quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010




A culpa de Osmindo

* Por Marco Albertim

O prior autorizou-o a entrar no quarto vazio; autorizou sem suspeitar que a visita figurara nos sonhos de Osmindo. A viga de madeira onde o frade se enforcara foi trocada. Só o vácuo onde o corpo fora encontrado sob a corda. A corda, levada pela polícia, do mesmo cordão grosso usado na cintura da batina. A imagem de Cristo, mantida. A escrivaninha, com gavetas vazias, coberta de poeira. Os papéis, também levados para investigação. À cama, lençol branco, estirado sem dobras. Na fronha do travesseiro, iniciais de seu nome. Ali Osmindo dormira o sonho impuro que o levou à morte.

Os homens queriam levá-lo para confessar sob tortura a proteção a subversivos. Antes tivesse morrido pendurado no pau-de-arara. O medo de que o mundo o flagrasse com o sexo transviado, embutiu sua dor; resgatou-se, Osmindo, na corda amarrada à viga. O corpo em frente à imagem do mesmo Cristo em que configurou Guevara. Orações, olhos infixos no rosto exangue, nas chagas dos pés, dos joelhos, no pano de proteção ao falo. Cobiçou o oculto falo, sabendo-o de madeira e cera; moldando-o no transe dos olhos convulsos, em carne viva, carregada de sêmen.

Encafuado no aposento, oração demente, cheia de crença, sublimando o gozo de ter presenciado os noviços abraçados sob o chuveiro. Antes, na quietação do sexo, jurara sem urdir palavras que os sentidos seriam à prova de tentação. Nem precisara jurar, que o corpo, tão sereno quanto o juízo, comparava-se à leveza de uma flor. Mas a guarda da alma revelou-se débil, deixando-se aturdir pelo insólito coito dos noviços. Fechara os olhos para não crer que dali pudesse jorrar uma luxúria ilegítima. Depois, o transe deu lugar ao desvario do onanismo. Não se perdoou desde então, exorcizando-se em orações aflitas. Os noviços, expulsos, execrados no silêncio do seminário. Osmindo sentenciou-se sem que a humanidade soubesse de seu pecado. No choro angustioso, crera-se em transição à purgação. O alívio da lágrima converteu-se em costume vicioso, na conjetura de comoções carnais. Impressionara-se com a saga da emigração dos hebreus; agora, relia sem tédio o episódio de amor de Davi por Jônatas.

Acolheu Felipe tendo-o por Che redivivo, abrindo o portão do convento para as reuniões. Encontraram-se na margem do cais deserto. Noite sem lua, sentados no banco da praça suja. Atrás, uma rala luz de poste, enfeite reles
- Hoje, tem que ser hoje.
- No portão dos fundos. Meia-noite. Vou deixar o cadeado aberto. Espero vocês do lado de dentro. Terão que se reunir numa cocheira, com cheiro de esterco. Mas há uma mesa e dois bancos, um de cada lado, do mesmo comprimento da mesa. Quantos são?
- Seis.
- Não façam barulho. Conversem baixo... e evitem cigarro.
- Não se preocupe – sossegou-o Felipe.

Um minuto depois da hora, entraram nos fundos do convento. Osmindo, com candeeiro de lume fraco, acomodou-os. Recomendou outra vez que não fumassem.
- Vou deixar o cadeado aberto. Quando saírem, fechem pelo lado de fora. Há uma brecha no portão.

Saiu. A luz mortiça na candeia não impediu que visse o revólver na cintura de Felipe. Do outro lado do mosteiro, restos de multidão, distraindo-se em roletas de azar. Praça cheia na Noite do Carmelo, depois da missa. O povo, no vaivém à frente da igreja, até cansar-se das pernas, da conversa vadia, quase contrita. Osmindo, recolhido à cela, livrou-se do hábito. Curvou-se sob o Cristo, segurou o rosário para cumprir todas as contas; cumpriu-as com suor, lágrima e balbucio aflitivo. Todo o tempo olhando para baixo, evitando a túnica na cintura da imagem. Rezou por Felipe, pelo fim feliz da reunião.

