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Reflexões sobre jornalismo
* Por Tomáz Eloy Martinez
Há três décadas, no apogeu da investigação do “The Washington Post” sobre o caso Watergate, o que já se conhecia, então, como novo jornalismo alcançou seu ponto de máxima influência e credibilidade. Pode-se discordar do que Carl Bernstein e Bob Woodward, autores daqueles memoráveis relatos, impecavelmente investigados, fizeram depois, mas não com a decência, a tenacidade, a eficácia na informação e a qualidade na narração que o Post mostrou, ao juntar os fios daquela história.
Desde então, o jornalismo narrativo tropeçou e caiu mais de uma vez, nos Estados Unidos e em outras latitudes, acaso por haver esquecido que narração e investigação formam uma só coisa, uma aliança indestrutível, de aço. Não há narração, por mais admirável que seja, que se sustente sem as vértebras de uma investigação cuidadosa e certeira, assim como, tampouco, há investigação válida, por mais assombrosa que pareça, se vier a se perder nos labirintos de uma linguagem insuficiente ou se não se souber prender a atenção dos que a lerem, ouvirem ou verem. Sós, uma e outra são substâncias de gelo. Para que haja combustão, precisam caminhar de mãos dadas.
Os problemas que afetam a qualidade do jornalismo, seja ou não narrativo, são mais ou menos os mesmos, tanto neste continente como do outro lado do Atlântico. Descobrir porque sucederam e podem seguir desencadeando-se é o tema da minha reflexão desta tarde. Mal poderei expor de onde viemos se não reconhecer, primeiro, o caminho para onde vamos.
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Veja-se o que ocorreu com a história de Watergate, em que dois jornalistas jovens, em poucos meses, conquistaram notoriedade mundial ao desatarem alguns nós de corrupção e abuso do poder. Tudo começou por algo que na aparência era insignificante: um roubo nos escritórios do partido político de oposição. E terminou com um fato notável: a renúncia forçada do presidente dos Estados Unidos. O ponto de partida era ínfimo, o resultado, em troca, foi espetacular.
Uma leitura superficial desse fenômeno fez com que muitos chegassem a conclusões também superficiais. Se um incidente pequeno podia, por obra e graça dos meios de comunicação, transfigurar-se numa história maior, então – pensaram alguns – havia que sair em busca do escândalo. O jornalismo narrativo parecia perfeito para alcançar esse fim. Os dramas bem contados podiam comover e hipnotizar milhões. Quanto à investigação, se chegou a pensar que era legítimo se tecer fraudes aqui e ali, corrigir sutilmente a direção de certos fatos, aumentar outros, inventar testemunhas, multiplicar as gargantas profundas. Assim, foi convertendo-se em mercadoria o que é, essencialmente, um serviço à comunidade. Confundiu-se os leitores, espectadores e ouvintes com uma multidão de alfabetos e mídias, cuja inteligência equivalia à de uma criança. Nesse jogo, o jornalismo perdeu muito de sua credibilidade e quase toda sua respeitabilidade.
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Círculo atroz
Dei-me conta, pela primeira vez, de que algo grave estava ocorrendo quando, no festival de cinema de Cartagena de Índias de 1997, um jornalista novato, empunhando um microfone como se fosse uma Beretta de James Bond, se aproximou de Gabriel Garcia Márquez e lhe perguntou se era verdade que iriam filmar, em Hollywood, seu último livro. “Qual livro?”, perguntou Garcia Márquez, com genuína curiosidade. “O último”, disse o jovem. “E qual é o último?”, insistiu o autor, que meses antes havia publicado “Notícias de um seqüestro”, à espera do pior. “Pois qual há dei ser? É esse que chamam ‘Cem anos de Solidão’”, explicou o homem, com uma empáfia que nunca vi em Norman Mailer nem em Tom Wolfe. Não soube mais do interrogador, que foi enviado, naquela mesma noite, de volta à escola. Mas todos os dias vejo muitos que se parecem com ele nas telas de televisão do meu país, Argentina, ou nas rádios que sintonizo quando dou voltas pela América Latina.
Costuma-se evocar com melancolia e com a admiração que se sente pelo que não se tem, aquele jornalismo revolucionário dos tempos em que tudo começou, até fins dos anos cinqüenta. Creio, decididamente, que esse jornalismo não era tão bom como o que se poderia fazer agora, porque há mais talentos do que então e, os que há, estão intelectualmente melhor preparados. O que ocorre é que caímos, todos de uma vez, nos equívocos da festa neoliberal. E não só vão caindo os poucos lugares onde se poderia publicar o que se quisesse escrever, mas, por seu turno (e uns acompanham os outros) há cada vez menos empresários dispostos a arriscar a estabilidade de seus bolsos e a de suas relações criando meios em que a qualidade da narração esteja de mãos dadas com a riqueza e a sinceridade da informação.
Informar bem custa muito dinheiro, porque requer investir um tempo para isso e às vezes não basta uma só pessoa. E informar com honestidade conflita, com freqüência, com interesses a que se preferiria fazer vistas grossas.
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Diferente do que acontecia há um século, o jornalismo é uma árvore com mais ramos do que se vêem. Há oito décadas nasceu, incipiente, o jornalismo das rádios; há meio século, o da televisão e há pouco mais de uma década o jornalismo de internet. Quase durante o mesmo tempo se prognosticou a decadência e queda do jornalismo impresso, que foi assumindo formas inesperadas, como para desmentir as previsões fúnebres das pesquisas. Na reunião promovida pela Associação Mundial de Jornais em Seul, em fins de maio passado – em que a preocupação central foi a proliferação de blogs como exercícios descontrolados de jornalismo – examinou-se uma predição sobre a morte dos meios massivos publicados pela “The Wilsonian Quaterly”, uma revista da Universidade de Princeton. Ali se sustentava que, dado o acelerado avanço de revolução tecnológica, o jornalismo tradicional sucumbiria no ano de 2040. Com arrogância, o presidente do “The New York Times”, Arthur Sulzberger, respondeu: “Já que tratamos de ser precisos, por que não o somos com toda a precisão que o jornalismo nos permite? Por que dizer que morreremos em 2040? Digamos, mais exatamente, que morreremos em 16 de abril de 2040 e que isso acontecerá às seis horas da tarde. Não lhes parece assim?”
