terça-feira, 16 de fevereiro de 2010




Fragmentos da história de uma mulher guerreira

* Por Risomar Fasanaro

Coloquei o livro “Clarice” sobre a mesa, e junto com Lídia e Vera, em silêncio, fiquei escutando a história de Aparecida, mãe de Dina. Estávamos em uma casa na praia sem aparelho de som, sem tevê, sem computador. Era como voltar aos anos em que as pessoas conversavam, tomavam refeições juntas. Luxo a que hoje poucos se dão. Dina começou a nos contar a historia de sua mãe, que tento aqui transcrever:

Pitica, como carinhosamente a família a chamava, nasceu em Siqueira Campos, em 1917, uma fria cidade do Paraná. Naquela época seu pai, avô de minha amiga, chegava muito bêbado em casa, à noite, depois do trabalho. Por causa de herança ele havia rompido com a família, no Rio Grande do Sul.

Coincidentemente, a família de sua mãe também já tinha “fugido” de várias cidades, sempre rechaçada pelos padres locais, porque sua avó era médium auditiva, e dizia que os espíritos sopravam em seu ouvidos receitas preparadas com ervas e chás, que deveria indicar aos doentes. Era uma maneira de tratar os “pobres e desvalidos” cujo acesso à medicina tradicional naquela época era bem mais difícil aos carentes do que é hoje.

O rompimento com a família tornara o avô de Dina um homem deprimido que se tornou alcoólatra. Violento, ele batia em todos, então, a avó pegava os filhos e jogava-os pela janela, para protegê-los da ira paterna. Eles ficavam muitas vezes a noite toda encarapitados nas árvores do quintal da casa, em pleno frio da madrugada.

Passagens como essa marcam uma criança para o resto de sua vida, e com Pitica não foi diferente. Para uma menina sensível como ela era, aquela situação a deixava muito triste.

Mas aquela menina que gostava de ler, muito cedo se deu conta de que não poderia se deixar abater, que precisava encontrar uma saída, pois dependia dela, e somente dela o seu futuro.

Com uns doze anos e já com o 4º ano primário, foi procurar emprego, e conseguiu um no Clube Lítero-Musical da cidade. Foi sua grande oportunidade, e tornou-se uma leitora voraz. No futuro, dois filhos dela receberam nomes de romances que leu: Walkíria inspirado no romance “O fim de uma Valquíria” e Eudes em “O Conde Eudes”. Ela nunca foi capaz de lembrar os nomes dos autores dos mesmos...

Vivendo em um mundo rural, seu trabalho naquele espaço de cultura também a marcaria para sempre.

Aparecida além de ser uma morena muito bonita, chamava atenção pelo seu jeito delicado de atender as pessoas. Foi assim que quando estava com 13 para 14 anos, impressionou um fino cavalheiro, dono de fazenda de café, em Ourinhos, São Paulo. Ele estava na cidade a negócio, e como também gostava de ler, foi ao Clube, em busca de um livro, para ler enquanto estivesse na cidade.

Solteiro, aquele homem, com 34 anos, apaixonou-se perdidamente pela mocinha de olhos grandes e cabelos macios e negros que lhe indicava possíveis leituras.

Ela não se apaixonou, mas lhe chamou atenção a gentileza e os costumes finos daquele homem. Vislumbrou ali uma oportunidade de melhorar sua vida e a de seus pais, na época já bem velhinhos e cansados da pobreza.

Minha amiga se emociona, ao nos relatar a história da mãe: “Muito verdadeira, ela nos contava ter dito claramente ao pretendente suas intenções, e ele não só aceitou sua explicação, como disse ter certeza de que ela o amaria um dia; o que de fato aconteceu, quando casaram e conviveram por dez anos”.

Só quando as filhas já eram adultas é que Aparecida lhes contou sua história, pois antes aquele casamento por conveniência, tinha sido uma espécie de vergonha para a família dela.

É ainda Dina que nos conta: “Ela dizia que a sensibilidade daquele homem, sua ética, seu empenho no trabalho, sua humanidade em relação aos empregados da fazenda conquistaram-na definitivamente e mais: era um excelente amante na cama. Mas, era um ‘homem estéril’, por isso não tiveram filhos e minha mãe pôde, com tranqüilidade, cuidar de seus pais, já em idade avançada, porque foram morar com ela na fazenda e tiveram o final de vida, ao lado da filha com uma posição social e financeira bem estabilizada na época. O pai parou de beber e minha avó passava o dia fazendo crochê para a família toda. Foram dez anos de muita felicidade. O marido dela gostava de política e na Revolução de 30 esconderam armas na fazenda para o movimento contra Getúlio. Ele se correspondia com políticos da época e era minha mãe quem escrevia as cartas a pedido dele. A política também sempre foi um assunto de muito interesse de minha mãe. Ela votou no Lula, antes de falecer... Adorava o metalúrgico e sindicalista que depois se tornou presidente!”

“Mas, o destino ainda havia reservado àquela mulher guerreira uma batalha. Após a queda da Bolsa de Valores, em Nova York, ou seja, a grande crise de 1929, o café entrou em colapso no Brasil e alguns anos depois, seu marido foi à falência e de desgosto, teve um enfarto e morreu. Àquela altura os pais dela já tinham morrido’.