Uma hora. O relógio na torre soou grave. Minguado ajuntamento na roleta de azar. Da cruz, em cima da igreja, a coruja rasgou um piado carregado de agouros. Osmindo não dormira, não conseguira. Foi para um dos aposentos da frente, olhar a praça, corujar na fresta da janela. Sentou-se num banco fixo à parede. Fosse flagrado pelo prior, o banco, tão de uso pelos frades, o absolveria de suspeitas. Trouxera rosário, trouxera-o para precaver-se de presságios, para pungir-se do rigor do prior. Duas horas. O relógio pungiu a praça deserta. Luz apagada, Osmindo abriu a janela, corujou sem pudor o silêncio de cada fícus. As contas do rosário, baralhadas na mão, sem rezas para dar. Dormiu ali mesmo, sem sonhar nem ter pesadelo. O rosário caiu. Foi acordado por Jacinto, mais velho dos frades.
- Osmindo! Dormiu nas contas do rosário. Esqueceu de si próprio para dar-se à Virgem. Cuida, Osmindo! Cuida que já é dia!
Susto feliz deparar com Jacinto na primeira hora do dia. Abraçou-o. O velho sorriu, quase o benzendo.
- Me distraí com o rosário – explicou-se.
- Já está pronto para o dia – confortou-o.
- Não sei se as costas estão. Caneca também rezou aqui, perseguido.
- Não sou frei Caneca, meu amigo. Sou um novato. – Abraçou-o de novo.

Tomou banho. Antes de ir para o refeitório, foi à cocheira. A mesa no mesmo lugar, nenhuma ponta de cigarro nos estercos. Felipe, chapéu na cabeça, barba por fazer, tão rápido quanto escasso nas palavras. Nunca dissera palavra a mais do que tinha em propósito; vestindo-se do mesmo modo, usando chapéu para esconder-se da polícia.
- Tem os olhos vermelhos, Osmindo – atentou o prior.
- Tenho colírio. Logo fico bom.
- Não dormiu bem?
- Dormi bem, mas dormi pouco. Fui olhar o povo na frente da igreja. Me distraí.
- A última novena vai ser rezada por você. Vai celebrar a missa de despedida da Virgem. O que acha?
- Com muito gosto, frei Macário.
- Serei seu ajudante – acorreu Jacinto; acorreu para reabilitar a disposição de Osmindo.

Durante o dia, igreja vazia. Osmindo, breviário na mão, sentado num banco à frente do altar. Cegou-se para o mundo olhando a cintilação rubra do coração sagrado. Nenhum ruído, só o tropel de seu coração de carne viva. Mirou-se nos degraus do altar, de frente para os devotos, cantando o kyrie sem confessar culpas. ''Senhor, tende piedade de minha inépcia para conviver entre os homens!''

Cantaria mais alto que o submisso rebanho. Da abóbada, querubins sem asas, julgando sua contida culpa. As nuvens não se abririam para dar passagem a um incréu da inocência, arremessariam fogo para a imolação no tédio do cantochão.
- Amém!

Subiu para o aposento. Da mala sob a cama, tirou o pôster em branco e preto. O rosto de Che, vazado de projéteis, tão sereno quanto o de Cristo na cruz. Não havia queixa no ricto de dor sumida. Vaga perplexidade deixando os homens em transe de culpas. A humanidade por quem Osmindo rezava, demente, cínica, insolidária; de costas para as matas da Bolívia.

Felipe, na fila do confessionário, chapéu na mão, sem olhar para frente, esperando a vez de se confessar a Osmindo.
- Não tenho dívidas com santos, vigário; só créditos para o povo. Dê-me sua bênção para que minha vida seja longa, tão longa quanto o curso da revolução dos homens.
- Sacrílego, fanfarrão. Está inteiro? E os outros?
- Jonas está preso, sendo torturado. O advogado diz que só vai conseguir falar com ele quando os hematomas sumirem do corpo.
- Estou sendo observado? Sabe dizer?
- Não sabemos. Não tocarão em você, seria agressivo demais para os católicos.
- Os papéis! Quando vão levar os papéis?
- Hoje mesmo. Dê um jeito de devolver na cocheira. Não vou sozinho. Há mais alguém comigo.
- Quem?
- Um camponês. Foi denunciado no engenho onde trabalhava. Se for preso, a polícia e os capangas vão moê-lo sem piedade. Precisa se esconder uma semana. Depois, será levado para outro lugar.
- Que devo fazer?
- Uma cela vazia para ele. Não vai dar trabalho, é homem feito, experiente.
- Deus do céu!
- O prior é preguiçoso demais para fazer inspeção nos quartos.
- E a comida... como ele vai comer?
- Isso também é com você. Tem fartura na despensa do convento. Roube-a.
- É proibido zombar no confessionário. Fora daqui, apóstata.