O que está adoecendo o jornalismo é uma peste chamada narcisismo. Lamento coincidir nesse ponto com o australiano Rupert Murdoch, que tantos males causou comprando veículos de comunicação só para degradá-los e vendê-los depois, mas o narcisismo – do qual o próprio Murdoch é um bom exemplo – se manifesta agora quase a cada passo. Uma imensa parte das notícias exibidas na televisão está concebida, só, como entretenimento ou, no melhor dos casos, como diálogos em que as perguntas não se sustentam em informações. E entre as rádios e os jornais se criou um atroz círculo vicioso, que começa – ou termina, já que se trata de um círculo – com entrevistas que as rádios fazem com personagens destacados pelos jornais, para que estes publiquem, por seu turno, as reações desses personagens, e assim até o infinito.
Influência dos jornais
A febre exibicionista criou escândalos como o de Janet Cooke, a jornalista que ganhou um Pulitzer em 1981 por uma série publicada no mesmo “Washington Post” do caso Watergate por contar a história de um menino de oito anos que se injetava heroína com o consentimento da mãe. A história era falsa e Janet Cooke teve que devolver o prêmio, mas já havia cometido um grave delito de contá-la muito bem, com o que semeou a semente de uma praga que deu muitos frutos desde então. Em 1998, o semanário “The New Republic” demitiu Stephen Glass, seu editor principal, porque descobriu que ele inventou dados, citações e pessoas em 27 dos seus 40 últimos artigos. O mais famoso e letal de todos foi o fruto que nos foi dado a comer por Jayson Blair, repórter estrela do “The New York Times”, que entre os anos de 2002 e 2003, pesquisou, por todos os Estados Unidos, uma dúzia de notícias apaixonantes, sem sequer sair da redação, plagiando o trabalho de outros, ou requentando os ocos informativos que recebia com delírios de própria invenção. No afã de glória fácil, Blair cometeu o pecado da mentira, que é o pecado capital de todo bom jornalista. E com a arte da sua indolência, derrubou, de um só sopro, o prestígio de todos editores do seu jornal.
O jornalismo narrativo parece, a muitos, o atalho mais fácil e produtivo para a fama. Quem sabe quantos Jayson Blair deste mundo caem na tentação de fazê-lo como forma, mal ou pior, de progredir rápido na profissão. Mas também se deve alertar que esses orgulhos individuais prosperam porque costumam ser alimentados pela cobiça dos editores, que os estimulam, para aumentar as cifras de vendas, ou os índices de audiência, ou os favores do mercado.
Às vezes os editores não caem por cobiça, mas – embora soe estranho – por ingenuidade. Chega-lhes às mãos uma pequena história, aparentemente bem contada, mas cheia de tiques que são imitação de cronistas com uma linguagem própria, e a publicam para cumprir a quota obrigatória de narração, sem verificar se essa história reflete uma tragédia maior ou se se reduz, simplesmente, a uma anedota que aspira a ser pitoresca. Isso também afasta os leitores, porque, no fundo, é entretenimento trivial, medalha para saciar o narcisismo de alguém que soltou, nesse relato, suas gotinhas de talento imaginário, sem averiguar em que contexto social ocorrem as coisas, ou se o que está narrando acontece, por sua vez, em muitas outras partes. As cinco ou seis indagações do jornalismo convencional já não têm que ir no primeiro parágrafo, mas têm que aparecer em alguma parte, porque são a coluna vertebral de todo bom texto: onde, quando, como, para quê, por que e quem. Há jornalistas brilhantes nos quais ninguém encontrou mancha alguma. Para mim, um modelo a imitar é Seymour Hersh, redator do semanário “The New Yorker”, que foi o primeiro a desmascarar as atrocidades do exército norte-americano no Vietnã, ao contar as matanças dos camponeses de My Lai e o primeiro, também, a lançar luz nos abusos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque. Seymour Hersh saiu por cima de todas as tentativas para desprestigiá-lo, e mostrou, nos dois casos, que o melhor jornalismo narrativo se fundamenta na investigação. Esse sinal de eficácia superlativa só é possível quando os textos são trabalhados com tempo e com recursos. Com essa filosofia, estão crescendo em influência jornais como “The New York Times”, “Los Angeles Times”, “El País”, de Madri; “The Washington Post” e o “Guardian”, de Londres, que publicam, pelo menos, de sete a doze grandes relatos todos os dias e entre eles, não se contam as reportagens de Esportes, onde quase tudo é narrado.
Medalhões literários
Os jornais diários da América Latina são, em sua maioria, reticentes quanto a este caminho maiúsculo. Conheço empresários que se empenham em competir com a televisão e a internet, o que me parece suicida, publicando pílulas de informações já digeridas ou abusando de infografias para explicar qualquer coisa, como se tivessem pavor que os leitores leiam. Esse esquema não tem sucesso nem mesmo nos jornais gratuitos, que são o grande êxito comercial da última década. O “Metro Internacional”, como se sabe, lança 56 edições, em 16 línguas e é distribuído em 17 países e 78 cidades, com uma distribuição total, diária, de 15 milhões de exemplares, mas fracassou em Buenos Aires porque tudo o que dizia já estava, um dia antes, na televisão. A experiência funciona bem onde há mais narrações, como ocorre nos “Metros” de Londres e de Frankfurt.
A necessidade de cortejar os poderosos de plantão, para assegurar a publicidade oficial, converteu muitos jornais, que chegaram a nos despertar esperanças de mudança, em meros reprodutores do que dizem os releases dos governos ou do que ordenam as empresas de propaganda. Criar uma agenda própria é outra das obrigações fundamentais do jornalismo como ato de serviço à comunidade, mas até “The New York Times” se esqueceu dessa lição elementar, quando começaram os abusos da cruzada contra o terrorismo, e as histórias de mortos no Iraque ou de torturas em Abu Ghraib e em Guantanamo, que foram “lavadas por muitas águas” antes de saltar das notas de rodapé da décima página para as crônicas bem-informadas da capa.
