uma nota de 100. Estendeu, e deu com o vazio da cadeira, ela num balanço fantasma, brando, jeito de vento bom. E inundando-lhe para sempre aquele sentimento de ternura antiga. Destas que não envelhecem a nenhum tempo.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

Um comentário:

  1. Um encontro fantasma com ele mesmo, numa espécie de túnel, num similar ao " De volta ao futuro", ao contrário. Muito bonito dormir no sonho e encontrar com o amor dos quatro avós que ele não conheceu. Coisa melhor não há.

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