Meia-noite. Osmindo devolveu a sacola cheia de papéis a Felipe, escritos apócrifos. O camponês, cigarro semi-apagado no canto da boca, cigarro de palha.
- Apague esse cigarro, homem! - relhou Osmindo - Não o instruiu, Felipe?
- Está tão carecido que não tive coragem de mandar apagar o cigarro. É só uma ponta de nada, já acabou.
- Uma ponta que fede! O prior não cheira só o que vem da cozinha.
- Ele está com fome, o homem está com fome.

Sem nada dizer, o homem seguiu o frade, guiado pelo fraco lume da candeia. Osmindo não descera de pijama, vestira hábito para confundir-se com o escuro.
- Vai ficar neste quarto. Tem banheiro e latrina, mas só use à noite, quando tudo estiver em silêncio. Tem o zelador, mas dorme fora; a cozinheira também. O prior é desconfiado. O outro está velho, dificilmente suspeitaria de algum estranho no convento. Vá tomar banho. Vou trazer comida.

Lavara-se com sabão grosso, trazido em sua minguada bagagem. Comeu pão, queijo; bebeu café que sobrara na garrafa térmica. Deitou-se como hóspede acuado, confuso. Dormiu o sono que custodiara para a hora que quisesse fazer uso, ao contrário de Osmindo.

Osmindo preferiu rezar no escuro, sem olhar para o Cristo, não se deixar flagrar em fé frouxa. Balbuciou mais de hora, entronizando o sacrifício do camponês que deixara mulher e filhos atrás, confiante, confiado no ódio ao usineiro. Desfaleceu cansado, sob estresse, sem agradecer pelo corpo ileso.

No café.
- Osmindo! – chamou-o o prior - Sente-se aqui, perto de mim. Tem dúvidas quanto a sua fé?
- Nenhuma, senhor.
- O que anda dizendo aos rapazes e moças?
- Interpretamos a bíblia.
- Não devia interpretar, devia repetir.
- Impossível! A juventude é naturalmente curiosa.
- Suas interpretações não são maduras. Ainda é um seminarista inquieto. Falta-lhe mais temor a Deus.
- Temo a Deus e tenho amor aos homens. Não tem sentido viver sem os dois sentimentos.
- Tem sentido entregar-se a Deus, isso tem sentido. Vai com Deus. Amanhã é o dia de sua primeira celebração. Vai para o teu claustro... manter a beatitude.

Na missa. Com alívio girou a chave para fechar o sacrário. Engoliu a hóstia sem intimidade com a obreia tirada com a mão. A genuflexão ajudou a manter a cabeça baixa, olhos zelosos da graça do pão, do vinho. No kyrie, pediu perdão mais para si que para a humanidade; jurou imolar-se numa fogueira de incenso, ouvindo o cantochão. Gritou aleluia com alegria muda, sem olhar para a cintura do Cristo.

Na bênção, fixou os olhos na mão direita, dedos acanhados, trêmulos. Deu as costas para o altar, não olhou os fiéis de frente. Seguido por Jacinto, livrou-se da estola, da casula. No cortinado, ao lado dos gavetões com lençóis rendados, sumiu rumo ao aposento. O ajudante a tudo assistiu sem conjeturar nada. Dois lances de escada, os dedos raspando a parede. Sem batina, pés nus, lavou o rosto. Prostrou-se na cama como se tivesse subido o Gólgota. Levantou-se. Logo o transe o levaria ao pesadelo. Olhou para o Cristo, puro e sacrílego, excitando seu indefeso falo. Ajoelhou-se chorando, rendido à beleza de Che Guevara na estátua de Jesus Cristo. Filho de Deus, redivivo por 39 anos, sacrificado nas matas da Bolívia. Frei Osmindo dormiu, sonhou com o amor de Davi por Jônatas, livre da condenação dos homens.

