segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010




Há uma nota de samba no final do arco-íris

* Por Eduardo Murta

É Carnaval, nada além, o que alimenta o coração de Sabrina. Ela conta os dias alinhavando a fantasia. Dois pontos acima, um aperto à esquerda, uma pluma mais na coroa de madrinha da bateria. E dando os ajustes finais, percebam as pálpebras dela tentando resistir ao peso desta madrugada. Os cílios imitando balanço de mar. Até que derivem por inteiro, o sopro do sono inflando velas. Bela adormecida, Sabrina se deixa navegar. Navegando, sonha.

É ela apontando na Estação Vilarinho, a caminho da quadra da escola. De longe, ouve os tamborins ditando o ritmo, já no compasso para reunir o grupo e partir rumo à avenida. Faz marejar os olhos, porque não travaria portas à emoção para momentos assim: a semana inteira dançando com o desejo, empunhando a vassoura e o uniforme laranja que a converteria, ora na dama do lixo, ora na rainha da limpeza urbana.

Foi nesta toada que encontrou as sapatilhas daquele fevereiro. Pontas roídas, laços gastos, pendurada à lixeira em plena Savassi. A recolheu, acolheu, e levou para casa com fosse um bibelô de primeira grandeza. Fez movimentos que, por desengonço, mal lembrariam um balé, embora sinceros. E desembocou num samba que arrepiaria arquibancadas. As coxas negras tremulando, um rebolado vigoroso. O molejo exalando sensualidade.

É naquele sapateado que ela se vê, agora, enquanto os surdos vão imprimindo sua batida vulcânica, convocando a comunidade. Chega gente de todo lado. Mariana, a parteira, trazendo as mãos que nunca envelhecem. Dondinho, o açougueiro que compensa cheiro de frigorífico com banhos de alfazema. Num minuto, todos são só um, com as vozes embalando o enredo que exalta os primeiros habitantes da cidade.

Bela como se pusera, Sabrina, querendo, arrumaria até namorado. Sorriso de propaganda de creme dental, pele achocolatada e um charme que colocava os homens a lhe reservarem um olhar para além do desejo simples. Mas sabia se proteger. À primeira palavra, já identificava se era reles cantada ou aproximação espontânea. Resistia, porque queria era se guardar para um príncipe que não tinha ideia exatamente de onde viria. Nem quando. Mas nele – e no Carnaval – depositava o fio nobre de seus sentimentos.

A fantasia imitando arco-íris era um pouco dessa tradução. Sonhava com o dia em que alguém a enxergaria como um pote de preciosidades e, simbolicamente, fosse a outra ponta dessa miragem. Ah... Como esperava por um instante como aquele... Voltou os pés à terra com o puxador de samba anunciando a hora da partida. E o povaréu se juntando na carroceria do caminhão. Escutou, num sussurro bêbado, que lhe estava reservada uma surpresa da qual jamais se esqueceria.

Desdenhou, tributou a fanfarronice de fantasmas, porque era calejada com os fevereiros da Belo Horizonte. Encontraria os abnegados de sempre, os que não desistiam, os que punham uma fé louca na crença de que não seriam eles os coveiros de uma tradição que, bem ou mal, fora temperada ao sonho de dezenas de gerações. São os sinais dessa resistência que Sabrina vislumbra, as luzes dando vida à avenida, ali pelas cercanias do Primeiro de Maio.

Pensou que daria com o vazio de sempre. Mas haveria mais que isso. Há, como nunca, holofotes, câmeras, fotógrafos e um mundaréu de seguranças concentrados por lá. Pensou, claro, em tragédia. Mas era celebração. E um delírio quase passional. Passando à tribuna de honra, bateu e voltou os olhos várias vezes. Atônita. Esfregou, sem crer naquilo. Do alto-falante veio a confirmação de que o convidado especial desfilaria. E seria com ela!

As pernas deram de bambear à medida que aquele homem, gingado atípico, se aproximava com sua roupa em tom de arco-íris. Sabrina lançou o braço ao ar, a que ninguém menos que ele, Mick Jagger, beijasse-lhe as mãos. Como a uma rainha. Piscou, deslumbrada, e preparou-se para o que ele lhe revelaria aos ouvidos. Mas a agulha, maldita agulha, trespassando-lhe o dedo, a trouxe de volta àquela madrugada no barraco da Vila Clóris. Sangrou. Respingou na fantasia. Manchou os tons do arco-íris. E doeu-lhe, doeu-lhe fundo. Como um samba de uma nota só.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.


5 comentários:

  1. Acorda não...deixa ela sonhar
    um pouco. Deixa a alma dela ficar mais leve.
    Amanhã...é outro dia.
    Adorei Eduardo.
    Beijos

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  2. Que Sabrina continue vivendo com tamanha vontade para continuar sonhando. Pois só quem sonha,vive.
    Como diz a letra do samba de Martinho da Vila : "Sonhei
    Que estava sonhando um sonho sonhado
    O sonho de um sonho
    Magnetizado"
    Murta, seu texto é um poema de grande inspiração e talento.

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  3. Querendo, as sapatilhas dela estão bem aqui à minha frente. É só dizer que empresto a vocês para incensar as fantasias (as intangíveis) de Carnaval.

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  4. A dor, seja física ou psíquica, teima em nos trazer de volta a vida real. A beleza dos sonhos de Sabrina também embalou os nossos sonhos.
    Destaco: " ora na dama do lixo, ora na rainha da limpeza urbana".

    A sofisticação faz da vida idealizada uma entidade ainda mais atraente.

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  5. E o que é o carnaval senão um sonho em que príncipes e princesas dançam na avenida?
    Que Sabrina sonhe, pois só sonhando para aguentar tanta realidade...
    Adorei seu texto, Murta.
    Parabéns!

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