Gostaria de concentrar-me agora no jornalismo escrito, porque foi ali que nasceu um ofício que, apesar de tantas lutas, ainda está impregnado de paixão e de nobreza. Um jornalista que confia na inteligência de seu leitor jamais se exibe. Estabelece, com ele, desde o princípio, o que chamaria de “um pacto de fidelidade”: fidelidade à própria consciência e fidelidade à verdade. Alguma vez eu disse que a avidez de conhecimento do leitor não se sacia com o escândalo, mas com a investigação honesta; não é aplacada a golpes de efeito, mas com a narração de cada fato dentro do seu contexto e de seus antecedentes. Não se distrai o leitor com fogos de artifício ou com denúncias estrepitosas que se dissipam no dia seguinte, mas tem que ser respeitado com a informação precisa. O jornalismo não é um circo para exibir-se, nem um tribunal para julgar, nem uma assessoria para governantes incompetentes ou vacilantes, mas um instrumento de informação, uma ferramenta para pensar, criar e ajudar o homem em seu eterno combate por uma vida mais digna e menos injusta.
Até começos dos anos 90, quando meu país, a Argentina, navegava num oceano de corrupção, a imprensa escrita alcançou altíssimo nível de confiança ao denunciar com fartura de provas e detalhes as redes sigilosas com que se teciam os enganos. Isso converteu os jornalistas em observadores tão eficazes de realidade que se confiava neles muito mais – e com muito maior razão – do que nas sentenças dos juízes. Mas a carne do êxito atraiu cardumes vorazes de tubarões e quase não houve jornalista novato que não se transformasse, da noite para o dia, num fiscal vocacionado à procura de corruptos. Os focos de corrupção apareceram por todos lados, claro, mas a maré de denúncias foi tão caudalosa que os episódios pequenos acabaram por fazer esquecer os grandes e o sol acabou, literalmente, tapado pela sombra de um dedo. Dissimulados entre os ladrões de dez dólares, os grandes corruptos escaparam com facilidade pelos meandros abertos pelo exército de improvisados fiscais.
Na América Latina nasceu, como disse mais de uma vez, a crônica, que é a semente do jornalismo narrativo, mas salvo a tenacidade de umas poucas revistas valentes, essa herança ameaça ficar prostrada na negligência e no esquecimento. A história da crônica começa com Daniel Defoe e seu “Diário do ano da peste”, mas a origem da crônica contemporânea está nos textos que José Marti enviava de Nova York à “La Opinión Nacional, de Caracas, e à “La Nación”, de Buenos Aires, na década de 1880. Está, quase ao mesmo tempo, nos estremecedores relatos de Canudos, que Euclides da Cunha compilou em “Os Sertões”, nos cronistas do modernismo, como Rubén Dario, Manuel Gutierrez Najera, Julián del Casal e nos escritores testemunhas da Revolução Mexicana. A essa tradição se incorporariam mais tarde as reportagens políticas que César Vallejo escreveu para a revista “Germinal”, as resenhas sobre cinema e livros de Jorge Luís Borges no suplemento multicor do vespertino “Critica”, nas águas-fortes de Robert Arlt – que elevaram a tiragem do jornal “El Mundo” a meio milhão de exemplares quando a população total da Argentina era de dez milhões – nos medalhões literários de Alonso Reyes, em “La Pluma”, nos telegramas delirantes que Juan Carlos Ometti escrevia para a agência Reuter, nas minuciosas colunas de música de Alejo Carpentier e nas crônicas sociais do mexicano Salvador Novo.
Na lista negra
Todos, absolutamente todos os grandes escritores da América Latina foram, alguma vez, jornalistas. Embora os Estados Unidos tenham reivindicado para si a invenção, ou a descoberta do novo jornalismo, das “factions” e das “novelas da vida real”, como costumam denominar, lá, os escritos de Truman Capote, Norman Mailer e Joan Didion, é na América Latinas que nasceu o gênero e onde alcançou sua genuína grandeza. E é na América Latina, sem dúvida, onde se insiste em expulsá-lo dos jornais e confiná-lo apenas aos livros.
Talvez haja uma confusão sobre o que significa narrar, porque é óbvio que nem todas as notícias se prestam a ser narradas. Narrar a votação de uma lei no Senado a partir dos votos de um senador pode ser inútil, além de patético. Mas contar algumas das tribulações do presidente paquistanês Pervez Musharraf para entender-se com seus filhos talibanes, enquanto ouve as razões do embaixador norte-americano; ou descrever os desgostos do presidente George W. Bush errando um buraco de golfe, em Camp David, enquanto cai uma bomba por engano em um hospital de Jalalabad é algo que se pode fazer com a linguagem escrita melhor do que com o despojamento das imagens. Por último, não gostaria de deixar de lado um princípio que os profissionais destas latitudes costumam esquecer com freqüência: o valor e a importância que têm a defesa do nome próprio.
Em geral, um jornalista não dispõe de outro patrimônio que não seja seu nome, e se o corrompe e o malversa ou se o põe a serviço de qualquer poder circunstancial, não só cava sua própria tumba como também joga um punhado de lama sobre o ofício.