O prior observara-o de cima, sentado numa cadeira no corredor do convento, com varanda para o altar.
- Estava inseguro, Osmindo.
- Perdão, senhor.
- Não peça a mim o que só Deus pode lhe dar. Entregue suas falhas a ele.
- Sim, senhor.
- A alegria da celebração é um sinal de temor a Deus – acudiu Jacinto.

Os três no refeitório que coubera duas dezenas de seminaristas. O convento se esvaziara. Jacinto espreitando a morte. O prior, zelo preguiçoso na desolação. A Osmindo coube o desvelo de si próprio, cumprindo o fado cristão sem os dogmas do prior.

O camponês comia à noite, depois que todos se fartavam. Comia sem dar um pio, sem queixa, sem arroubo. Não sobrasse comida, não teria o sono interrompido por desejos noturnos; cenho franzido, mais fácil urdir tocaias que imaginar petiscos; estômago cheio, maçava-o não saber das precisões da mulher e dos filhos. O homem queria despachar-se dali, a cal das paredes entediava-o.

No banco do cais, Osmindo voltou a conversar com Felipe. Olhando o rio desbastado de água, a vegetação rala na crosta de terra entre um lado e outro do canal. Do outro lado, vozerio impreciso de putas no cabaré chulo. Atrás deles, um tronco de palmeira os escondia do miúdo trânsito na rua. Osmindo, na circunstância, de calça, camisa e alpercatas.
- Hoje mesmo o homem sai do convento – garantiu Felipe.
- Está dando sinais de impaciência. Pergunta pela mulher, pelos filhos. Não sei o que responder.
- Falo com ele. Mas nem tão cedo poderá rever a família. Arriscado demais.

Goyaninha, juncada de alcagüetes, não tinha sob suspeitas as celebrações do Carmo. Às cerimônias religiosas acorriam famílias donas de duas usinas, de engenhos; fé cega de devotos, amém às súplicas de frei Macário, bafo de círios, coro de adolescentes gritando vivas à Virgem, nenhum indício de pregação contra a ordem. Osmindo, com hábito novo, verbo untado de essências, outorgou-se autoridade. O prior o tinha como fruto de sua obra, monitorava-o. Jacinto, senil, riso tênue de alegria.

O camponês saiu à mesma hora em que entrara. O portão foi aberto sem que ninguém notasse. Ele e Felipe desceram a rampa de cascalhos, indiferentes ao bulício em frente ao casario pobre, de mulheres e homens dançando ritmos chinfrins. Osmindo retomou a reza tumultuosa. Já celebrante, sentou-se num dos bancos vizinhos ao altar, os sentidos fixos na luz vermelha do Sagrado Coração. O gordo Macário, custodiando-o da varanda, com terço nos dedos, soprando reza preguiçosa. Comia além da conta, o prior, sem tirar os olhos do prato; purgando-se da gula nas contas do rosário. Osmindo, remanescente de última leva de noviços; objeto da vaidade conventual do prior.

No refeitório.
- Não tem fome, Osmindo?
- Tenho, senhor. Mas estou indisposto.
- Está pálido.
- Não tenho banho de sol ultimamente.
- Está rezando com devoção doentia. De que tem medo?
- De não servir a contento à obra do Senhor.
- Não deve se trancar como um enfermo em seu quarto. Reze nos campos, no pomar, na horta. Terá a fé e a seiva da terra.
- Sim, senhor.

Praça vazia. Duas barracas de apostas em dinheiro entretinham cristãos profanos. Osmindo saiu pela porta da frente, sob o portal de cantaria. Desceu para o cais sob a claridade difusa dos globos. Sentou-se no banco onde falara com Felipe. Apreciou, dali, a coreografia pobre de putas, cafetãos e entusiastas do incerto. Vegetação rala no assoreamento, indício de angustiosa desolação. Para ir ao outro lado, teria que cingir a margem do rio, atravessar a ponte. Não pensou no amor de Davi por Jônatas, moveu-o o desejo de Maria Madalena. Na ponte, olhou para o rio; água tão morta quanto sua alma. Jogar-se dali seria insano, sem experimentar o desvario dos homens a vinte passos. Misturou-se ao miúdo ajuntamento. Um poste com fluorescente deu conta de bordel mais provido.

