terça-feira, 16 de fevereiro de 2010







Eu vi “Disparada” tomar forma (e outras histórias dos festivais)

* Por Laís de Castro

Em 1966, a cantora Maria Odette defendeu a música “Boa Palavra”, de Caetano Veloso, no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, e ficou com o quinto lugar. Caetano era ainda um jovem baiano que não se arriscava a subir no palco para cantar. Hoje canta e fala… até demais!

Foi por essa época que eu comecei a trabalhar na revista InTerValo. Já havia passado por um estágio informal na Editora Abril: três meses na revista Realidade, três meses na Cláudia (então dirigida por Thomás Souto Corrêa, que adorava jogar futebol nos corredores do prédio na hora do almoço) e três meses na InTerValo, onde parece que fui aprovada e contratada como repórter. Então íamos (os fotógrafos e eu) cobrir os ensaios e também os festivais, desde que eles nasceram, na TV Excelsior.

Circulando pela TV Excelsior

Teatro Cultura Artística, Rua Nestor Pestana, junto da Praça Roosevelt, São Paulo – ali funcionava a TV Excelsior. Em frente à velha e boa ACM (Associação Cristã de Moços) e ao fantástico Gigetto, o restaurante dos artistas e da boêmia paulistana da época. Um pouco mais tarde, o Gigetto se mudaria dali para bem pertinho, a Rua Avanhandava, onde está até hoje.

A gente entrava e ficava circulando por lá. Passava um, passava outro e o papo rolava; as notícias vinham assim. Ninguém se escondia em mansões nem andava só de carrões. Ao contrário. A maioria dos artistas vinha de outras cidades e se movia em São Paulo de táxi. Gilberto Gil, por exemplo, ainda não havia aderido à alimentação macrobiótica e era gordinho, tinha assim uma carinha de lua querida, bem parecido, na época, com o Luiz Gonzaga.

Outra gordeta, Tuca, defendeu a música ganhadora daquele festival – “Porta Estandarte” de Geraldo Vandré e Fernando Lona. (Era esse o termo que se usava, no tempo dos festivais: defender a música. Não se cantava uma música: defendia-se.) Morreu precocemente devido a uma anorexia mal explicada. Era a mais simpática entre as cantoras – e que sucesso faria Tuca, se tivesse vivido mais! Convidava toda a redação da revista para almoçar na casa dela, acho que em Santo Amaro. Nós chegávamos lá e ela estava… dormindo! Claro, esperávamos e, naquele dia, era tudo festa. A redação inteira, inclusive o Carlos Coelho, redator-chefe, tomando cerveja e conversando sobre música o dia todo. Imaginem isso, hoje, numa redação de semanal… Seria demissão certa para todos. Naquele tempo, porém, tudo funcionava mais lenta e tranquilamente.

Maricenne Costa (ela se assina assim, com dois enes, de uns tempos para cá) se chama, de verdade, Maria Ignêz Senne Costa e vinha do Vale do Paraíba, mais precisamente de Cruzeiro, onde viveu até os 18 anos. Dona de uma voz densa e uma afinação perfeita, conversava com os jornalistas como se estivesse em sua casa, com a maior tranqüilidade. Autora da música colocada em segundo lugar, “Inaê”, em parceria com Vera Brasil, à noite cantava (e como cantava) bossa nova no João Sebastião Bar, na Rua Augusta, que teve sua época de ouro em São Paulo, assim como o Beco das Garrafas, no Rio.

Maria Odette, que na época era famosa, nos recebeu – a mim e ao fotógrafo José Ferreira da Silva – para uma reportagem em sua casa da Rua Cypriano Barata, no Ipiranga, onde vivia com a mãe, o pai e as irmãs. Naquele tempo era noiva do Théo de Barros, que meses depois venceria o mais famoso festival que houve no Brasil, o II Festival da MPB da TV Record – aquele da “Banda” e da “Disparada”, música composta por ele com letra de Geraldo Vandré.

Saímos, fomos ao Parque do Ipiranga e fizemos várias fotos do casal, o que, para a época, era bem vanguardista, quase uma matéria para a Caras de hoje. Só por curiosidade: Maria Odette e Théo de Barros não chegaram a se casar. Outras pessoas vieram na vida dela e na vida dele, que não cabe aqui comentar.

Meninos, eu vi – eu vi como “Disparada” tomou forma

Sobre o Festival da Record, que veio em seguida, há uma história bem especial. No dia da primeira apresentação das músicas (isso acontecia em três etapas), me mandaram passar o dia com o Vandré. E quem falou que eu conseguia achar o cara? Passei uma semana buscando e quase deixei louco o cara que tinha uma extensão do telefone do compositor no apartamento dele:
- O Vandré está?
- Menina, ele mora em outro andar e não atende telefone. Eu dei uma extensão do meu telefone para ser gentil… eu não sei se ele está.

Vandré vivia num pequeno apartamento na Rua Veiga Filho, em Santa Cecília, bem perto do Centro, e fazia seus ensaios lá mesmo, com o Théo e o Quarteto Novo. Eu tinha que assistir a um ensaio, era minha tarefa como repórter. Liguei 200 vezes. No fim o pobre vizinho estava tonto e com ódio de mim:
- Pára de ligar pra cá senão eu chamo a polícia!