Voltei a ler, não faz muito, num jornal de Buenos Aires, uma história de juventude que havia me esquecido e que, sem dúvida, foi a luzinha inesperada que guiou, desde então, muito do que fiz na vida. Em março de 1961 eu era o principal responsável pelas críticas cinematográficas no jornal “La Nación” e logo, pelo rigor que punha em meu trabalho, ganhei o ressentimento de um sem-número de desafetos. Faziam já dois anos que exercia essa tarefa quando o jornal decidiu que, dada a presumida combatividade dos meus textos, eu deveria assiná-los, para demonstrar que era responsável por eles. Primeiro, o fiz com minhas iniciais, logo com o meu nome completo. Um ano depois, os distribuidores de filmes norte-americanos decidiram retirar, todos eles, suas cotas de publicidade do “La Nación”, exigindo, para voltar atrás, que o jornal me pusesse na rua. “La Nación” não fazia essas coisas, pelo que, depois de resistir valentemente à escassez de verba durante uma semana, o administrador do jornal me convocou ao seu escritório. “Você sabe que é um empregado”, disse-me. “Claro”, respondi. “Como poderia pensar outra coisa?, completei. “E como empregado, tem que fazer o que o jornal mandar”. “Claro”, retruquei. “Por isso, recebo um salário quinzenal”, disse mais. “Então, a partir de agora, um dos secretários da redação lhe indicará o que terá que escrever sobre cada um dos filmes”. “Com todo o prazer”, repliquei. “Espero que, então, retirem minha assinatura”, lembrei. “Ah, isso não”, disse o administrador. “Se retirássemos a assinatura pareceria que o jornal o está censurando”. Teria cem respostas para esta observação, mas a que preferi foi uma muitíssimo mais simples: “Então não posso fazer o que você me pede. Meu trabalho está à venda, minha assinatura não”.
No dia seguinte, me enviaram para a seção “Movimento Marítimo”, na qual deveria anotar os barcos que entravam e saíam do porto. Três dias mais tarde, me dei conta de que não servia para a tarefa. E demiti-me. Durante um ano inteiro estive nas listas negras dos proprietários de jornais e tive que sobreviver dando aulas na universidade. Nessa época havia trabalhos alternativos que agora estão banidos do mapa..
Doze pontos
Voltei ao “La Nación”, como colunista permanente, em 1996. Três anos depois, a convite da Fundação para um Novo Jornalismo Iberoamericano, dei uma palestra, de meio dia, a todos os redatores desse jornal no qual havia começado a minha vida profissional. Teria deixado cair no esquecimento tudo o que disse se, no dia seguinte, o chefe da redação, com quem comentei o incidente de 1961, quando ambos éramos correspondentes em Paris, não houvesse feito um resumo de doze pontos da minha palestra, com que gostaria de terminar este monólogo. Vocês já imaginam qual é o primeiro ponto.
1.
O único patrimônio do jornalista é o seu bom nome. Cada vez que se assina um texto insuficiente ou infiel à própria consciência, se perde parte desse patrimônio ou o todo.
2.
Tem que se defender diante dos editores o tempo que cada qual precise para escrever um bom texto.
3.
Tem que se defender o espaço que um bom texto necessita diante da ditadura dos diagramadores e contra as fotografias que cumpram, só, função decorativa.
4.
Uma foto que sirva só como ilustração e não ligada de alguma forma ao texto não pertence ao jornalismo. Às vezes, sem dúvida, uma foto pode ser mais eloqüente do que mil palavras.
5.
Tem que se trabalhar em equipe. Uma redação é um laboratório em que todos devem compartilhar seus feitos e seus fracassos e que todos devem sentir que o que acontece a um, acontece a todos.
6.
Não há que se escrever uma só palavra da qual não se esteja seguro e nem dar uma só informação da qual não se tenha plena certeza.
7.
Tem que se trabalhar com os arquivos sempre à mão, verificando cada dado e estabelecendo, com clareza, o sentido de cada palavra que se escreve. Nem sempre, contudo, os dicionários são confiáveis. Dois dos melhores que conheço, o de Maria Moliner e o da Real Academia, só corrigiram em 1990 a velha definição da palavra dia. Até então, seguiam dando-lhe um sentido como se ainda vivêssemos sob o império da Inquisição. Dia, se podia ler, “é o espaço de tempo que o sol demora em dar uma volta completa ao redor da terra”.
8.
Evitar de servir de veículo dos interesses de grupos públicos ou privados. Um jornalista que publica todos os boletins de imprensa que lhe enviam, sem verificá-los, deveria mudar de profissão e dedicar-se a ser mensageiro.
9.
A classe política, a classe empresarial e, em geral, os setores com poder dentro da sociedade, buscam impregnar os meios de comunicação com notícias próprias, às vezes acrescentando ênfase à realidade. O jornalista não deve deixar-se envolver pelas agendas alheias. Deve colaborar paras que o veículo em que trabalha crie sua própria agenda.
10.
Há que se usar sempre uma linguagem clara, concisa e transparente. Em geral, o que se diz em dez palavras sempre se pode dizer em nove, ou em sete.
11.
Encontrar o eixo e a cabeça de uma notícia não é tarefa fácil. Tampouco é narrar uma notícia. Nunca narre se não estiver seguro de que se possa fazer isso com clareza, eficácia e pensando no interesse do leitor mais do que no brilho próprio.
12.
Lembre sempre que o jornalismo é, antes de tudo, prestação de serviço. O jornalismo é colocar-se no lugar do outro, compreender o outro e, às vezes, ser o outro.
(Tradução livre de Pedro J. Bondaczuk).
(Texto enviado por Urariano Mota).
*O jornalista e escritor argentino Tomáz Eloy Martínez morreu em 31 de janeiro passado, em Buenos Aires, depois de longa batalha contra o câncer. Foi um dos fundadores da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), entidade criada em 1994 sob inspiração do também jornalista e escritor Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Era colunista do diário espanhol El País e colaborador do The New York Times, La Nación, Panorama y Primera Plana. Integrava o Conselho Diretor da FNPI Em 2009, o El País lhe concedeu o Prêmio Ortega y Gasset em reconhecimento à sua história de trabalho no jornalismo. Entre seus principais livros estão Santa Evita, editado em 30 idiomas, Romance de Perón, A Paixão Segundo Trelew, O Voo da Rainha, O Cantor de Tango e Purgatório.
