sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010




Conversa com um tradutor

* Por Urariano Mota

Por email, há poucos meses, tive uma conversa fecunda com um tradutor profissional, homem de cultura e sensibilidade literária. Foi uma conversa tão rica, que considero um crime guardá-la somente para mim. Como não lhe pedi licença para publicação, retiro de nossa correspondência os dados identificadores.

Tudo começou com um texto que apresentei a ele, morrendo de medo, sobre uma crítica que fiz a duas traduções de Machado de Assis para o espanhol. Ao que ele me respondeu:

“Aquele tradutor ideal de que você fala é, de fato, o norte a orientar, ou que deveria orientar, todo tradutor real, de carne e osso. A identificação com o ambiente do Autor é um dos problemas maiores: não só conhecer a língua a contento, mas também o ambiente, os usos, o peso específico das palavras ou expressões... Como vivi um bom tempo na França, frequentando franceses de todas as classes, adquiri um razoável conhecimento desse peso das expressões. Há casos em que uma expressão francesa é das que se encontram, por assim dizer, com naturalidade na boca de um taxista, enquanto a mesmíssima expressão aqui soaria de um pedantismo elitista de doer: jamais um taxista falaria assim. Temos de achar um equivalente. Mas nem sempre o tradutor pode ter essa vivência. É um mal para o qual não tem grande remédio. Afinal, não se pode exigir de todo tradutor que faça como uma conhecida minha, mulher de banqueiro, que traduziu os Papéis de Aspern: acompanhou o texto de todos os lugares em que se desenrolava: hospedou-se em Veneza em frente à casa onde estava o personagem, etc. Com o que ganharia pela tradução não pagaria nem o bilhete de avião, que dirá a hospedagem.

Traduzir enfrenta muitos problemas. O tradutor nem sempre viveu ou morou nos lugares onde corre uma narração. Em muitos países da América Latina, nem os espanhóis captam todo o sentido e nuances. Por um desses acasos, encontrei uma pessoa que foi amiga de um autor que traduzi. Sem ela, não sei como teria podido traduzir uma montanha de regionalismos. Se não tivesse tido essa sorte, teria de ter posto em português na base da intuição, do faro.

Enfim, a tradução é sempre uma aproximação, que traz as lacunas linguísticas e culturais do tradutor, seus entendimentos falhos, às vezes mesmo sua não identificação com o autor: não gostar muito de um romance, você não sabe como atrapalha a tradução. E no entanto a gente tem de traduzir gostando ou não!

Fiquei devendo o meu palpite sobre a questão do espanhol. Sobre o ler, não sei te dizer. Chutaria que deve haver um empate nas dificuldades e facilidades de ambos os lados. Sobre o falar, não. Ganhamos.

Não encontrei na estante o livro do prof. Alfred Tomatis, que li na década de 70, “L'oreille et le langage”. Devo ter emprestado para alguém que não devolveu. Tomatis era um médico da área fono. Estudou as questões da audição e, com base em suas descobertas, bolou um método de ensino de línguas, que o deixou rico. Vou ter de chutar os dados técnicos, já que não acho o livro. Mas a teoria dele é mais ou menos assim. Falar é reproduzir o que v. ouve. O ouvido é treinado pelo seu ambiente linguístico. A experiência empírica mostrava a ele que certos povos (= gente de certas línguas) tinham maior facilidade para aprender línguas que outros. Dois deles em particular: um, os russos. O outro, adivinhe? Pois é, nós, brasileiros!
Foi estudar a coisa e descobriu o seguinte. Cada língua tem um determinado espectro sonoro. Quanto mais amplo o espectro, maior a facilidade. Em Hz (ou microherz, sei lá), o espectro sonoro das línguas ocidentais ia de – chuto de cabeça – 100 a 6.500. Nesse espectro, o inglês vai, digamos, de 200 a 700. O francês, sempre chutando, de 600 a 1200. Daí por que os ingleses têm dificuldade de falar francês e vice-versa: a faixa de sons comuns é muito pequena. Os espanhóis, sempre chutando, têm um espectro entre 500 a 1000. Nós, brasileiros, vamos de algo como 300 a uns 5.000. Os russos, vão de 100 e poucos ou 200 a uns 6.000: quase todo o espectro! Daí porque temos maior facilidade para falar espanhol do que os hispânicos a nossa língua: cobrimos todo o espectro deles (ou quase todo, se me engano nos números), mas eles só uma parte do nosso. O português de Portugal também tem um espectro pequeno, se bem me lembro parecido com o do espanhol.

