segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010




Abram passagem para Carmela

* Por Eduardo Murta

Havia quem pensasse se tratar de uma lenda a mais as histórias de uma tal Carmela, rainha soberana do convencimento. Até ouvirem de sua própria boca, aos 10 anos, nos bancos de escola: ela ainda não conhecia o mar para poupá-lo de se afogar em saudade quando partisse. Ah, bom... Incensava a empáfia na recusa em pedir bênção às tias, mesmo as de bengala, porque julgava que deveriam todas caminhar em sua direção. Daí foi um passo para acreditar que a lua mudava suas formas tão somente para encantá-la. E que nem pai, nem mãe, ninguém, deveria convencer-lhe do contrário em nenhum assunto. Um senão soava como ofensa grave. E ai dos que caíssem em seu caderninho de ingratidões. Fizera picadinho do vestido da irmã mais velha só à menção de que engordara. E libertara um a um os canários do padrinho, ao risco de ter que dividir o colo com a caçula, agora também apadrinhada.

Se invernou em teatro de febres, mendigando atenção exclusiva e exigindo provas singulares de que era a mais querida. Buquês matinais de gerânios, declarações em série a elegendo como única e insubstituível. Mais: a leitura de contos da carochinha em que fosse escalada no papel de princesa. E como punha crença naquilo. A empregada da fazenda vivendo como mucama, lhe adoçando o leite, afastando mosquitos, arqueando a sombrinha, a que o sol não a perturbasse.

E à iniciativa da meninada do lugar em lhe dividir amizade, instituía torneios de cuspe a distância, disputas em queda de braço, disparos de estilingue e as donas das bonecas mais empetecadas para as vagas limitadas. E estabelecia, quanto aos meninos, que rejeitaria secamente se neles enxergasse feiura. Contam que exagerou, ao ditar duelo a dois pretendentes. Com direito a contagem regressiva e uma só bala. Morreriam ambos.

Foi ali que a gente do lugarejo achou que era hora para um basta. Os pais concordando e, Carmela aos 11 anos, talvez clausura em colégio de freiras fosse o ideal. Ou, quem sabe, casamento de encomenda. Difícil, julgava o fazendeirão, seria elencar alguém bom o bastante, a que fosse digno de empenhar alianças.

Um mês de angústia, a menina caramujeando tristeza, eis que uma saída salta assim, ao acaso. Morador novo. Se apresentara como comerciante e desfilava em limusine da padaria ao açougue, dali ao mercadinho, deste à igreja. E quem trazia a tiracolo? Filhinho empombado. Adolescente em roupas de tirar onda, e um histórico peculiar: o de bravura. Se encaixava no perfil. Aos 15 anos, colhera bigodes de onça para transformá-los em espanador na tão falada mansão de praia dos pais.

E alardeava que matara, ele mesmo, coleção de cascavéis só para converter os chocalhos em troféus de coragem. Um colar completava o pedigree de valentão: unhas de lobo e dentes de urso que contava ter trazido de caçadas nos bosques da América. Par ideal para Carmela. Ela concordando, porque o via um degrau acima dos mortais e, melhor, com berço também banhado a ouro.

Casamento marcado, veio partilha lavrada em cartório. O noivo ficando com o equivalente a 6 mil cabeças de gado – as notas abarrotando o porta-malas – e ofertando terreno vasto em faixa litorânea. O casal partiu, e a menina farejou fragmentos de tragédia logo no começo da viagem, com a pane no ar-condicionado do carrão. Pior ainda quando, na cidade à frente, deixaram o veículo numa locadora e embarcaram num Opalão que rangia a sinfonias. Tarde demais.

Mirou o sogro. Ele sorriu. Credo! Notou as dentaduras! E o marido, maldito fosse, ao calor infernal, já se desfizera dos apliques que tornavam seu cabelo liso e atraente, assumindo a forma ressecada que lhe era original. Daí não se espantou com a tapera no meio do nada em que a alojaram. Traída. Ou com os bodes dos quais deveria tratar ou a roupa para lavar no tanque. Humilhada. Só a imagem do mar, ao longe, a inspirava. Sonhando um dia, agora humildemente, ao menos com seu perdão.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

3 comentários:

  1. Ela era tão senhora de si, tão egocêntrica
    ao apenas tentar se enxergar nos olhos dos
    outros, que ouso dizer que não lamento o
    seu final.
    Ótimo texto Eduardo.
    Beijos

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  2. Crueldade. Não era preciso tanto. Pobre menina. Com os seus maus bofes e comportamento genioso, ali não ficará. Muito em breve vai ao mar, que depois da partida, dela sentirá saudade. Adorei a construção da personagem. Perfeito!

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  3. Genial,Murta
    Onde você foi buscar tanta imaginação? Adorei!Conheço gente que chega bem perto dessa Carmela...

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