sábado, 20 de fevereiro de 2010




Alexandre, o Grande

* Por Karel Capek

Para Aristóteles de Estagira,
Diretor do Liceu de Atenas

Meu grande e amado mestre, Caro Aristóteles!

Faz muito tempo que não vos escrevo; mas, como bem o sabes, tenho estado superocupado com os assuntos militares, e, enquanto marchávamos por Hircânia, Dranguiana e Gedrósia, conquistando a Bactriana e avançando além do Indo, não tive nem tempo nem vontade de apanhar a pena. Agora, estou, há alguns meses, em Susa; mas, assim que cheguei, comecei a ficar atulhado de assuntos administrativos, nomeação de funcionários, sufocamento de revoltas e intrigas de toda espécie, de tal modo que, até o dia de hoje, não consegui escrever-vos a meu respeito. É verdade que, com base nas informações oficiais, sabeis, de modo geral, o que se sucedeu, mas a minha devoção por vós e a confiança em vossa influência nos círculos intelectuais helênicos levam-me a abrir-vos, novamente, o meu coração, diante de meu prezado mestre e guia espiritual.
Lembro-me de que, anos atrás (parece-me que foi há tanto tempo!), escrevi-vos uma carta absurda e entusiasmada à beira do túmulo de Aquiles; estava às portas de minha expedição para a Pérsia e havia jurado para mim mesmo que o filho heróico de Peleus seria o meu exemplo para o resto da vida. Eu sonhava apenas com o heroísmo e com a grandeza; já havia conquistado a Trácia e pensava que estava avançando contra Dario, à frente de meus macedônios e gregos, somente para orlar a própria fronte de louros, para fazer jus a meus ancestrais, que o divino Homero soube tão bem eternizar. Pude constatar que nada fiquei devendo aos meus ideais nem em Caronéia nem em Granico; hoje, porém, tenho uma visão bem distinta do significado político de minhas ações daquele período. A verdade nua e crua é que a nossa Macedônia, que se uniu, de certo modo, à Grécia, vinha sendo ameaçada pelo flanco norte pelos bárbaros da Trácia. Eles poderiam ter-nos atacado num momento desfavorável que os gregos teriam condições de aproveitar para violar os tratados e desvincular-se da Macedônia. Em outras palavras: precisei submeter os trácios para que a Macedônia tivesse um flanco garantido, no caso de uma traição grega. Foi puras necessidade política, meu caro Aristóteles; vosso aluno, contudo, ainda não havia compreendido isso e ainda se entregava aos sonhos sobre os feitos de Aquiles.
Com a conquista da TRácia, a nossa situação modificou-se; passamos a controlar toda a costa oriental do mar Egeu até o Bósforo. Entretanto, o nosso domínio sobre o mar Egeu vinha sendo ameaçado pelo poderio marítimo da Pérsia; assim que chegamos ao Helesponto e ao Bósforo, punhamo-nos em proximidade crítica com a zona de influência persa. Cedo ou tarde, a guerra entre nós e os persas pelo domínio do mar Egeu e dos estreitos do Ponto teria de explodir. Afortunadamente, golpeei antes que Dario estivesse pronto. Eu pensava estar seguindo os passos de Aquiles, e, assim, teria a glória de conquistar uma nova Ílio para os gregos; de fato, como hoje eu posso ver, claramente, tornava-se necessário rechaçar os persas do mar Egeu; e nós os derrotamos, meu caro mestre, de tal forma que ocupei a Bitinia, a Frigia e a Capadócia, devastei a Cilicia e me detive apenas em Tarso. A Ásia Menor era nossa. Estava em nossas mãos não somente a bacia do mar Egeu, mas também o Mediterrâneo, ou como é mesmo que se chama, a costa norte inteira do mar do Egito.
Talvez vós, meu caro Aristóteles, possais afirmar que o meu principal objetivo político e estratégico, isto é, a expulsão final dos persas das águas helênicas, tenha sido alcançado. Mas, com a conquista da Ásia Menor, surgiu uma nova situação: as nossas novas costas vinham sendo ameaçadas pelo sul, por fenícios e egípcios; a Pérsia continuaria recebendo reforços dali, para continuar a guerra contra nós. Portanto, era indispensável que ocupássemos o litoral de Tiro e controlássemos o Egito. Desse modo, tornamo-nos senhores do litoral inteiro, mas um novo perigo apareceu; Dario, apoiando-se em sua rica Mesopotâmia, poderia invadir a Síria, cortando as ligações entre o Egito e as nossas bases da Ásia Menor. Portanto, precisei arrasar Dario, a qualquer preço; consegui fazê-lo em Gaugamela; como bem o sabeis, Babilônia, Sua, Persépolis e Pasárgada caíram em nosso colo. Apoderamo-nos do golfo da Pérsia, mas, para que pudéssemos defender essas novas possessões de possíveis ataques vindos do norte, precisamos voltar-nos contra os medos e os hircanianos. Assim, o nosso território passou a estender-se do mar Cáspio ao golfo da Pérsia, mas continuava aberto em duas direções; à frente de meus macedônios, arrasei a Areia e a Dranguiana, acabei com a Gedrósia, devastei a Aracósia e ocupei, gloriosamente, a Bactriana. Para que pudesse selar minha vitória militar com laços permanentes, tomei por esposa a princesa Roxana, da Bactriana. Isso foi uma simples necessidade