* Por Tomáz Eloy Martinez
Há três décadas, no apogeu da investigação do “The Washington Post” sobre o caso Watergate, o que já se conhecia, então, como novo jornalismo alcançou seu ponto de máxima influência e credibilidade. Pode-se discordar do que Carl Bernstein e Bob Woodward, autores daqueles memoráveis relatos, impecavelmente investigados, fizeram depois, mas não com a decência, a tenacidade, a eficácia na informação e a qualidade na narração que o Post mostrou, ao juntar os fios daquela história.
Desde então, o jornalismo narrativo tropeçou e caiu mais de uma vez, nos Estados Unidos e em outras latitudes, acaso por haver esquecido que narração e investigação formam uma só coisa, uma aliança indestrutível, de aço. Não há narração, por mais admirável que seja, que se sustente sem as vértebras de uma investigação cuidadosa e certeira, assim como, tampouco, há investigação válida, por mais assombrosa que pareça, se vier a se perder nos labirintos de uma linguagem insuficiente ou se não se souber prender a atenção dos que a lerem, ouvirem ou verem. Sós, uma e outra são substâncias de gelo. Para que haja combustão, precisam caminhar de mãos dadas.
Os problemas que afetam a qualidade do jornalismo, seja ou não narrativo, são mais ou menos os mesmos, tanto neste continente como do outro lado do Atlântico. Descobrir porque sucederam e podem seguir desencadeando-se é o tema da minha reflexão desta tarde. Mal poderei expor de onde viemos se não reconhecer, primeiro, o caminho para onde vamos.
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Veja-se o que ocorreu com a história de Watergate, em que dois jornalistas jovens, em poucos meses, conquistaram notoriedade mundial ao desatarem alguns nós de corrupção e abuso do poder. Tudo começou por algo que na aparência era insignificante: um roubo nos escritórios do partido político de oposição. E terminou com um fato notável: a renúncia forçada do presidente dos Estados Unidos. O ponto de partida era ínfimo, o resultado, em troca, foi espetacular.
Uma leitura superficial desse fenômeno fez com que muitos chegassem a conclusões também superficiais. Se um incidente pequeno podia, por obra e graça dos meios de comunicação, transfigurar-se numa história maior, então – pensaram alguns – havia que sair em busca do escândalo. O jornalismo narrativo parecia perfeito para alcançar esse fim. Os dramas bem contados podiam comover e hipnotizar milhões. Quanto à investigação, se chegou a pensar que era legítimo se tecer fraudes aqui e ali, corrigir sutilmente a direção de certos fatos, aumentar outros, inventar testemunhas, multiplicar as gargantas profundas. Assim, foi convertendo-se em mercadoria o que é, essencialmente, um serviço à comunidade. Confundiu-se os leitores, espectadores e ouvintes com uma multidão de alfabetos e mídias, cuja inteligência equivalia à de uma criança. Nesse jogo, o jornalismo perdeu muito de sua credibilidade e quase toda sua respeitabilidade.
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Círculo atroz
Dei-me conta, pela primeira vez, de que algo grave estava ocorrendo quando, no festival de cinema de Cartagena de Índias de 1997, um jornalista novato, empunhando um microfone como se fosse uma Beretta de James Bond, se aproximou de Gabriel Garcia Márquez e lhe perguntou se era verdade que iriam filmar, em Hollywood, seu último livro. “Qual livro?”, perguntou Garcia Márquez, com genuína curiosidade. “O último”, disse o jovem. “E qual é o último?”, insistiu o autor, que meses antes havia publicado “Notícias de um seqüestro”, à espera do pior. “Pois qual há dei ser? É esse que chamam ‘Cem anos de Solidão’”, explicou o homem, com uma empáfia que nunca vi em Norman Mailer nem em Tom Wolfe. Não soube mais do interrogador, que foi enviado, naquela mesma noite, de volta à escola. Mas todos os dias vejo muitos que se parecem com ele nas telas de televisão do meu país, Argentina, ou nas rádios que sintonizo quando dou voltas pela América Latina.
Costuma-se evocar com melancolia e com a admiração que se sente pelo que não se tem, aquele jornalismo revolucionário dos tempos em que tudo começou, até fins dos anos cinqüenta. Creio, decididamente, que esse jornalismo não era tão bom como o que se poderia fazer agora, porque há mais talentos do que então e, os que há, estão intelectualmente melhor preparados. O que ocorre é que caímos, todos de uma vez, nos equívocos da festa neoliberal. E não só vão caindo os poucos lugares onde se poderia publicar o que se quisesse escrever, mas, por seu turno (e uns acompanham os outros) há cada vez menos empresários dispostos a arriscar a estabilidade de seus bolsos e a de suas relações criando meios em que a qualidade da narração esteja de mãos dadas com a riqueza e a sinceridade da informação.
Informar bem custa muito dinheiro, porque requer investir um tempo para isso e às vezes não basta uma só pessoa. E informar com honestidade conflita, com freqüência, com interesses a que se preferiria fazer vistas grossas.
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Diferente do que acontecia há um século, o jornalismo é uma árvore com mais ramos do que se vêem. Há oito décadas nasceu, incipiente, o jornalismo das rádios; há meio século, o da televisão e há pouco mais de uma década o jornalismo de internet. Quase durante o mesmo tempo se prognosticou a decadência e queda do jornalismo impresso, que foi assumindo formas inesperadas, como para desmentir as previsões fúnebres das pesquisas. Na reunião promovida pela Associação Mundial de Jornais em Seul, em fins de maio passado – em que a preocupação central foi a proliferação de blogs como exercícios descontrolados de jornalismo – examinou-se uma predição sobre a morte dos meios massivos publicados pela “The Wilsonian Quaterly”, uma revista da Universidade de Princeton. Ali se sustentava que, dado o acelerado avanço de revolução tecnológica, o jornalismo tradicional sucumbiria no ano de 2040. Com arrogância, o presidente do “The New York Times”, Arthur Sulzberger, respondeu: “Já que tratamos de ser precisos, por que não o somos com toda a precisão que o jornalismo nos permite? Por que dizer que morreremos em 2040? Digamos, mais exatamente, que morreremos em 16 de abril de 2040 e que isso acontecerá às seis horas da tarde. Não lhes parece assim?”