Se procurar por Alfred Tomatis no Google, tem vários links sobre ele, seu método e suas escolas”.

Ao que eu respondi:
“Os seus comentários, vindos da própria experiência, são muito bons, e pertinentes. Digo mais: você deveria ‘socializá-los’, transformá-los em mensagem coletiva. Para ter um ‘gancho’ (essa coisa estúpida de imprensa), você poderia partir da sua experiência com o autor em que você é especialista, porque é um nome que está na onda e na crista da onda agora.

Não sei se você conhece um livro de Paulo Rónai sobre tradução (Tradução Vivida, se não me engano – estou com preguiça de ir no Google, mas eu tenho o livro em casa). Recomendo. Paulo Rónai, você sabe, era húngaro e veio para o Brasil na época da 2a. Guerra (o Brasil, durante a Guerra, se beneficiou da presença de muitos intelectuais nesse tempo – Otto Maria foi um deles). E Rónai fez a magnífica tradução da Comédia Humana, edição da Globo. Pois bem, tem um momento do livro que ‘bate’ na medida certa com tuas observações. Paulo lia romances brasileiros em Budapeste e nunca entendeu como era que no morro existiam miseráveis. Inexplicável isso, para a realidade europeia. Na Europa, os castelos, as melhores casas ficavam no alto. Como era possível que miseráveis habitassem em lugar de castelos? Pois bem, foi só com a chegada dele ao Rio que ele pôde compreender: só então Paulo Rónai viu e sentiu as favelas lá no alto do morro.

Essa conversa não tem fim. Melhor continuá-la quando você vier ao Recife.

Mais uma. Olhe por favor uma afoiteza, uma insensatez absoluta que fiz, ao criticar uma tradução clássica de Dom Quixote para o português. Está aqui http://www.lainsignia.org/2005/junio/cul_015.htm

Fui. Espero os seus ensinamentos sobre essa loucura que cometi”.

Ao que o amigo tradutor, modesto e generoso, respondeu:

“Coitado do colega, rolou mais que o Quixote e o Rocinante! Você o desmantelou. Fico imaginando o que vai sobrar das minhas modestas traduções se passassem por seu crivo. Ainda bem que o meu autor não é o Quixote!

Aliás, se minha memória não me trai, o colega tradutor, na cena do moinho, baseou-se também na gravura do Doré, que apresenta o fidalgo pendurado com corcel e tudo na ponta de sua lança espetada na pá ou asa do moinho. Na gravura, a asa tanto pode ter sido flagrada dando um tapa no cavaleiro, como pode parecer, dependendo do olho (e da leitura do texto!), estar girando e erguendo ginete e montaria pelos ares. Vá saber, de resto, o que o tradutor francês pôs no texto que o Doré ilustrou.

Mas me diverti um bocado com as suas críticas, todas muito bem fundadas. Por espírito de classe, entretanto, é bom acrescentar que os revisores – e na época da tradução que você critica, os linotipistas – às vezes dão preciosas ajudas ao tradutor. Vou te contar uma, que ocorreu comigo. Menos mal que era um livro sem importância. Um desses psicanalistas ou algo assim (não me lembro do autor, um francês), falando da relação de erotismo com religião, escreveu longamente sobre o êxtase, uma forma de orgasmo, segundo ele. Aliás, Santa Teresa comprova isso irrefutavelmente. Bem, no texto havia muita gente em êxtase, logo, eXtática. O revisor não teve dúvida: trocou todos os xis por esses! Nem preciso dizer que pego o livro na editora, um dos meus primeiros trabalhos, faz quase 40 anos, abro uma página ao acaso, e me salta um santo eStático diante dos olhos. Quase tive um treco! Naquela trapalhada inicial da narración
que vira má ração, ou algo assim, parece ter havido uma entusiasmada intervenção do tipógrafo e do montador dos chumbos: um alterou as palavras, o outro empastelou o texto.

Continuando sobre a pontuação.

Você tem razão no que aponta, principalmente quanto ao corte do ritmo. Mas em outros casos não há como não intervir, pois seu uso, da pontuação, varia com a língua. E varia também com o tempo: a pontuação de um texto simbolista, p.ex., para não falar em textos mais antigos, difere bastante da que hoje usamos.

