sábado, 27 de fevereiro de 2010




O futuro da utopia

* Por Richard Rorty

Boa parte das discussões atuais em torno do futuro consiste em projeções das tendências tecnológicas atuais. Dizem-nos que teremos computadores mais inteligentes, mais velozes e mais baratos, novos tratamentos médicos (como a terapia genética) que poderão prolongar nossas vidas, mais aviões supersônicos, telas de TV mais nítidas e mis finas. Dar ouvidos a tais projeções significa limitar nosso campo de visão à fração da população mundial que já vive com conforto. Mas a maioria das pessoas que vai nascer no próximo século nunca vai chegar a usar um computador, receber tratamento médico num hospital ou viajar de avião. Essas pessoas terão sorte se aprenderem a usar lápis e papel e mais sorte ainda se forem tratadas com algum medicamento mais caro do que uma aspirina.


O mais assustador do futuro humano é que não existem projeções convincentes de aumento geral no nível da igualdade humana. Ninguém até agora escreveu um roteiro plausível no qual, no ano 2100, uma criança nascida na Bahia ou em Kinshasa (Congo) terá as mesmas oportunidades na vida que uma criança nascida em Munique ou San Francisco. Ninguém prevê um dia que todas essas crianças terão igual acesso a computadores na escola. Ninguém, também, imagina que alguém que vive na zona rural do Zimbabwe e tem Aids vá ter acesso ao mesmo tratamento médico de um engenheiro de Helsinque (Finlândia) acometido da mesma doença.
Os únicos cenários socioeconômicos otimistas existentes no mercado são aqueles que se limitam a levar em conta as partes mais confortáveis do mundo, aquelas que já se beneficiam de mais sorte. O melhor que qualquer pessoa pode prever para o próximo século é um nível um pouco mais alto de igualdade no interior dos países industrializados individuais. Talvez, por exemplo, o contraste entre as expectativas de vida e as oportunidades de vida das crianças nascidas nos subúrbios de classe média e nos guetos dos EUA ou, na China, o contraste entre as expectativas do filho de um burocrata de Pequim e as do filho de um camponês que vive na fronteira da Mongólia não sejam tão chocantes quanto são hoje.

Quando o assunto é o progresso – o avanço na realização dos sonhos utópicos de um mundo igualitário, sem classes sociais e sem castas, no qual todas as crianças tenham as mesmas oportunidades – o melhor que podemos esperar do próximo século, com algum nível de expectativa de que se realize, é que esses sonhos continuem a existir. O máximo que podemos esperar é que esses sonhos motivem nossos bisnetos a buscar algum tipo de ação política, tanto quanto motivam a nós, hoje. O pior futuro que eu consigo imaginar para a raça humana é um futuro destituído de tais sonhos. Excluindo a extinção total, nada pior do que isso poderia nos acontecer. Isso porque, deixando de lado a idéia de que o sofrimento humano faz parte do “plano divino”, esses sonhos são a única coisa capaz de tornar suportáveis os horrores do século que se passou e os horrores previsíveis do próximo século.

Comparadas à morte desses sonhos utópicos, as catástrofes mais concretas que podem muito bem estar no programa das próximas décadas exerceriam efeitos apenas transitórios. Entre elas figuram a aniquilação recíproca de Israel e do Iraque ou da Coréia do Norte e da Coréia do Sul; genocídios no Cáucaso ou no Congo; a incineração nuclear de cidades selecionadas da Europa e América do Norte, por ordem de algum possível sucessor lunático do general Lebed; a devastação progressiva das populações da África Central e do Sudeste Asiático, graças à Aids pandêmica, e o derretimento das calotas de gelo polares, provocado pelo aquecimento global e resultando em inundações de Londres e Hamburgo, Nova York e Sydney, Xangai e Durban.
A raça humana recuperou-se da peste negra e da Guerra dos Cem Anos, de Átila e Napoleão, do nazismo e dos bolcheviques. Comparados ao progresso inconstante, porém real, em direção à liberdade, igualdade e fraternidade ao qual estamos assistindo desde a Revolução Francesa, esses horrores não têm importância histórica mundial.

Assim como a Europa recuperou-se da Segunda Guerra Mundial graças às esperanças que os vencedores compartilharam com os derrotados, a raça humana pode recuperar-se de qualquer desastre como esse, desde que conserve intactas suas esperanças. Essa esperança é inseparável da fé na capacidade dos seres humanos de cooperarem para determinar seu próprio futuro, em lugar de permanecerem na condição de joguetes do destino ou de vítimas dos “planos divinos”.
Conservar essa autoconfiança significa preservar a transformação mais importante que já teve lugaar na história humana: a gradativa disseminação da convicção de que não existem obstáculos à fraternidade humana, exceto nossa própria falta de disposição em fazer o que é preciso para conquista-la. Essa fé vem progredindo constantemente ao longo dos dois últimos séculos. É sua adoção que torna possível a esperança social utópica – a esperança de que vai chegar um tempo em que cada um de nossos descendentes será um cidadão orgulhoso e feliz de uma comunidade global e cooperativa de nações, na qual nenhuma criança será fadada a sentir inveja impotente da comida, das roupas ou do ensino aos quais outra criança tem acesso. É a versão secularizada d esperança cristã de que todos os homens podem viver como irmãos: de que nossa comunidade moral – as pessoas para quem nos dispomos a fazer sacrifícios – se torne coextensiva à nossa espécie biológica.