O que está adoecendo o jornalismo é uma peste chamada narcisismo. Lamento coincidir nesse ponto com o australiano Rupert Murdoch, que tantos males causou comprando veículos de comunicação só para degradá-los e vendê-los depois, mas o narcisismo – do qual o próprio Murdoch é um bom exemplo – se manifesta agora quase a cada passo. Uma imensa parte das notícias exibidas na televisão está concebida, só, como entretenimento ou, no melhor dos casos, como diálogos em que as perguntas não se sustentam em informações. E entre as rádios e os jornais se criou um atroz círculo vicioso, que começa – ou termina, já que se trata de um círculo – com entrevistas que as rádios fazem com personagens destacados pelos jornais, para que estes publiquem, por seu turno, as reações desses personagens, e assim até o infinito.
Influência dos jornais
A febre exibicionista criou escândalos como o de Janet Cooke, a jornalista que ganhou um Pulitzer em 1981 por uma série publicada no mesmo “Washington Post” do caso Watergate por contar a história de um menino de oito anos que se injetava heroína com o consentimento da mãe. A história era falsa e Janet Cooke teve que devolver o prêmio, mas já havia cometido um grave delito de contá-la muito bem, com o que semeou a semente de uma praga que deu muitos frutos desde então. Em 1998, o semanário “The New Republic” demitiu Stephen Glass, seu editor principal, porque descobriu que ele inventou dados, citações e pessoas em 27 dos seus 40 últimos artigos. O mais famoso e letal de todos foi o fruto que nos foi dado a comer por Jayson Blair, repórter estrela do “The New York Times”, que entre os anos de 2002 e 2003, pesquisou, por todos os Estados Unidos, uma dúzia de notícias apaixonantes, sem sequer sair da redação, plagiando o trabalho de outros, ou requentando os ocos informativos que recebia com delírios de própria invenção. No afã de glória fácil, Blair cometeu o pecado da mentira, que é o pecado capital de todo bom jornalista. E com a arte da sua indolência, derrubou, de um só sopro, o prestígio de todos editores do seu jornal.
O jornalismo narrativo parece, a muitos, o atalho mais fácil e produtivo para a fama. Quem sabe quantos Jayson Blair deste mundo caem na tentação de fazê-lo como forma, mal ou pior, de progredir rápido na profissão. Mas também se deve alertar que esses orgulhos individuais prosperam porque costumam ser alimentados pela cobiça dos editores, que os estimulam, para aumentar as cifras de vendas, ou os índices de audiência, ou os favores do mercado.
Às vezes os editores não caem por cobiça, mas – embora soe estranho – por ingenuidade. Chega-lhes às mãos uma pequena história, aparentemente bem contada, mas cheia de tiques que são imitação de cronistas com uma linguagem própria, e a publicam para cumprir a quota obrigatória de narração, sem verificar se essa história reflete uma tragédia maior ou se se reduz, simplesmente, a uma anedota que aspira a ser pitoresca. Isso também afasta os leitores, porque, no fundo, é entretenimento trivial, medalha para saciar o narcisismo de alguém que soltou, nesse relato, suas gotinhas de talento imaginário, sem averiguar em que contexto social ocorrem as coisas, ou se o que está narrando acontece, por sua vez, em muitas outras partes. As cinco ou seis indagações do jornalismo convencional já não têm que ir no primeiro parágrafo, mas têm que aparecer em alguma parte, porque são a coluna vertebral de todo bom texto: onde, quando, como, para quê, por que e quem. Há jornalistas brilhantes nos quais ninguém encontrou mancha alguma. Para mim, um modelo a imitar é Seymour Hersh, redator do semanário “The New Yorker”, que foi o primeiro a desmascarar as atrocidades do exército norte-americano no Vietnã, ao contar as matanças dos camponeses de My Lai e o primeiro, também, a lançar luz nos abusos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque. Seymour Hersh saiu por cima de todas as tentativas para desprestigiá-lo, e mostrou, nos dois casos, que o melhor jornalismo narrativo se fundamenta na investigação. Esse sinal de eficácia superlativa só é possível quando os textos são trabalhados com tempo e com recursos. Com essa filosofia, estão crescendo em influência jornais como “The New York Times”, “Los Angeles Times”, “El País”, de Madri; “The Washington Post” e o “Guardian”, de Londres, que publicam, pelo menos, de sete a doze grandes relatos todos os dias e entre eles, não se contam as reportagens de Esportes, onde quase tudo é narrado.
Medalhões literários
Os jornais diários da América Latina são, em sua maioria, reticentes quanto a este caminho maiúsculo. Conheço empresários que se empenham em competir com a televisão e a internet, o que me parece suicida, publicando pílulas de informações já digeridas ou abusando de infografias para explicar qualquer coisa, como se tivessem pavor que os leitores leiam. Esse esquema não tem sucesso nem mesmo nos jornais gratuitos, que são o grande êxito comercial da última década. O “Metro Internacional”, como se sabe, lança 56 edições, em 16 línguas e é distribuído em 17 países e 78 cidades, com uma distribuição total, diária, de 15 milhões de exemplares, mas fracassou em Buenos Aires porque tudo o que dizia já estava, um dia antes, na televisão. A experiência funciona bem onde há mais narrações, como ocorre nos “Metros” de Londres e de Frankfurt.
A necessidade de cortejar os poderosos de plantão, para assegurar a publicidade oficial, converteu muitos jornais, que chegaram a nos despertar esperanças de mudança, em meros reprodutores do que dizem os releases dos governos ou do que ordenam as empresas de propaganda. Criar uma agenda própria é outra das obrigações fundamentais do jornalismo como ato de serviço à comunidade, mas até “The New York Times” se esqueceu dessa lição elementar, quando começaram os abusos da cruzada contra o terrorismo, e as histórias de mortos no Iraque ou de torturas em Abu Ghraib e em Guantanamo, que foram “lavadas por muitas águas” antes de saltar das notas de rodapé da décima página para as crônicas bem-informadas da capa.