É um problema bem complicado, não há uma regra precisa para resolvê-lo: a que ponto se deve seguir à risca essas características originais do texto, a que ponto adequá-las aos nossos dias. Creio que depende do papel que o sinal de pontuação exerce na frase, da respiração do texto nas duas línguas.

O problema, aliás, transcende a tradução. Coordeno para uma editora uma coleção de contos e crônicas ‘clássicos’. A preocupação é partir sempre das edições prínceps. Publicamos todos os livros de conto de um clássico brasileiro a partir delas, de modo a oferecer o texto mais próximo possível do que compôs o mestre. Só foram feitas atualizações ortográficas... E de pontuação. Defendi que se mantivesse a pontuação tal qual, sem alterar uma vírgula: apareceria então, p. ex., que ele utilizava com grande frequência vírgula separando o sujeito do predicado, o que é considerado crime hediondo pelos gramáticos hodiernos! A vírgula muitas vezes servia nele para marcar uma pausa de leitura. P.ex. (invento): "e o Paulo chorou", sem pausa, é uma coisa; "e o Paulo, chorou", tem outro sentido = e o Paulo, [suspense] chorou. Uma constata uma quase banalidade. A outra tem forte carga emotiva. Fui voto vencido: os organizadores dos volumes afirmaram que a convenção consagrada era, nesse caso e em alguns outros, atualizar a pontuação. Quem sou eu para reverter a convenção dos donos dos clássicos! Conseguimos entretanto salvar várias peculiaridades pontuadoras do meu ex-vizinho (a casa dele ficava na esquina da rua onde nasci). Modéstia à parte, é uma das melhores edições disponíveis de seus contos.

Boas noites!...

Estava aqui batucando no teclado mais uma página do autor que traduzo, quando me ocorreu acrescentar o seguinte. Há que se levar em consideração uma coisa, também. Melhor dizendo, eu levo. Nem todos os textos são iguais. O Quixote é uma coisa; o que traduzo, outra. O primeiro é um monumento da literatura; o segundo um bom autor contemporâneo. O segundo traduzo com a editora me pagando por página, isto é, trabalho al destajo, por produção, à la pièce, de olho no meu saldo bancário. O Quixote não dá para traduzir assim. Digo, eu jamais traduziria assim: tendo de fazer ‘x’ páginas por dia para poder pagar minhas contas. É um trabalho de longo prazo, uma espécie de missão, não um ganha-pão. Já recusei algumas traduções por achar que não daria para fazer um trabalho à altura, no sistema corrente de remuneração. Um deles, para mim um dos maiores romances do séc. XX, escrito por um canalha consumado: Céline. Calculei que, para fazer uma tradução decente do livro, necessitaria um ano de trabalho, no mínimo. O que me pagariam seria o equivalente a uns 3 ou 4 meses de trabalho normal. Como não tenho outra fonte de renda, e a editora jamais me pagaria 3 ou 4 vezes o preço da lauda, não pude aceitar esse desafio que adoraria ter enfrentado. Deram para outra pessoa, que não necessitava de uns trocados como eu para sobreviver. E que, diz-se, fez um trabalho muito bom. Se não me engano o livro ganhou recentemente uma nova tradução, creio que da..., tradutora de primeiríssima. Outro que recusei, por motivos parecidos: ‘A condição humana’, que acaba de ganhar também uma tradução primorosa de um mestre.

Certas obras eu só ousaria traduzir se ganhasse na loteria, e não precisasse da remuneração da editora. Como não jogo nunca... “

E aqui ficamos, para a minha infelicidade. Esse homem é um intelectual, um tradutor fino e raro que jamais ostenta o brilho. Ponte entre povos, eu o vejo como uma ponte de ouro que, de tão pisada, ninguém nota.

* Jornalista e escritor




2 comentários:

  1. Um bom tradutor deve colocar a alma no que faz.
    Se fizer um bom trabalho o brilho da obra
    viceja, mas se não fizer embaça...
    Abraços

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  2. Pelo texto, a profissão de tradutor, que entenda a tradução como o autor aqui destaca, é tarefa complexa e mal remunerada. Assim, não atrapalhar já é metade do caminho. Curiosa avaliação de vírgula entre sujeito e predicado.

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