sábado, 19 de fevereiro de 2011




A palavra mais bela
De Salamanca, Espanha

* Por Pablo Uchoa

“O tempo fora de hora
não é tempo nem nada
O amor fora de hora
é como rolar a escada”
(Drummond)


Um rio corre, como diria Borges, na palavra Nilo. Assim sendo, perderíamos a capacidade de amar se não houvesse a palavra amor a dar existência aos nossos amores passados, presentes e futuros?

Foi a visão infernal de um mundo sem amor, ou a visão infernal deste mesmíssimo mundo tal como é (depende do otimismo ou pessimismo de cada um) que levou os espanhóis a elegerem amor a palavra a mais bonita do idioma castelhano. Ou pelo menos os cinqüenta mil que participaram de uma eleição on-line promovida pela Escola de Escritores de Madri em homenagem ao Dia do Livro, em 23 de abril.

Os espanhóis se deixaram seduzir antes pelo sentido que pela fonética das palavras. Estivessem os atentados da estação Atocha menos quentes na memória dos espanhóis, teria a lista das mais belas palavras castelhanas prosseguido com libertad, paz e vida, que antes que a estética evocam o desejo do bem-estar?

Nessas coisas, cada qual tem lá sua maneira de se expressar. Dias antes da eleição, um escritor revelava sua predileção por incertitumbre, este sim um vocábulo relevantemente sonoro, sombrio como as incertezas, retumbante a projetar-se sobre o que nelas está imerso.

Menos pomposo, o padeiro grego que me vendeu o jornal me confidenciou: ainda visitava o México só para poder dizer, estive em Guadalajara. E repetia, encantado, Guadalajara, Guadalajara, enquanto passeava seus olhos por algum arco-íris invisível no azul do céu.

No português, é moda considerar saudade a palavra mais bonita do idioma. Talvez porque seja intraduzível, como também dizem por aí. Saudades do Brasil, assim Lévy-Strauss batizou o livro de memórias que escreveu ao voltar da terra brasilis para sua França natal, resumindo em poucas e intraduzíveis palavras o não ter mais a Baía de Guanabara ao alcance da vista.

Mas confesso que a mim a palavra saudade não toca tanto quanto deve a um português, cuja alma está indelevelmente marcada pela saudade que carregava caravelas. Saudade impressa nos fados e nos prédios decadentes de Coimbra, que fez rolar lágrimas salgadas que encheram o mar de Portugal.

Eu, brasileiro, prefiro a palavra lembrança, mais simples. Ou vento, mais fluida. Mais límpidas.

Uma francesa certa vez me disse que adorava do português a palavra janela – especialmente se pronunciada com todas as vogais abertas, incorretamente diga-se de passagem, à paulistana. Janela, janela, ela repetia e desenhava no ar como aquele personagem de Lygia Fagundes Telles que riscava no nada os contornos de uma bolha de sabão, referindo-se à estrutura da bolha, a estrutura. Da bolha, entende?

Entendo, cherrie, janela, janela, assim aberta para o horizonte ensolarado, diferentemente do francês fenêtre, que com seus e’s fechados nos extremos e a vogal rasgada no meio lembra mais uma prisão.

Quem vai separar, lá no inconsciente, a fonética de uma palavra de seu significado? Há uma década, a vencedora de outro concurso aqui na Espanha havia sido a palavra cristal. Talvez porque estes sejam concursos de beleza, por assim dizer, e um cristal seja mesmo bonito em sua leveza e translucidez; não necessariamente saboroso como uma abacatada ou sonoro como um ziguezague, mas vá lá, melhor um cristal (de lapislázuli?) que um abacate a enfeitar o colo delicado de uma bela senhorita.

Se pronunciar, ou ler, uma palavra é formar dela uma imagem mental, naturalmente preferimos as boas às desagradáveis. E pronto, querendo ou não, num passo estamos aí a enveredar pelas questões sentimentais e amorosas, veredas que nos seduzem.

Aposto que esta é a razão que explica a presença da palavra azahar na lista da Escola de Escritores, à frente de outras como madre, mamá, esperanza e amistad, aparentemente de maior força conceitual. Aparentemente, apenas. Quem vai dizer que amores e desamores azahar, ou flor de laranjeira, suscita por aí? Mesmo eu, quando passeio por estes laranjais – os do campo ou os que enfeitam as ruelas de cidades preciosas da Andaluzia – não posso deixar de pensar na minha própria meninice. Quando não havia laranjais, mas goiabeiras e pés de sirigüela, devidamente adaptados à paisagem tropical do litoral nordestino. Árvores frondosas que testemunharam descobertas umas mais bobinhas e outras nem tanto, esconderam e revelaram minha puerícia.

Um mundo inteiro que se apresentava a mim e ao qual, num misto de temor e curiosidade, eu dizia, sim, sim, sim. Esta, aliás, outra das palavras mais belas de qualquer idioma. O sim. Pelo qual todos suspiramos na vida, como resumiu um poeta, e em todas as fases dela, eu acrescentaria. No amor, nos sonhos e até na hora da morte.

Pois, de certa maneira, a vida são sins e nãos, e os primeiros nos apetecem mais. Como os amores, os brutos, risíveis ou sublimes. Precários ou estáveis, se é que isso existe, mas ainda amores, sim amores, e como diz a canção de Chico Buarque, sim bons amores, mesmo sendo errados os amantes, mesmo sendo falsos os romances.

*Jornalista, graduado pela USP em 2000. Trabalhou, por cinco anos, na TV Globo, como produtor e editor da Globonews e do núcleo de reportagens especiais do Jornal Nacional. Autor do livro-reportagem “Venezuela: a encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003). Mora na Inglaterra e é pesquisador do Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres.

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