Entrou. Luz descorada, rostos indistintos, vozerio abafado. O arranjo dos trajos de Osmindo chamou a atenção.
- Não bebo – disse à mulher que lhe ofereceu bebida. - Também não danço.

Entrou no quarto. Luz acesa, janela aberta para o canavial alumiado pela meia-lua. Nua, peitos cambados, barriga saliente, boceta recém-raspada. Nu, sem mover-se, sem tocar a mulher. Nunca vira nudez feminina adulta, só primas impúberes. Foi puxado para um catre rude. Antes que desse um passo, ajoelhou-se, cingindo a prostituta na cintura. Beijou, lambeu-lhe o umbigo, apertou-a contra seu rosto, para juntar-se à impureza da carne sem a angústia do juízo. Ela alisou-o nos cabelos, auxiliando-o a entranhar-se em sua barriga. Ele beijou os lábios da boceta, não imaginara nervura tão mole. Tirou os óculos, olhou para cima, para o rosto feminino. Queria que visse em seus olhos o desespero da indecisão do sexo, que o perdoasse dos anos em que esconjurara as atrocidades da carne. Ouviu um riso idiota, sentiu o meneio cabritino. Ergueu-se, caiu sobre ela em cima da cama; penetrou-a sinistro, ruinoso. Gozou por demorados minutos, suplicando perdão à meretriz tesa sob seu corpo, com os olhos pedrados. Pagou, não quis que lavasse seu pênis para não julgá-la submissa. Vestiu-se e saiu às pressas, tonto, incerto, disposto a cantar o cantochão à meia voz no meio da ponte. Ainda olhou a água barrenta, misturada à calda da usina. Nenhum ódio ao usineiro. O casario pendido por todo comprimento do rio, mulheres em trapos, crianças impaludadas. Nenhum ódio. Odiou-se por não sentir ódio.

Na cela.
- Hoje à noite venha falar comigo, Osmindo – disse-lhe o prior depois de ter batido em sua porta. Ele assentiu com a cabeça sobre o pescoço magro. A julgar pelo desleixo de frei Macário, podia ser o laço em que pretendia enredá-lo; podia ser reparo de rotina, porquanto o prior ainda o julgava no uso de cueiro. Osmindo não perdera a inflexão muda na hora da comunhão. Por que não o chamara na frente de Jacinto, do míope e mouco Jacinto? Esperou, o prior, a lenta digestão para tratar de assunto grave.
- Tem dúvidas de seu ofício, Osmindo?
- Não.
- Fica trêmulo na eucaristia. Não tem fé bastante nos sacramentos?
- Acredito nos sacramentos sem mistérios. São revelações.
- Fala como um gnóstico.
- Acredito na revelação. Por isso Deus está no coração dos homens.
- Mais um idealista na Igreja. A fé não comporta especulação. Deus é verdade absoluta.
- Deus tem presença relativa onde existe dúvida. Quanto mais se revela, mais é verdadeiro. Por isso sou sacerdote para os outros. O que não quer dizer que eu mesmo não tenha que descobri-lo em meu coração. Sou seu agente e sofro sua ação.

Sinos repicaram. Mistério no alumbramento difuso da praça. Uma coruja, na cruz, rasgou piado de agouros.
- Voltamos a conversar – despachou-o o prior.

Controvérsia de rotina. O prior queria assegurar-se do controle sobre mentes, tão de seu feitio nos costumes de prelazia pequena. Embora frouxo nos encadeamentos do raciocínio, temia o incômodo de que suspeitassem o quanto o afligia a probabilidade de ser removido dali, de não ter o gozo da freguesia dócil. Convinha certificar-se de que Osmindo mantinha-se pacato a seu estro de idólatra. Frei Macário aterrava-se à idéia de interromper a sesta de duas horas, a fungação do sono sem pesadelos. Tão pesado na preguiçadeira, não seria difícil prensar os argumentos de Osmindo, esgares de noviço.

Novo encontro com Felipe.
- Estamos sem local para arquivo. O convento é lugar seguro, a sua cela. Ninguém vai se atrever a examinar seus aposentos.
- O prior seria capaz de bisbilhotar na minha ausência.
- Por que não o tem como aliado? Não é nosso inimigo.
- Não é confiável. Desconfia de todos os novatos. Acha que são uma ameaça ao seu priorado. Sem o latifúndio seria a ruína da Igreja, ele diz.
- E você vai se manter por muito tempo sob a autoridade dele?
- Meu compromisso não é com o prior, é com o evangelho.
- Mas lhe deve obediência.
- O povo também deve obediência à autoridade. Quando essa autoridade cair, sobrevirá nova hierarquia. Assim será na Igreja.