Ele tinha razão, hoje peço desculpas.

Mas eu consegui e entrei às 3 da tarde no apartamento onde Vandré, Théo no violão e o Quarteto Novo ensaiavam “Disparada”. Jair Rodrigues, que cantava a música, também estava lá. Como as coisas eram precárias, então… todos numa salinha e os vizinhos todos tendo o prazer de conhecer a música inédita. Assim como a repórter. Vandré dizia:
- E se a gente pudesse fazer todo mundo entender isso que a gente tá falando? Não seria maravilhoso?

Jair, sempre brincalhão e bem humorado, trabalhava duro, mas sorria muito e falava à beça:
- Cara, essa música é difícil de cantar, mas tá na ponta da língua. Vai sair tudo certo e ela vai chegar chegando. Prá levar a taça!

Previsão perfeita.

Eles, mais o Théo no violão e o Quarteto Novo, passaram e repassaram a música mais de dez vezes, diante de mim, acertando uma nota ali, outra aqui. Eram profissionais. Não vi ali nem uma cerveja, quanto mais bebidas mais fortes. Nadica de nada.

Saímos de lá, todos juntos, por volta das seis e meia da tarde. Eles iam para o palco e eu para a minha casa assistir a tudo pela televisão. Era ao vivo, quem cantou certo, cantou, quem não cantou, cantasse… prova de fogo.

Sem saber, eu tinha acabado de conhecer ali, em primeiríssima mão, a música que, ao lado da “Banda”, ganharia o Festival. Era incrível!

Depois de “A Banda”, de Chico Buarque, interpretada por Chico Buarque e Nara Leão, e “Disparada”, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues, Trio Maraiá e Quarteto Novo, empatadas em primeiro lugar, ficou, em segundo, “De Amor ou Paz”, de Luís Carlos Paraná e Adauto Santos, interpretada por Elza Soares. Em terceiro lugar, “Canção para Maria”, uma parceria de Paulinho da Viola e Capinan, cantada por Jair Rodrigues; em quarto, “Canção Não Cantar”, de Sérgio Bittencourt, com o MPB-4; e em quinto, “Ensaio Geral”, de Gilberto Gil, com Elis Regina.

O fotógrafo namorador abria as portas para exclusivas

Além do José Ferreira da Silva, eu também fazia dupla com o fotógrafo Paulo Salomão. Este, já falecido, infelizmente, era um cachorrão de primeira linha. Namorava apresentadoras, cantoras e parece que se dava bem com elas. Não vou dizer o nome de uma, loira, ainda viva, que adorava o crioulo! Ele costumava dizer:
- Deixa comigo, menininha, que eu consigo a exclusiva.

E conseguia. Salomão tinha seus métodos, não muito ortodoxos, mas honestos. Era um grande companheiro. Nunca me deixou na rua depois de uma cobertura. Sempre me levava para casa em seu velho Citroën preto de câmbio no painel, que víamos muito pelas ruas então. O carro se chamava Catarina. Quantas vezes não empurrei a Catarina pelas madrugadas paulistanas!

Até o amanhecer, com Toquinho, Vinicius…

Numa delas saímos do Teatro Record e fomos para o Barbudinho, que ficava no subsolo da Galeria Metrópole, na Avenida São Luiz com Praça Dom José Gaspar. Estávamos “trabalhando”… Ali encontramos, espalhados por algumas mesas, entre os freqüentadores comuns, ninguém menos que Toquinho e Vinícius. Maria Pia, que trabalhava com Guilherme Araújo, também estava com eles. E Carolina Whitaker, para quem Toquinho fez “Carolina Bela”. Claudio Curi, que depois se tornou ator de novelas, também. Sentamos junto a eles.

O dia estava clareando quando alguém falou:
- E se fôssemos para a casa do Toquinho ouvir um pouco de violão?

Todos toparam. Claudio Curi e eu fomos até a minha casa buscar o meu violão para que ele tocasse também. O sol já vinha forte, perto das 6h da manhã. Voltamos para a casa do Toquinho, que morava na Alameda Ministro Rocha Azevedo, numa casinha de frente de rua, no trecho ainda na Bela Vista. Aquela rua, que hoje tem mão só para subir em direção à Paulista, naquele tempo apenas descia.

Ficamos lá, “trabalhando” até as 8h da manhã. Toquinho tocava, Claudio Curi tocava, nós todos cantávamos. Vinícius, simpaticíssimo, também cantava e tomava seu uísque, em paz. Naquela noite – coisa rara – estava desacompanhado!

(Texto reproduzido de “50 anos de textos”, http:// 50anosdetextos.com.br)

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.





3 comentários:

  1. Está aí um evento do qual
    gostaria de ter sido
    testemunha.
    Beijos

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  2. Belas reminiscências, Laís! que saudade me deu...Conte mais coisas sobre aquela época.
    Dizem que "A Banda" ganhou sozinha o festival, mas Chico ( o grande Chico) se recusou a receber o prêmio sozinho e o dividiu com Vandré.

    É ótimo reviver momentos tão felizes..

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  3. É muito chique fazer parte da gestação de ícones como o que se tornaram essas músicas. Contando ninguém acredita. Faz bem em nos contar Laís.

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