Uma sucessão de catástrofes do tipo que mencionei acima poderia nos fazer retroceder para onde estávamos antes do século XVIII: em um mundo no qual todos, menos alguns poucos excêntricos, acreditam que sempre haverá pobres, que a miséria e a infelicidade humana só terminam com a morte e que a única esperança à qual tem direito a maioria dos humanos é a vida após a morte. Ela nos faria retroceder para um mundo no qual a maioria das pessoas concorda com a visão budista: a de que este mundo – o mundo do amor e da esperança, do planejamento e da política – é um mundo de que precisamos fugir, um mundo ao qual o nada é preferível.

No atual momento, os habitantes do Primeiro Mundo estão divididos mais ou menos igualmente entre aqueles que pensam que este mundo nunca chegará a ser muito melhor do que é hoje e aqueles que compartilham a esperança utópica que descrevi acima. No Terceiro Mundo a proporção provavelmente chega mais perto de nove para um. Nessas partes do mundo é muito mais fácil imaginar uma vida após a morte que seja melhor do que a vida atual do que imaginar que as transformações socioeconômicas que tornarão suportável a vida na terra irão realmente acontecer.

Se procurarmos, entre os escritores do último século, os exponentes mais eficazes e mais lidos dessa esperança utópica, os encontraremos entre a primeira geração de escritores de ficção científica. Esse gênero atingiu a maturidade nas décadas de 30 e 40 e, para muitas pessoas no Ocidente, cumpriu a função que as projeções marxistas de um futuro comunista havia cumprido em outros momentos. Esses escritores proporcionaram à minha geração uma visão de um futuro no qual haviam sido alcançadas tanto a justiça social quanto a paz mundial – um mundo no qual o racismo ficou para trás e no qual, como as regiões de cada planeta, os planetas da galáxia estão unidos em uma série de repúblicas federais.

Foi a época de ouro da ficção científica. Nas últimas décadas, porém, os escritores de ficção científica passaram a especializar-se naquilo que Kingsley Amis qualifica como “novos mapas do inferno”. Inventaram distopias cada vez mais cruéis e horríveis – tiranias duradouras, invulneráveis devido ao monopólio tecnológico desfrutado por seus governos. Atualmente, o exemplo mais familiar que temos de distopia em ficção científica é o “império” dos filmes da série “Guerra nas Estrelas”, e o exemplo mais familiar que temos de utopia é a igualitária federação galáctica que Luke Skywalker e seus amigos vão estabelecer e governar, quando alcançarem essa vitória.

É possível que a esperança social tenha atingido seu ápice no Ocidente no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Para os americanos que, como eu, alcançaram a consciência política naquela época e passaram boa parte de sua adolescência lendo autores como Joseph Campbell, Isaac Asimov, Arthur Clarcke, Robert Heinlein e A E. van Vogt, parecia ser inteiramente plausível que o mundo utópico visualizado por esses escritores se tornasse realidade até o ano 2000. A todos nós parecia evidente que tudo que era preciso para acabar com as guerras e o genocídio para sempre era a transformação da ONU numa Federação Mundial real, que detivesse o monopólio das armas nucleares e fosse dotada de uma força policial sobrenatural, capaz de “intervir nos assuntos internos” dos países de modo a cortar lunáticos como Hitler e Stálin pela raiz. Supúnhamos que, quando o século chegasse ao fim, teríamos um mundo no qual tiranos cruéis, polícias secretas e guerras agressivas já teriam deixado de existir.
Também dávamos como certo que os governos de todos os países não tardariam a se dar conta de que era preciso fazer o que alguns poucos países (em sua maioria pequenos e escandinavos) já tinham começado a fazer: estender a proteção do Estado aos subinstruídos, subempregados, subalimentados e vítimas de preconceitos. Eles igualizariam as oportunidades de vida das crianças. Resumindo: partíamos da premissa de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade já estavam à vista. Nos comprazíamos especialmente com o fato de que, em todas as melhores utopias criadas pela ficção científica, tanto o presidente mundial quanto o primeiro almirante da frota de guerra galáctica eram mulheres asiáticas ou européias, em lugar de homens europeus. Os escritores de ficção científica nos apresentavam as instituições de uma sociedade verdadeiramente justa de maneira tão vívida e plausível que nos parecia impossível que elas pudessem ser adiadas por muito tempo.