Juntou novos papéis a retratos de familiares, na mala sob a cama, onde guardara o pôster de Che. Depois que fora ao bordel, não olhara o pôster. Fervor telúrico na espinha, misto de pregões no juízo. Colou na parede, ao lado do Cristo, o retrato. Semelhanças barrocas nos dois rostos; nenhuma dor, quê de perplexidade.

Abriu a bíblia, sublimou-se no amor transverso entre Davi e Jônatas. Pusera o livro sobre o peito, deitado. Dormiu sem sobressaltos, como não esperava. Acordou no fim de tarde, leveza nos pés, como há meses não sentia. Até o domingo permaneceu assim, sossego frágil, ventura de estimar dois ídolos no conchego da clausura.

Dispensou o jardineiro, para ele mesmo aguar os gerânios. Ali flagrara os noviços nus, na estufa, beijando-se sob o chuveiro. Entrou no lugar, banhou-se absolvendo os moços. Luxúria de onanismo, solteira, pagã, jorrou do incauto falo. Limpou-se com repulsa, empurrando no ralo a luxúria vadia. Abateu-se, jungiu-se à infâmia do gozo na desrazão. Trinta e três anos, desígnios nada cristãos.

No pomar. Segurou a romã para apropriar-se de seus fluidos, da boa sorte da romãzeira. Voltou, rendido a agouros, para o aposento. Tirou da gaveta o rosário, foi para a janela onde bispara a praça vazia. Banhou-se no vento do ocaso, sorvendo a claridade infeliz do crepúsculo entre as árvores. Embutiu de tal modo a dor, que chorou lágrima fina, indecisa.

Sinos repicando enterro, distinguindo privilégio de morte, vago consolo para a alma erradia. Jacinto bateu em seu ombro arriado. Tinha Osmindo, nos olhos, sossego de enfermo, cataléptico. Não se assustou; Jacinto era um anjo de asas desplumadas. Velho, míope, pouco distinguia os pressentimentos dos outros. Sentindo a presença de Osmindo, absorvia urdumes de morte no amigo. Tinha como próxima a sua, e não se deixava prostrar por sinais aziagos dentro ou fora do convento.

Queria morrer dormindo, sussurrando no conforto de oração, como fora toda a vida. Enterrado ali, em gaveta com tampa de mármore, junto de ossos de antigos monges. Frei Macário sabia disso, tinha medo de morrer antes, vítima de gula, de embolia.
- Sinto que meu corpo não tem força para carregar o hábito – confessou a Jacinto.
- Sente dores nas costas, meu amigo?
- Por todo o corpo. A alma também quer se abater.
- Para as dores do corpo, os ungüentos da horta. Para as da alma, a sabedoria da palavra de Deus.
- Meu bom Jacinto, fala com sonoridade de santo. Não sente cansaço?
- Não tenho queixas. Deus soube me fazer demente aos vexames do corpo.
- Demência de santo. Tenho medo de ter a demência dos insanos.
- A demência dos insanos é enfermidade do diabo. Quem sucumbe ao mal, não tem forças para resistir a Satanás! – interveio o prior. Chegara solerte, pisando solerte. Osmindo cobriu-se de incenso, o prior cheirava a incenso.
- Deixe-nos, Jacinto. Quero falar com frei Osmindo.

Contou-lhe que tivera visita de autoridade. O chefe de polícia informara-o que suspeitos andavam em Goyaninha, gente com propósitos de subversão. Prisões no sindicato rural, estudantes conversadeiros. Advertira-o para não deixar que se aproximassem dos moços da paróquia.
- Tem conversado com estranhos?
- Falo com muita gente, não costumo perguntar de onde são. Presumo que são todos daqui, não são estranhos.
- Fique de olho.

