sábado, 20 de fevereiro de 2010




As cores do arroz novo

* Por Urda Alice Klueger


(Para Roland Klueger, meu pai)

No segundo semestre de 2003 eu passei a ir, todas as semanas, estudar na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Como meu grande amigo o historiador Viegas passou a fazer a mesma coisa, passamos a ir juntos.

Eu me criei num Vale do Itajaí amplamente plantado de cana-de-açúcar, principalmente na região que existe entre Blumenau e Itajaí. De repente, por algum motivo, já não se planta mais cana naquela região – planta-se arroz. E em agosto, quando começamos a ir, o arroz estava nascendo, e se tem uma coisa no mundo que eu sempre achei absolutamente maravilhosa, é a cor do arroz nascente, do arroz crescente, enfim, as diversas gradações de verdes maravilhosos com os quais o arroz se engalana antes de ficar verde bem escuro e começar a amadurecer.

Então, ir para Florianópolis, era uma festa para os meus olhos, com todos aqueles tons de verdes infinitamente maravilhosos pelas beiras das estradas, e na primeira vez, quando me deparei com a primeira arrozeira nascente, entrei em êxtase:
- Viegas, olha que coisa mais LIIIIIIIIIIINDA!
Entediado, Viegas olhou para fora do carro. Seu comentário:
-Isto aí deve estar cheio de mosquitos!

Eu jamais pensara em mosquitos quando pensara na beleza do arroz, e aquilo foi um choque para mim. Pela lógica, com tanta água sob o arroz que nascia, era bem possível que houvesse mosquitos, mas uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Como é que alguém conseguia pensar em mosquitos diante daqueles verdes translúcidos, daqueles tons em esmeralda, daqueles nuances que pareciam feitos pela varinha de condão de uma fada que viera de um planeta distante para encantar este mundo onde eu vivo?
- Viegas, como é que tu podes pensar em mosquitos?
- Mas há outra coisa para se pensar? Olha a barbaridade de água!

Eu sei que Viegas é alguém muito sensível, e jamais esperara aquela reação dele, assim como nunca pudera imaginar a dor que tomou conta do meu peito por causa daquela história de mosquitos, que quebrava a magia das minhas cores do arroz. Penso que brigamos, naquele primeiro dia. E depois, semana após semana, tínhamos uma pequena briga por causa dos mosquitos do Viegas e da minha magia que se perdia, levada pelos mosquitos. Como doía aquilo!

Doeu tanto, que um dia aflorou o real motivo de eu gostar tanto das cores do arroz novo, e de estar tão revoltada por alguém estar quebrando aquela magia. Passaram-se meses; penso que foi lá por novembro que a imagem aflorou. E então foi emocionante demais descobrir, e eu era de novo uma menininha de uns três ou quatro anos, completamente segura nos braços do meu pai, com o rosto encostado no dele, não sei se numa parada de trem ou de ônibus, mas ambos ali na região de Ascurra/SC, a olhar a cor maravilhosa do arroz novo, ele tão encantado quanto eu, a me guiar os olhos para que eu visse. Junto ao peito do meu pai, na segurança que ele me dava, eu recebia, também, a dádiva daquelas cores indizíveis. E com os anos a imagem se apagou, mas ficou a cor do arroz novo a me dizer que havia uma delícia também indizível lá no fundo, lá por detrás daquelas cores que me encantavam, que tudo começara com uma menininha no colo do seu pai que também gostava de ver as cores do arroz.

Quando entendi, eu contei para o Viegas. Eu já disse que ele é muito sensível: ficou todo chateado, todo cheio de culpa por ter quebrado a minha magia, pediu desculpas uma porção de vezes, ainda pede, de vez em quando. Que fazer? Eu o desculpo, claro, mas foi como quando a gente parte um cristal – nunca mais as coisas ficam iguais. Voltaram lembranças que eu tinha esquecido, que estavam lá no mais recôndito do meu cérebro – mas agora elas estão misturadas com mosquitos, irremediáveis mosquitos que o Viegas trouxe para as minhas arrozeiras. Como eu também gosto muito do Viegas, assumi seus mosquitos na maravilha das cores do arroz novo. Será que algum dia voltará a ser como era antes?

* Escritora de Blumenau/SC


2 comentários:

  1. Quando menina, no dia 13 de dezembro, Dia de santa Luzia, a minha mãe me mandava plantar o arroz em latinhas de sardinha, que por seram baixas, eram adequadas a que a plantação se destinaria. No dia 24 de dezembro, ou seja, onze dias depois, o arroz estava com o verde claro intenso, e que você tão bem descreveu, cara Urda, no tamanho e no ponto certo para enfeitar o presépio de papel jornal pintado de "xadrês" preto, formando rochas. No centro a Sagrada Família. Era tão bom! Hoje, para mim não há Jesus, não há Deus. O que será que me aconteceu? Os nossos sonhos se desfizeram, porém o "vilão" foi diferente. Obrigada por me trazer tão gostosas lembranças!

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  2. Uma lembrança puxa a outra. Antônio meu antigo
    professor de psicologia mandou que fechássemos os olhos e pensássemos em algo que nos trazia beleza,
    paz...sabe no que pensei? Num varal comprido cheio
    de lençóis brancos e eu correndo entre eles.
    Ao ser questionada pela lembrança disse-lhes que
    por trás dos lençóis estava a minha mãe sempre
    sorrindo...
    Urda não há mosquitos que atrapalhem essas lembranças...tão lindas e tão nossas.
    Beijos

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