“Ela, viúva, e sem nenhum bem foi ser cozinheira no Grande Hotel da cidade de Ourinhos, Estado de São Paulo. Seus dotes culinários, sempre elogiados por todos, serviram para seu sustento em tempo de crise. Com 24 anos, voltava a ser pobre como nos anos anteriores ao casamento”.
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“Um dia, chegou a Ourinhos um time de futebol de Catanduva, município do interior de São Paulo, para jogar contra o time da cidade. Os jogadores se hospedaram no Grande Hotel, e logo aquela cozinheira bonita e um dos jogadores que se chamava Alfredo trocaram olhares. E depois de muitas idas do time à cidade começaram a namorar. As cartas de amor que ela e meu pai trocavam foram lidas por nós, mais tarde, com bastante empolgação”.

“O namoro resultou em gravidez, mas por orgulho ela não contou a ele. Não queria que o rapaz ficasse com ela apenas por causa do filho.... Minha mãe foi escondendo o fato de meu pai que deixou de ir à cidade por algum tempo. Meu irmão mais velho, Eudes, nasceu e ela dizia a todos que ele era filho de seu marido. Mas quem fizesse as contas, saberia que aquilo não era possível. Foi a forma de ela lidar com o preconceito de viúva, com um filho fora do casamento...”

“Quando meu irmão nasceu, ela continuava cozinheira no hotel e, ao mesmo tempo, cuidava dele. Esta cena dela cozinhando e dele, no cadeirão ao lado dela ou no chão da cozinha, brincando, sempre me tocou profundamente. Pela dignidade dela e pelo sofrimento da solidão”.

“Um dia, meu pai voltou à cidade e deu de cara com a cena: minha mãe e meu irmão no hotel. E como ele era a cara do meu pai, tudo se revelou. Imediatamente ele, muito feliz, pois nunca tinha deixado de pensar nela, quis se casar. E assim começaram uma vida em comum na cidade. Meu pai, não mais jogador de futebol, mas um excelente alfaiate”.

“Em Ourinhos nasceu minha irmã Maria Marcília, e o espírito aventureiro de minha mãe fez com que mudassem para Apucarana, no Paraná. Lá nasceram Walquíria e Romeu. Depois, voltaram para Ourinhos, e eu nasci”.

“Quando eu tinha nove anos, o espírito inquieto de minha mãe e as mudanças que a industrialização estava operando no país nos empurraram para a cidade grande. Meu pai viveu, profissionalmente, o que Saramago trata em seu livro ‘A caverna’ sobre a mudança do artesão para o operário. Em Ourinhos, ele tinha uma alfaiataria, em um dos cômodos da nossa casa, portanto era artesão e dono do negócio. Em Osasco, passou a trabalhar em uma grande alfaiataria de Pinheiros; uma pequena indústria que, na verdade, fazia um ‘prêt-a-porter’ da época”.

“Muita água passou por aquele moinho e minha mãe desenvolveu o que hoje chamamos de ‘transtorno bipolar’, mas que já tinha sido batizado de ‘psicose maníaco-depressiva’. Durante boa parte de nossas vidas, nós, seus filhos, vivemos a bipolaridade de sua mente e comportamento, mas também, pudemos viver, com ela, a mulher guerreira, forte, além do seu tempo”.

“Sempre dizia a nós, suas três filhas, que era necessário termos uma carreira profissional porque ‘casamento não era profissão’. Realidade que ela viveu na pele. Além de ecologista, ela prezava a música, teatro, literatura, e religião; e sempre foi muito solidária com os outros. Mesmo em suas piores crises, tinha energia para ajudar o próximo”.

“Um ano antes de morrer, apaixonou-se por uma voz masculina que ligou para sua casa, por engano. Houve uma breve conversa e passaram a se falar todos os dias. Aquele relacionamento por telefone durou pouco tempo. Ela nos dizia que aquela voz encheu sua vida de alegria e renovação. Contava que quando o telefone tocava, ela ia como uma adolescente, atender com o coração aos saltos”.

“Quando ele quis conhecê-la, ela se recusou porque se dizia uma velha avó e não queria contato. Mudou o número de telefone e a paixão foi cedendo, com sofrimento. Ela nos contou, e não permitiu que disséssemos para os filhos homens, pois tinha vergonha”.

“Este fato demonstra que ela ainda estava plena de vida, mesmo quando se considerava velha. Estava com 68 anos quando morreu de enfisema pulmonar e fumou até os últimos minutos no hospital”.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.




3 comentários:

  1. Sem palavras Risomar.
    Aliás, uma só palavra: emoção.
    Parabéns!
    Beijos

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  2. Acabo apaixonada pela história dessas mulheres que nos abriram caminho, como já disse na outra parte do texto. Teve algumas passagens semelhantes a vida da minha mãe, e morreu com a mesma idade. So posso admirar a maneira como nos trouxe a vida da mãe dessa amiga, Risomar.

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  3. Amei essa mulher vigorosa, terna, corajosa...tudo de bom! Maravilhoso texto, Risomar! Parabéns!Bjos!

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