quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010


Cotidiano

* Por Vera Pontieri

Numa casa, no final da rua, eu vi o rapaz jovem e magro chegar perto da grade da frente e chamar o nome de uma mulher. Ela simplesmente gritou para ele ir embora que desta vez não abriria o portão. “Não insista”, gritava. “Já estou cheia”.

Algum tempo depois, porém, ele voltou com uma mochila e ela abriu o portão. Era sempre assim. Depois de uma briga com porradas e gritos tudo se acalmava.

Eles já tinham uma menina de pouco mais de um ano bem magrinha cujo traço mais marcante eram os olhos fundos com as olheiras típicas de desnutrição.

Aquela mulher, está repetindo a vida da mãe, que como ela, era uma mulher bonita e muito maltratada. Vivia com o marido e possível pai dos três filhos que teve. Com freqüência era espancada e humilhada. O marido consumia drogas diante das crianças e nestas ocasiões a pancadaria era geral. Ela se calava para não perder o que considerava mordomias: uma pequena casa, comida, e uns trocos que conseguia desviar para seus luxos pessoais.

Adorava um batom vermelho, uma blusa decotada e calças bem justas. Era uma mulher que chamava a atenção dos homens e muitas vezes aceitava suas carícias eventuais.

Repentinamente uma noite chegou a notícia da morte do seu filho. O pai havia levado a criança com ele para o trabalho. Na volta para casa parou num bar, tomou umas cachaças e depois não conseguiu controlar o carro naquela fatídica curva fechada.

O garoto tinha apenas nove anos. Estava aprendendo a tocar violão. Seu sonho era ser cantor sertanejo quando crescesse.

Eu fui ao enterro e vi uma mulher enlouquecida de dor e um homem cheio de ataduras e culpa. Os dois não se olhavam e eu achei que ela não conseguiria mais viver perto dele. Ledo engano! Aparentemente a vida continuou igual. Ele ausente e depois do desastre, ela resolveu trabalhar em uma das lojas do marido para diminuir a dor da perda.

Algum tempo depois soube que aquela mulher morrera repentinamente. Agora vejo a filha mais velha repetindo tudo como se este também fosse seu destino.

* Colaboradora do Literário





Um comentário:

  1. Infelizmente esse é de verdade o cotidiano
    de muitos. Mulheres que na busca incessante
    de encontrar um companheiro acabam ficando
    com aquele que a alimenta...
    Belo texto.
    Abraços

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