quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010




Homenagem aos que não conseguiram viver a sua vida, e principalmente aos que conseguiram

* Por Mara Narciso

“Quando você faz, o tempo passa. E quando você não faz, passa do mesmo jeito. Então eu vou fazer”. (Milena Narciso**)

Acordei com uma baita saudade da vida que não tive. Com vontade de viver aquilo que não vivi por covardia. Rememoro os feitos que não fiz, os passeios que não passaram de vontades e dos amores que não amei. Ah, quanta coisa eu poderia ter sentido e não senti, quantos afazeres que poderiam ser executados, e não executei. Acovardei-me. Em nome da segurança não gastei, em nome do conforto não ousei, em nome do comodismo não me arrisquei, e em nome do status quo não me movi. Para ter uma rotina segura, nem sequer avancei. Não consegui viver fora do script, fazer algo excêntrico ou imprevisível. Daria um ano para viver um dia daquele modo que não vivi. Quis, mas não consegui vivê-lo.

Vontade de viajar para aquele lugar que nunca fui. Deveria ter ido para haver o que recordar. Sinto falta daquela boca que não beijei a beira-mar. Tenho vontade de sentir o cheiro daquele homem, que não me fustiga as narinas da memória porque nunca o conheci. É desesperador olhar para frente e não ver nada que seja possível fazer, e o pior, olhar para trás e saber que fiz pouco, que passei a vida sem vivê-la, que tive uma existência de submissão.

Culpa e arrependimento por não ter conjugado alguns verbos indispensáveis, como ousar. E outros tantos que estavam a minha disposição para ser usados, faltando para isso coragem. “Siga em frente”, ou “a vida flui célere”, são frases inúteis quando estou nesse ponto de estrada. Agora é tarde para mudar o curso da minha história. O meu tempo acabou. Não consigo dar uma guinada agora, pois me faltam forças. Estou confusa. A morte vem a galope, sinto-lhe o ruído e o mau-cheiro. É tarde demais para ser o que não consegui antes. Lamentar chateia, mas é o que me resta. O sabor da derrota não é outro senão o da amargura. Dói pensar em tudo que poderia ter sido e não fui.

O tempo e o vento passaram. Cheguei ao fim sem lágrima e sem vela, submetida ao roteiro alheio, e não ao meu roteiro. Passei a vida dentro do esquadro. Quando a cortina se fechou, eu não gostei da escuridão, nem da ausência de aplausos. O ponto final da jornada deixou ecoar um único soluço abafado: o meu soluço.
Mandaram-me viver a vida, e desobedeci.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
** Milena Narciso foi minha mãe, que se formou em medicina aos 40 anos de idade.







7 comentários:

  1. Trata-se do arrependimento do que não foi realizado, que talvez seja mais angustiante do que o arrependimento pelo que foi feito. Um texto para refletirmos a respeito da vida, o tempo passa mesmo muito rápido...parabéns!

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  2. Hoje, vivo sorrindo pelos cantos.
    Tracei planos e deles não abro mão.
    O tempo? Estou flertando com ele...
    Beijos

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  3. As nossas precauções!
    Reproduzimos sempre imagens...
    Raciocinando sobre o texto, é a vida!
    Parabéns.
    Abraços do,
    Calvino

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  4. Seu texto é lindo, Mara. Afinal o que será o ideal ? Arriscar-se ou tentar controlar a vida ?
    Cazuza foi um exagerado. Viveu tudo o que podia. Valeu a pena ?
    Outros preferem nada arriscar. Sei lá, acho que o importante é viver como se deseja. Uns gostam de arriscar. Outros, preferem a mesmice ou a mediocridade. São felizes assim. Nunca ninguém respondeu qual é a vida ideal, afinal. E será que existe ?

    E agora : Escolher não viver pelo medo de viver ?

    Um texto que é divulgado na Internet como sendo de Drummond, mas que é da Martha Medeiros diz : "
    "A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos,na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.
    A dor é inevitável. O sofrimento é opcional."

    Beijos

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  5. Sayonara, o texto foi inspirado num momento vivido por uma amiga que está amarga. Quando ela leu a crônica ontem, falou que sentiu uma angústia, uma coisa muito ruim, e lembrou-se da música "Epitáfio" dos Titãs, que fala do arrependimento de não ter vivido de outra forma.
    Núbia, não ter medo do tempo e usá-lo como aliado é uma ótima medida. Geralmente brigamos com ele a vida toda.
    Calvino, buscamos fazer no ponto certo, mas algumas vezes passamos, para mais ou para menos.
    Celamar, ser exagerado , no sentido de ser intenso e apaixonado por tudo, me parece melhor. No geral a nossa vida é mesmo medíocre, significando na média. Apenas em algumas ocasiões é excepcional.
    Gente, obrigada pelos comentários!

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  6. Mara,
    Você botou no papel um texto que é só desconsolo, mas que também é só verdade. E que verdade doída, Doutora. Que diagnóstico fatal e irremediável. Abraços!

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  7. Marcelo, ser sacudido por um vendaval é bom. Sempre é tempo de acordar. Mesmo que na reta final, ainda que seja para dar o último sorriso.

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