Gostaria de concentrar-me agora no jornalismo escrito, porque foi ali que nasceu um ofício que, apesar de tantas lutas, ainda está impregnado de paixão e de nobreza. Um jornalista que confia na inteligência de seu leitor jamais se exibe. Estabelece, com ele, desde o princípio, o que chamaria de “um pacto de fidelidade”: fidelidade à própria consciência e fidelidade à verdade. Alguma vez eu disse que a avidez de conhecimento do leitor não se sacia com o escândalo, mas com a investigação honesta; não é aplacada a golpes de efeito, mas com a narração de cada fato dentro do seu contexto e de seus antecedentes. Não se distrai o leitor com fogos de artifício ou com denúncias estrepitosas que se dissipam no dia seguinte, mas tem que ser respeitado com a informação precisa. O jornalismo não é um circo para exibir-se, nem um tribunal para julgar, nem uma assessoria para governantes incompetentes ou vacilantes, mas um instrumento de informação, uma ferramenta para pensar, criar e ajudar o homem em seu eterno combate por uma vida mais digna e menos injusta.
Até começos dos anos 90, quando meu país, a Argentina, navegava num oceano de corrupção, a imprensa escrita alcançou altíssimo nível de confiança ao denunciar com fartura de provas e detalhes as redes sigilosas com que se teciam os enganos. Isso converteu os jornalistas em observadores tão eficazes de realidade que se confiava neles muito mais – e com muito maior razão – do que nas sentenças dos juízes. Mas a carne do êxito atraiu cardumes vorazes de tubarões e quase não houve jornalista novato que não se transformasse, da noite para o dia, num fiscal vocacionado à procura de corruptos. Os focos de corrupção apareceram por todos lados, claro, mas a maré de denúncias foi tão caudalosa que os episódios pequenos acabaram por fazer esquecer os grandes e o sol acabou, literalmente, tapado pela sombra de um dedo. Dissimulados entre os ladrões de dez dólares, os grandes corruptos escaparam com facilidade pelos meandros abertos pelo exército de improvisados fiscais.
Na América Latina nasceu, como disse mais de uma vez, a crônica, que é a semente do jornalismo narrativo, mas salvo a tenacidade de umas poucas revistas valentes, essa herança ameaça ficar prostrada na negligência e no esquecimento. A história da crônica começa com Daniel Defoe e seu “Diário do ano da peste”, mas a origem da crônica contemporânea está nos textos que José Marti enviava de Nova York à “La Opinión Nacional, de Caracas, e à “La Nación”, de Buenos Aires, na década de 1880. Está, quase ao mesmo tempo, nos estremecedores relatos de Canudos, que Euclides da Cunha compilou em “Os Sertões”, nos cronistas do modernismo, como Rubén Dario, Manuel Gutierrez Najera, Julián del Casal e nos escritores testemunhas da Revolução Mexicana. A essa tradição se incorporariam mais tarde as reportagens políticas que César Vallejo escreveu para a revista “Germinal”, as resenhas sobre cinema e livros de Jorge Luís Borges no suplemento multicor do vespertino “Critica”, nas águas-fortes de Robert Arlt – que elevaram a tiragem do jornal “El Mundo” a meio milhão de exemplares quando a população total da Argentina era de dez milhões – nos medalhões literários de Alonso Reyes, em “La Pluma”, nos telegramas delirantes que Juan Carlos Ometti escrevia para a agência Reuter, nas minuciosas colunas de música de Alejo Carpentier e nas crônicas sociais do mexicano Salvador Novo.
Na lista negra
Todos, absolutamente todos os grandes escritores da América Latina foram, alguma vez, jornalistas. Embora os Estados Unidos tenham reivindicado para si a invenção, ou a descoberta do novo jornalismo, das “factions” e das “novelas da vida real”, como costumam denominar, lá, os escritos de Truman Capote, Norman Mailer e Joan Didion, é na América Latinas que nasceu o gênero e onde alcançou sua genuína grandeza. E é na América Latina, sem dúvida, onde se insiste em expulsá-lo dos jornais e confiná-lo apenas aos livros.
Talvez haja uma confusão sobre o que significa narrar, porque é óbvio que nem todas as notícias se prestam a ser narradas. Narrar a votação de uma lei no Senado a partir dos votos de um senador pode ser inútil, além de patético. Mas contar algumas das tribulações do presidente paquistanês Pervez Musharraf para entender-se com seus filhos talibanes, enquanto ouve as razões do embaixador norte-americano; ou descrever os desgostos do presidente George W. Bush errando um buraco de golfe, em Camp David, enquanto cai uma bomba por engano em um hospital de Jalalabad é algo que se pode fazer com a linguagem escrita melhor do que com o despojamento das imagens. Por último, não gostaria de deixar de lado um princípio que os profissionais destas latitudes costumam esquecer com freqüência: o valor e a importância que têm a defesa do nome próprio.
Em geral, um jornalista não dispõe de outro patrimônio que não seja seu nome, e se o corrompe e o malversa ou se o põe a serviço de qualquer poder circunstancial, não só cava sua própria tumba como também joga um punhado de lama sobre o ofício.
