segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010




Três haustos

* Por Daniel Santos

A mesma cama ainda. Foi nela que lançou seu grito primal entre as pernas da mãe e as mãos da parteira. Depois, aquela respiração intensa de quem pretendia vingar, uma respiração forte, quase feroz, de rebento.

Pois a tal cama, ganhou-a como presente de casamento, quando aconteceu pela segunda vez: durante vertigem sobre o corpo da mulher, respirou de novo com dificuldade, agora em gozosa consumição nupcial.

O terceiro hausto ocorreu minutos atrás. Sentara-se à sala com sua velha para o almoço, mas tomou apenas uma colher de sopa. Logo, uma fisgada trespassou-lhe a cabeça. Deitou-se, então, em busca de sossego.

Deitado permanece, enquanto a tonteira começa a lhe tomar os sentidos. Quieto, mãos crispadas sobre o peito arfante, ouve o tilintar de louça na cozinha, onde a esposa lhe prepara o chá do providencial socorro.

Da cozinha ao quarto, a irrespirável eternidade. Tenta chamar pela esposa, mas apenas um suspiro lhe escapa. Agora, voluta sem agonia, se afasta com a fluidez de um sopro, cada vez mais distante da cama.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

4 comentários:

  1. É interessante como certas coisas acompanham
    as nossas vidas nos seguindo como testemunhas
    de nossas alegrias, tristezas e nosso fim.
    Parabéns Daniel pela delicadeza do texto.
    Beijos

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  2. Nascendo e morrendo de forma súbita e sem maiores delongas. Logo tudo acaba. Pena que não ficamos sabendo sobre o durante. Não podemos achar que a parte boa da vida tenha sido apenas aquela "gozosa consumição nupcial". No final, a cama, como objeto presente nas três etapas principais se tornou mais importante do que quem esteve sobre ela.

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  3. Que forma delicada de narrar uma morte repentina.
    Quem no dera assim partíssemos um dia de maneira tão suave. Parabéns por seu texto Daniel, por não conter nem uma palavra a mais, nem uma a menos do que precisava. A morte parece exigir esta concisão.

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  4. Nascimento, amor e morte. Prefiro refletir sobre o tríduo da existência, tão brilhantemente retratado por você, ao tríduo de Momo - que a cada ano a menos nos leva e menos quer dizer...
    Meu abraço e minha admiração, Daniel.

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