Se algum dia conseguirmos concretizar uma utopia desse tipo, a ficção científica da metade do século XX será vista como leitura profética. As histórias de Campbell, Asimov e outros como eles serão vistas pelos futuros historiadores intelectuais como os escritos que ajudaram a consolidar uma transformação histórica mundial na percepção que a humanidade tinha de suas próprias possibilidades. É possível, porém, que os mesmos historiadores fiquem perplexos diante de um outro conjunto de documentos legados pelo século XX: os escritos de intelectuais que compartilham o desprezo de Nietzsche pelos “últimos homens”. Pois, nas últimas décadas do século, muitos intelectuais estiveram ocupados em explicar que as esperanças utópicas de Mill, Marx e Dewey estão obsoletas. Segundo eles, já ingressamos na etapa “pós-moderna” do desenvolvimento da humanidade.

O desprezo de Nietzsche pelas visões utópicas de John Stuart Mill era intenso, assim como o era o de Strauss, Heidegger, Schmitt e muitos outros que se deixaram persuadir pela sugestão feita por Nietzsche, segundo a qual “O Utilitarismo” e “A Liberdade”, de Mill, são, como a mensagem cristã de fraternidade humana que esses ensaios representam em termos seculares, exemplos de uma conspiração tecida pelos sacerdotes ascéticos contra aqueles que podem dar à luz estrelas dançantes. Minha sugestão é que enxerguemos os próprios Strauss, Heidegger e Schmitt como integrantes de um clero ascético de intelectuais esnobes, movidos pelo mesmo ressentimento do qual Nietzsche desejou em vão se libertar.

Muitos intelectuais contemporâneos pensam na política social democrata à moda antiga, o tipo de política para a qual os ensaios de John Stuart Mill constituem textos sagrados, como algo que já se tornou obsoleto. Alguns acham que ela se tornou obsoleta por causa de Auschwitz. Outros pensam que não se pode ter esse tipo de política depois de compreender que Descartes se enganou com respeito à subjetividade, Kant, em relação aa racionalidade, e os filósofos gregos, em relação a sua crença na metafísica da presença. Mas essas são péssimas razões para acreditar que a liberdade, igualdade e fraternidade estejam superadas.

Em relação à possibilidade ou impossibilidade de uma utopia social-democrata, Auschwitz não prova nada além do que provaram os séculos de escravidão negra indizivelmente cruel. A filosofia pós-darwiniana realmente tornou obsoletos o “espiritualismo” platônico, o dualismo cartesiano e o transcendentalismo kantiano. Mas esse fato não possui qualquer relevância para a política. Os sonhos de igualdade humana não exigem fundamentação de filósofos e podem sobreviver sem qualquer modificação concebível na opinião relativa a tópicos metafísicos ou epistemológicos.

A razão oferecida pelos intelectuais contemporâneos para considerar superados esses sonhos carece a tal ponto de fundamento que me vejo indagando qual será a verdadeira origem da atração exercida pela desesperança sobre esses sacerdotes ascéticos. A única resposta que me vem à mente é que eles compartilham a convicção de Nietzsche de que o tédio é a pior coisa que pode nos acontecer. Eles percebem, corretamente, que todos os futuros felizes, assim como todas as utopias felizes dos primeiros escritores de ficção científica, são mais ou menos iguais, enquanto cada distopia é infernal de maneira interessantemente diferente.

Mas, como fez Nietzsche, eles confundem as exigências da arte com as da política. Se a arte for enfadonha, ela morre, para que possa sobreviver, ela precisa ser inovadora e, ocasionalmente, grandiosa. A política social-democrata não precisa de nenhuma dessas duas qualidades. Hoje temos, na esfera intelectual, um análogo da “estetização da política” promovida pelos nazistas: a estetização da teoria política e social. A popularidade alcançada em círculos intelectuais pelos profetas da desesperança, como Foucault e Lacan, é análoga à popularidade que desfrutam entre os cinéfilos os relatos cada vez mais aterradores de o que nos aguarda no espaço sideral.
Só posso esperar que, cedo ou tarde, esses intelectuais comecem a ler menos Nietzsche e mais Mill – que eles parem de imaginar versões cada vez mais sofisticadas de desesperança e comecem a reivindicar as reformas políticas enfadonhas, antiquadas, banais e já nossas velhas conhecidas, que seriam capazes de nos aproximar um pouco mais da utopia. Os futurólogos tecnologicamente orientados e os neonietzscheanos são igualmente irrelevantes para o único projeto que realmente importa: manter viva a esperança de que, cedo ou tarde, todas as crianças humanas venham a ter as mesmas oportunidades na vida.

* Filósofo norte-americano, autor, entre outros, de “A Filosofia e o Espelho da Natureza” e “Escritos Filosóficos” (Relume-Dsumará). Ensaio, traduzido por Clara Allain, publicado no caderno Mais! Do jornal Folha de S. Paulo em 4 de abril de 1999.


Um comentário:

  1. Independente de teorias bem argumentadas
    e vaticínios dos intelectuais, continuarei
    tecendo sonhos e tendo a esperança de um futuro
    melhor para todos.

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