Voltei a ler, não faz muito, num jornal de Buenos Aires, uma história de juventude que havia me esquecido e que, sem dúvida, foi a luzinha inesperada que guiou, desde então, muito do que fiz na vida. Em março de 1961 eu era o principal responsável pelas críticas cinematográficas no jornal “La Nación” e logo, pelo rigor que punha em meu trabalho, ganhei o ressentimento de um sem-número de desafetos. Faziam já dois anos que exercia essa tarefa quando o jornal decidiu que, dada a presumida combatividade dos meus textos, eu deveria assiná-los, para demonstrar que era responsável por eles. Primeiro, o fiz com minhas iniciais, logo com o meu nome completo. Um ano depois, os distribuidores de filmes norte-americanos decidiram retirar, todos eles, suas cotas de publicidade do “La Nación”, exigindo, para voltar atrás, que o jornal me pusesse na rua. “La Nación” não fazia essas coisas, pelo que, depois de resistir valentemente à escassez de verba durante uma semana, o administrador do jornal me convocou ao seu escritório. “Você sabe que é um empregado”, disse-me. “Claro”, respondi. “Como poderia pensar outra coisa?, completei. “E como empregado, tem que fazer o que o jornal mandar”. “Claro”, retruquei. “Por isso, recebo um salário quinzenal”, disse mais. “Então, a partir de agora, um dos secretários da redação lhe indicará o que terá que escrever sobre cada um dos filmes”. “Com todo o prazer”, repliquei. “Espero que, então, retirem minha assinatura”, lembrei. “Ah, isso não”, disse o administrador. “Se retirássemos a assinatura pareceria que o jornal o está censurando”. Teria cem respostas para esta observação, mas a que preferi foi uma muitíssimo mais simples: “Então não posso fazer o que você me pede. Meu trabalho está à venda, minha assinatura não”.
No dia seguinte, me enviaram para a seção “Movimento Marítimo”, na qual deveria anotar os barcos que entravam e saíam do porto. Três dias mais tarde, me dei conta de que não servia para a tarefa. E demiti-me. Durante um ano inteiro estive nas listas negras dos proprietários de jornais e tive que sobreviver dando aulas na universidade. Nessa época havia trabalhos alternativos que agora estão banidos do mapa..
Doze pontos
Voltei ao “La Nación”, como colunista permanente, em 1996. Três anos depois, a convite da Fundação para um Novo Jornalismo Iberoamericano, dei uma palestra, de meio dia, a todos os redatores desse jornal no qual havia começado a minha vida profissional. Teria deixado cair no esquecimento tudo o que disse se, no dia seguinte, o chefe da redação, com quem comentei o incidente de 1961, quando ambos éramos correspondentes em Paris, não houvesse feito um resumo de doze pontos da minha palestra, com que gostaria de terminar este monólogo. Vocês já imaginam qual é o primeiro ponto.
1.
O único patrimônio do jornalista é o seu bom nome. Cada vez que se assina um texto insuficiente ou infiel à própria consciência, se perde parte desse patrimônio ou o todo.
2.
Tem que se defender diante dos editores o tempo que cada qual precise para escrever um bom texto.
3.
Tem que se defender o espaço que um bom texto necessita diante da ditadura dos diagramadores e contra as fotografias que cumpram, só, função decorativa.
4.
Uma foto que sirva só como ilustração e não ligada de alguma forma ao texto não pertence ao jornalismo. Às vezes, sem dúvida, uma foto pode ser mais eloqüente do que mil palavras.
5.
Tem que se trabalhar em equipe. Uma redação é um laboratório em que todos devem compartilhar seus feitos e seus fracassos e que todos devem sentir que o que acontece a um, acontece a todos.
6.
Não há que se escrever uma só palavra da qual não se esteja seguro e nem dar uma só informação da qual não se tenha plena certeza.
7.
Tem que se trabalhar com os arquivos sempre à mão, verificando cada dado e estabelecendo, com clareza, o sentido de cada palavra que se escreve. Nem sempre, contudo, os dicionários são confiáveis. Dois dos melhores que conheço, o de Maria Moliner e o da Real Academia, só corrigiram em 1990 a velha definição da palavra dia. Até então, seguiam dando-lhe um sentido como se ainda vivêssemos sob o império da Inquisição. Dia, se podia ler, “é o espaço de tempo que o sol demora em dar uma volta completa ao redor da terra”.
8.
Evitar de servir de veículo dos interesses de grupos públicos ou privados. Um jornalista que publica todos os boletins de imprensa que lhe enviam, sem verificá-los, deveria mudar de profissão e dedicar-se a ser mensageiro.
9.
A classe política, a classe empresarial e, em geral, os setores com poder dentro da sociedade, buscam impregnar os meios de comunicação com notícias próprias, às vezes acrescentando ênfase à realidade. O jornalista não deve deixar-se envolver pelas agendas alheias. Deve colaborar paras que o veículo em que trabalha crie sua própria agenda.
10.
Há que se usar sempre uma linguagem clara, concisa e transparente. Em geral, o que se diz em dez palavras sempre se pode dizer em nove, ou em sete.
11.
Encontrar o eixo e a cabeça de uma notícia não é tarefa fácil. Tampouco é narrar uma notícia. Nunca narre se não estiver seguro de que se possa fazer isso com clareza, eficácia e pensando no interesse do leitor mais do que no brilho próprio.
12.
Lembre sempre que o jornalismo é, antes de tudo, prestação de serviço. O jornalismo é colocar-se no lugar do outro, compreender o outro e, às vezes, ser o outro.
(Tradução livre de Pedro J. Bondaczuk).
(Texto enviado por Urariano Mota).
*O jornalista e escritor argentino Tomáz Eloy Martínez morreu em 31 de janeiro passado, em Buenos Aires, depois de longa batalha contra o câncer. Foi um dos fundadores da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), entidade criada em 1994 sob inspiração do também jornalista e escritor Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Era colunista do diário espanhol El País e colaborador do The New York Times, La Nación, Panorama y Primera Plana. Integrava o Conselho Diretor da FNPI Em 2009, o El País lhe concedeu o Prêmio Ortega y Gasset em reconhecimento à sua história de trabalho no jornalismo. Entre seus principais livros estão Santa Evita, editado em 30 idiomas, Romance de Perón, A Paixão Segundo Trelew, O Voo da Rainha, O Cantor de Tango e Purgatório.
"Lembre sempre que o jornalismo é, antes de tudo, prestação de serviço. O jornalismo é colocar-se no lugar do outro, compreender o outro e, às vezes, ser o outro."
ResponderExcluirE na minha opinião, jornalismo é antes de tudo
respeito ao leitor que jamais deve ser subestimado.