política; conquistei tantas terras orientais para os meus macedônios e gregos que, querendo ou não, devia vencer os meus bárbaros súditos orientais pela minha aparência e meu esplendor, porque, sem isso, esses miseráveis pastores de ovelhas não conseguem imaginar um governante poderoso. Mas a verdade é que a minha antiga Guarda Macedônia suportou isso tudo com dificuldades; talvez tenha achado que o comandante deles começava a distanciar-se de seus antigos camaradas de armas. Infelizmente, vi-me obrigado a executar os meus velhos amigos Filotas e Calistenes; o meu caro Parmênio também perdeu a vida. Fiquei muito triste por causa deles; mas não havia outra saída para que a rebelião dos meus macedônios não ameaçasse os meus passos seguintes. À época, preparava a minha expedição contra a Índia. Para que saibais, a Gedrósia e a Aracósia são cercadas de altas montanhas que parecem fortificações, mas, para que se possa penetrar essas fortificações, é preciso ter um vestíbulo do qual se possa iniciar um assalto ou se possa recuar para trás das fortalezas. Esse vestíbulo estratégico é a Índia, ate o rio Indo. Um comandante ou político responsável nem poderia agir de modo diferente. Contudo, mal chegamos ao rio Hifasis, os meus macedônios voltaram a rebelar-se, afirmando que não iriam adiante, que estavam cansados, doentes e desejosos de retornar à pátria. Vi-me obrigado a voltar; foi uma caminhada terrível para os meus veteranos, e muito pior para mim; o meu desejo era chegar até o golfo de Bengala, a fim de que pudesse garantir fronteiras estáveis, a leste, para a Macedônia, mas fui obrigado a desistir, temporariamente, da realização dessa tarefa.
Retornei a Susa. Poderia estar satisfeito por ter conquistado tamanho império para os meus macedônios e gregos. Entretanto, para que não precisasse apoiar-me nos meus homens exaustos, alistei trinta mil persas em meus exércitos; eles são excelentes soldados e eu precisava deles para defender as fronteiras orientais. Vede, contudo, que esse meu gesto amargurou em demasia os meus velhos soldados. Não foram capazes de compreender que, depois de ter conquistado um território oriental cem vezes maior do que a nossa pátria, eu me havia tornado imperador do Oriente; era preciso ter oficiais e conselheiros do Oriente e devia estar rodeado por uma corte oriental; isso tudo é uma necessidade política óbvia que eu preciso realizar para o bem de minha Grande Macedônia. As circunstâncias exigem de mim mais e mais sacrifícios pessoais; suporto-os sem censuras, porque penso na grandeza e na força de minha querida pátria. Devo aturar a pompa e a magnificência bárbaras de meu poder; precisei tomar por esposas três princesas de reinos orientais; agora, meu caro Aristóteles, finalmente tornei-me um deus.
Isso mesmo, meu caro mestre, proclamei-me deus; os meus bons súditos orientais ajoelham-se diante de mim e oferecem-me sacrifícios. Trata-se de uma necessidade política, desde que eu queira possuir autoridade sobre esses pastores das montanhas e esses condutores de camelos. Como vão longe os dias em que me ensináveis a usar a razão e a lógica! Mas a razão obriga-me a adaptar os meios à desrazão humana. Ao primeiro relance, a minha carreira pode parecer fantástica para qualquer um; agora, no entanto, quando a contemplo do silêncio do meu escritório divino, percebo que jamais fiz outra coisa que não tivesse sido necessária em função de meus passos seguintes.
Vede, meu caro Aristóteles, seria de interesse da paz e da ordem, e as necessidades políticas o exige
M, que eu fosse reconhecido como um deus também nos territórios ocidentais. Haveria de deixar-me de mãos livres no Ocidente se a minha própria Macedônia e a Grécia aceitassem o princípio político de minha autoridade absoluta; poderia, portanto, triunfar, tranquilamente, a fim de que conseguisse obter fronteiras estáveis no litoral da China para a minha pátria helênica. Assim, eu poderia assegurar o poder e a segurança eternos paras a minha Macedônia. Como vedes, trata-se de um plano sóbrio e razoável; deixei de ser, há muito tempo, aquele visionário que prestou juramento junto ao túmulo de Aquiles. Se agora vos peço, na qualidade de meu sábio amigo e guia, que prepareis o caminho fiulosófico e justifiqueis a miunha proclamação como deus, de modo que isso seja aceito por meus gregos e macedônios, faço-o como estadista e político responsável; confio em vossa decisão; se desejais realizar a tarefa, razoável e patriótica, e que é politicamente necessária.

Saúdo-vos, meu caro Aristóteles,

Alexandre

(Tradução de Aleksandar Jovanovic).

(Texto extraído do livro “Os melhores contos que a História escreveu”, organizado por Flávio Moreira da Costa, com a colaboração de Celina Portocarrero, Editora Nova Fronteira, 1ª edição, 2006).


* Karel Capek é um dos mais conceituados e consagrados escritores checos.




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