Na missa. Frei Jacinto, entre bancos, saco na mão direita, recolhendo óbolos. Donativos eram mais para ele que para o convento. Batina de muitos anos, rosto de cera, instilando remorsos a quem não fizesse doação. Vendo quase nada, distinguindo cada fiel assim mesmo, pela bondade tátil. Afora o saco, rosário no punho do hábito. Não tropeçava... tropeçasse, horror de pena por toda a nave.

Despejou sobre a cômoda na sacristia o dinheiro. Pôs a mão no saco para palpar algum valor esquecido. Tirou cédula com muitas dobras; doação estranha, nunca palpara dinheiro assim; dinheiro de pouco valor, inferior aos outros. Dispôs cada cédula conforme o tamanho da cifra. O ofício reiterado há muito lhe tirara a emoção. Desdobrou o dinheiro de pouco valor; dentro, um papel com manuscrito. Aproximou dos óculos, enxergou e abaixou a mão, desfalecido. Pôs o papel em cima da cômoda. Frei Osmindo cuidou que fosse arte de menino. Leu. “Veado de batina. Sabemos quem é você”.

Livrou-se do casulo, da estola, sem o auxílio do ajudante. Correu para o quarto, sem quietar o assombro de frei Jacinto. Sentado na cama, perplexo, sem acudir-se. O desânimo do Cristo em nada ajudou, a paz de Guevara não instilou ternura. Passou a mão no rosto, na cabeça, enxergou a boceta sem pentelhos da puta. Comoção de carne impura ocupou o olfato, os sentidos indistintos. Felipe, com barba rala no rosto, Che oculto em ramagem de canavial, tramando a depuração das águas barrentas do rio. Tão curta a página de sua história, corpo jazendo na areia, na vegetação rala do meio do rio. Alguém bate. Abre a porta para Jacinto. O velho senta-se na única cadeira, ao lado da janela. Tem o rosário na mão. Sabe que todo aposento tem imagem de Cristo, procura a de Osmindo; vê, apoplético, o rosto de Guevara perfurado de projéteis, sem susto, sem dor.
- Descubro a razão de sua agonia, meu amigo.
- Sim, Jacinto. Sofro a agonia de viver.
- Não há agonia que não tenha fim aos olhos de Cristo.
- Este homem – apontou para o retrato – morreu sem agonia, sentiu a dor sem experimentar agonia. Como Cristo! Semelhante a Cristo!

Levantou-se, puxou Jacinto pelo braço. Ajoelharam-se à frente dos dois ícones, gemendo as contas do rosário. ''Senhor, perdoai a inépcia dos homens!'' Vento frio na janela. A coruja não rasgou piado agourento... Osmindo ouviu-a longe.

O prior não dispensou Jacinto para dizer-lhe que recebera bilhete anônimo Infâmia sem autoria, suspeitas sobre temores de Osmindo. - "... quem é você." Quem é você, Osmindo? Jacinto interrompeu a refeição, pôs a colher na sopa. Caiu com o rosto no prato, sem convulsão. O enterro foi na tarde seguinte. Cortejo escasso; Macário, Osmindo, a cozinheira, o jardineiro, meia dúzia de velhas devotas.
- ... repouso eterno – disse frei Macário, borrifando água benta sobre o caixão.

Osmindo segurando a balde. Réquiem solitário no cemitério. Repique de sinos... remorsos. Os sinos repicaram toda a semana, nos fins de tarde. Desamparo... a morte de Jacinto deixou Osmindo no desamparo. Não tirou da parede o retrato de Che, cujos pecados foram perdoados pela indulgência de Jacinto. Furos no peito dessangrado, vazio dos corredores. O prior rezando para si próprio, cuidando da própria carne.

Felipe teve o arquivo de volta.
- O que vai fazer? – quis saber de Osmindo.
- Reparar minha culpa.
- Não tem culpa de nada. Jacinto estava no fim mesmo.
- Precipitei sua morte, precipitei a morte de um homem santo.
- Espere!
- Adeus.

Viera com o hábito, misturando-se ao povo curioso. Sentara no banco ao lado de Felipe, demente a comentários. De volta ao aposento, não havia fogueira para imolar-se. Cantou o cantochão, sem ouvir batidas na porta. Era o prior.
- Intimação policial, Osmindo! É uma intimação policial!

Tirou da gaveta o cordão grosso.
....................................................
Felipe agradeceu ao prior e saiu.


* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.




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